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sábado, 18 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 438

 

Burcas e opressão

            O país incendiou com a proibição das burcas e os discursos polarizam-se e sobem de tom, num ruído ensurdecedor, perdendo-se a capacidade de ouvir e de refletir sobre o assunto. Eu não discordo da medida, apesar de saber que há constrangimentos.

Entendo haver questões mais urgentes e que exigem debate na Assembleia. Eu gostaria, sobretudo, que os deputados refletissem sobre os motivos que fazem com que o país não consiga incrementar a produção de itens de valor acrescentado, de modo a melhorar o nosso PIB para, de seguida, poder distribuir o dinheiro e aplicá-lo no Estado social. Sem dinheiro não há Estado Social de qualidade e, por isso, os serviços públicos como o SNS e a Escola pública agonizam. Há entendidos que dizem que Portugal tem capacidade para o poder fazer, que basta gizar uma estratégia bem conseguida, direcionada a três ou quatro produtos, por exemplo, no âmbito da Inteligência Artificial e das energias renováveis, para pôr a economia a mexer positivamente ao invés de se apostar apenas na prestação de serviços e turismo. Urge melhorar a capacidade produtiva do país e, por isso mesmo, é preocupante que o número de estudantes universitários tenha baixado. É fundamental investir no conhecimento e na educação para que as ideias surjam, garantindo as condições necessárias aos empreendedores para que o país se torne mais rico e, assim, consiga combater mais eficazmente as assimetrias sociais. Estas são as grandes questões que ao longo de séculos Portugal não soube resolver e me entristecem, mas não me perguntem por soluções… Não estudei economia.

O parlamento ocupou-se, porém, das burcas e o caldo entornou. Quase toda a esquerda votou contra e toda a direita votou a favor da lei da proibição. Não obstante, a esquerda fez questão de deixar claro que considera o uso obrigatório da burca inadmissível, por se tratar de um atentado à liberdade da mulher, mas votou contra uma proibição que não foi suficientemente refletida. Poderá ser, mas parece-me que o voto contra não é tanto pelo desacordo em relação ao assunto em si, mas pelo facto de a proposta ter saído de um grupo pouco escorreito e que não é propriamente amigo da mulher. Muitos deles ainda guardam saudosamente o ideal de mulher prendada, dedicada às delícias da cozinha e aos filhos e, naturalmente, absolutamente devota do marido, sem grandes ambições profissionais e pessoais e, se possível, que a sua maior qualidade seja entender que o marido tem sempre razão e a esposa existe para o servir. Eu sei disto e acredito que a maioria dos portugueses o saiba. Reina, portanto, o populismo, a propaganda e a hipocrisia. No entanto, a intenção com que se propõe não torna, necessariamente, a medida descabida. Compreendo o argumento que alerta para uma possível maior submissão da mulher, que passará a ser impedida de sair de casa por estas comunidades. Esse comportamento abusivo é crime e enquadrará, talvez, a moldura penal de violência doméstica, no entanto, as mulheres dessas comunidades nunca irão denunciar os seus maridos, quer por receio das retaliações quer por uma submissão cultural que acatam, já resignadas, fruto da opressão que sempre lhes foi imputada. Se, no mundo ocidental, o patriarcado ainda se faz sentir, principalmente, nas gerações mais velhas, o que dizer destas culturas absolutamente fechadas e castradoras da vontade das mulheres. Basta olhar para as punições violentas e inaceitáveis perpetradas contra as mulheres que saem à rua sem o tradicional lenço a cobrir o cabelo, em determinados países de religião muçulmana. Para mim, é óbvio: a aceitação advém de uma imposição opressiva e violenta feita ao longo dos tempos com manipulação religiosa à mistura. Por isso mesmo, é inadmissível que o admitamos num Estado democrático e de direito.

As razões de segurança são válidas, ainda que, neste momento, o problema não se faça sentir no país, no entanto, tem de haver coerência no que se legisla. Se os vidros dianteiros de um veículo não podem ser fumados (é expressamente proibido fazê-lo), precisamente, para se poder ver o rosto dos seus ocupantes, não me parece legítimo permitir que se ande de rosto tapado, seja quem for. Aliás, numa situação que exija a confirmação de identidade, ninguém o consegue fazer com alguém que tapa completamente o rosto. A aplicação de uma discriminação positiva não me parece de bom senso, neste caso.

Fundamentalmente, entendo (esta é a principal razão para estar de acordo com a proibição) que uma sociedade laica, livre e democrática não deve permitir comportamentos opressivos e violadores da liberdade da mulher e que comprometem a sua autodeterminação e o seu reconhecimento enquanto ser igual ao homem, nos seus direitos e deveres. A proibição é dirigida a uma peça de vestuário que apenas é a evidência da opressão, humilhação, coação e controlo que o homem exerce sobre a mulher. A burca não é um símbolo religioso e não é imposto pela religião, mas antes pelo homem tão inseguro e tão covarde que precisa de subjugar para se sentir superior. O culto religioso não lhes é proibido (o Estado é laico), o uso do lenço e de roupas largas, discretas e compridas também não lhes é vedado. Estão no seu pleno direito. De modo que não vejo em que a lei possa ser atentatória contra a liberdade individual, muito pelo contrário, estimula o sentido crítico e desperta consciências para o pleno direito de ser. Assim, a discordância que assenta no princípio de que não se está a respeitar a cultura de uma determinada comunidade pode ser falacioso. Lembro que a prática de excisão de clítoris, para muitas comunidades africanas, é entendida como normal e advém de uma cultura, mas é uma prática que não podemos nem devemos aceitar, porque se trata de uma mutilação feminina que pode provocar a morte e que impugna, desde logo, uma vivência saudável e plena da sexualidade a que a mulher tem direito. Significa que as opressões ao abrigo de uma cultura não devem ser toleradas. Tolerá-las significa perpetuar práticas, significa cair num relativismo cultural exagerado, que protege comportamentos atentatórios contra os Direitos Humanos. Anular a mulher perante a sociedade, obrigando-a a esconder-se totalmente por debaixo de um pano, atenta contra o seu direito de ser livre.

Tolerar a opressão é tornar-se opressor. Tal como afirmou Edmund Burke, há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude”.

 

Nina M.

 

 

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