Burcas e opressão
O país incendiou
com a proibição das burcas e os discursos polarizam-se e sobem de tom, num
ruído ensurdecedor, perdendo-se a capacidade de ouvir e de refletir sobre o
assunto. Eu não discordo da medida, apesar de saber que há constrangimentos.
Entendo haver questões mais urgentes e
que exigem debate na Assembleia. Eu gostaria, sobretudo, que os deputados
refletissem sobre os motivos que fazem com que o país não consiga incrementar a
produção de itens de valor acrescentado, de modo a melhorar o nosso PIB para,
de seguida, poder distribuir o dinheiro e aplicá-lo no Estado social. Sem
dinheiro não há Estado Social de qualidade e, por isso, os serviços públicos
como o SNS e a Escola pública agonizam. Há entendidos que dizem que Portugal
tem capacidade para o poder fazer, que basta gizar uma estratégia bem
conseguida, direcionada a três ou quatro produtos, por exemplo, no âmbito da
Inteligência Artificial e das energias renováveis, para pôr a economia a mexer
positivamente ao invés de se apostar apenas na prestação de serviços e turismo.
Urge melhorar a capacidade produtiva do país e, por isso mesmo, é preocupante
que o número de estudantes universitários tenha baixado. É fundamental investir
no conhecimento e na educação para que as ideias surjam, garantindo as
condições necessárias aos empreendedores para que o país se torne mais rico e,
assim, consiga combater mais eficazmente as assimetrias sociais. Estas são as
grandes questões que ao longo de séculos Portugal não soube resolver e me
entristecem, mas não me perguntem por soluções… Não estudei economia.
O parlamento ocupou-se, porém, das
burcas e o caldo entornou. Quase toda a esquerda votou contra e toda a direita
votou a favor da lei da proibição. Não obstante, a esquerda fez questão de
deixar claro que considera o uso obrigatório da burca inadmissível, por se
tratar de um atentado à liberdade da mulher, mas votou contra uma proibição que
não foi suficientemente refletida. Poderá ser, mas parece-me que o voto contra
não é tanto pelo desacordo em relação ao assunto em si, mas pelo facto de a
proposta ter saído de um grupo pouco escorreito e que não é propriamente amigo
da mulher. Muitos deles ainda guardam saudosamente o ideal de mulher prendada,
dedicada às delícias da cozinha e aos filhos e, naturalmente, absolutamente
devota do marido, sem grandes ambições profissionais e pessoais e, se possível,
que a sua maior qualidade seja entender que o marido tem sempre razão e a
esposa existe para o servir. Eu sei disto e acredito que a maioria dos
portugueses o saiba. Reina, portanto, o populismo, a propaganda e a hipocrisia.
No entanto, a intenção com que se propõe não torna, necessariamente, a medida
descabida. Compreendo o argumento que alerta para uma possível maior submissão
da mulher, que passará a ser impedida de sair de casa por estas comunidades.
Esse comportamento abusivo é crime e enquadrará, talvez, a moldura penal de
violência doméstica, no entanto, as mulheres dessas comunidades nunca irão denunciar
os seus maridos, quer por receio das retaliações quer por uma submissão
cultural que acatam, já resignadas, fruto da opressão que sempre lhes foi
imputada. Se, no mundo ocidental, o patriarcado ainda se faz sentir, principalmente,
nas gerações mais velhas, o que dizer destas culturas absolutamente fechadas e
castradoras da vontade das mulheres. Basta olhar para as punições violentas e inaceitáveis
perpetradas contra as mulheres que saem à rua sem o tradicional lenço a cobrir
o cabelo, em determinados países de religião muçulmana. Para mim, é óbvio: a
aceitação advém de uma imposição opressiva e violenta feita ao longo dos tempos
com manipulação religiosa à mistura. Por isso mesmo, é inadmissível que o
admitamos num Estado democrático e de direito.
As razões de segurança são válidas,
ainda que, neste momento, o problema não se faça sentir no país, no entanto, tem
de haver coerência no que se legisla. Se os vidros dianteiros de um veículo não
podem ser fumados (é expressamente proibido fazê-lo), precisamente, para se
poder ver o rosto dos seus ocupantes, não me parece legítimo permitir que se
ande de rosto tapado, seja quem for. Aliás, numa situação que exija a
confirmação de identidade, ninguém o consegue fazer com alguém que tapa
completamente o rosto. A aplicação de uma discriminação positiva não me parece de
bom senso, neste caso.
Fundamentalmente, entendo (esta é a
principal razão para estar de acordo com a proibição) que uma sociedade laica,
livre e democrática não deve permitir comportamentos opressivos e violadores da
liberdade da mulher e que comprometem a sua autodeterminação e o seu reconhecimento
enquanto ser igual ao homem, nos seus direitos e deveres. A proibição é
dirigida a uma peça de vestuário que apenas é a evidência da opressão,
humilhação, coação e controlo que o homem exerce sobre a mulher. A burca não é
um símbolo religioso e não é imposto pela religião, mas antes pelo homem tão inseguro
e tão covarde que precisa de subjugar para se sentir superior. O culto
religioso não lhes é proibido (o Estado é laico), o uso do lenço e de roupas
largas, discretas e compridas também não lhes é vedado. Estão no seu pleno direito.
De modo que não vejo em que a lei possa ser atentatória contra a liberdade
individual, muito pelo contrário, estimula o sentido crítico e desperta
consciências para o pleno direito de ser. Assim, a discordância que assenta no
princípio de que não se está a respeitar a cultura de uma determinada
comunidade pode ser falacioso. Lembro que a prática de excisão de clítoris,
para muitas comunidades africanas, é entendida como normal e advém de uma cultura,
mas é uma prática que não podemos nem devemos aceitar, porque se trata de uma
mutilação feminina que pode provocar a morte e que impugna, desde logo, uma
vivência saudável e plena da sexualidade a que a mulher tem direito. Significa
que as opressões ao abrigo de uma cultura não devem ser toleradas. Tolerá-las
significa perpetuar práticas, significa cair num relativismo cultural exagerado,
que protege comportamentos atentatórios contra os Direitos Humanos. Anular a
mulher perante a sociedade, obrigando-a a esconder-se totalmente por debaixo de
um pano, atenta contra o seu direito de ser livre.
Tolerar a opressão é tornar-se
opressor. Tal como afirmou Edmund Burke, “há sempre um limite além do qual a tolerância deixa de
ser uma virtude”.
Nina M.
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