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sábado, 11 de outubro de 2025

Crónica de Maus Costumes 437

 

Flotilha e Nobel

A atualidade tem sido dominada por dois temas que deixam as redes sociais em polvorosa pela polarização de opiniões que desencadeiam e por dois comportamentos de ideais opostos que, afinal, se tocam. O mais incrível é nenhuma das fações perceber que se iguala ao outro.

Começarei pela flotilha de Mariana Mortágua, também de Sofia Aparício e de Miguel Duarte. Relativamente aos dois últimos, ambos são ativistas habituais, com visibilidade maior para o Miguel Duarte, conhecido pelo seu trabalho ligado a missões civis de resgate de migrantes, no Mediterrâneo. Sei que já escrevi uma crónica a propósito, a louvar-lhe o bom coração e a generosidade. A Sofia Aparício, pelo que se sabe, também costuma marcar presença em certas manifestações em defesa de causas que considerará pertinentes. A polémica gerou-se com a participação de Mariana Mortágua. Uns consideram que procedeu mal, porque ao participar na missão, deixou de cumprir com as suas responsabilidades no Parlamento e para isso foi eleita deputada, pelo que só se quis fazer notar. Para outros, Mariana terá agido em conformidade com a sua consciência e o seu coração. A partir destas duas visões antagónicas, o caldo entornou e, obviamente, passou-se ao exagero. No meio de tudo isto, andará a virtude. Acredito que Mariana terá agido em conformidade com a sua consciência e com a minha também. Netanyahu já tinha ultrapassado os limites há muito e ninguém mais aguentava ver o extremo sofrimento do povo palestino, em especial, o horror passado pelas crianças. É importante, porém, salientar que o povo palestino estava refém de dois demónios: um exterior, o presidente de Israel e o pernicioso inimigo vindo de dentro, o Hamas. Este grupo terrorista que os usa como escudos, que os executa à luz do dia se alguém se atreve à mínima oposição e lhes confisca os bens, fruto da ajuda humanitária que lhes ia chegando, sempre mal e insuficiente. É bom não nos esquecermos de que se o Hamas tivesse um pingo de decência e de preocupação para com o seu próprio povo, talvez, as coisas não se tivessem extremado tanto. Afirmar isto, não iliba Netanyahu da matança cometida e, se houver alguma decência neste mundo, ele e Putin, um dia, responderão no Tribunal Penal Internacional (TPI) pelas suas ações.

De modo que a Mariana Mortágua não pensa diferentemente da maioria ao falar do genocídio em Gaza e está a ser injustiçada quando alegam que ela não condena o Hamas. É falso. Uma pesquisa rápida pela Internet comprova isso mesmo. Em 18 de outubro de 2023, há uma notícia em que Mortágua condena ambos os países, defendendo a autodeterminação do povo palestino, que tem o mesmo direito que os ucranianos. Eu não sou fã da Mariana, nunca votei e não votarei Bloco de Esquerda, mas nesta matéria concordo inteiramente com ela. No conflito israelo-palestiniano, a responsabilidade é dividida por ambos os povos: a existência dos colonatos, por um lado e da Fatah e, recentemente, do Hamas pelo outro. Um imbróglio de difícil resolução. O atual cessar-fogo não me convenceu totalmente, mas vamos ver o que se seguirá. Por isso, não entendo toda a celeuma em torno da Mariana, que fez o que lhe pediu o coração. Se entendo que a flotilha teve alguma importância no desenrolar dos acontecimentos? Nem por sombras. Todos os que lá iam e nós, que ficamos, sabíamos que Israel não ia autorizar a passagem da flotilha. Já Greta Thunberg tinha sido barrada. Se a ação foi importante para alertar para o que se estava a passar? Não… A menos que as pessoas sejam cegas, surdas e mudas, as televisões mostravam em horário nobre os acontecimentos. Portanto, na minha opinião, foi uma operação inócua e que não contribuiu para nada, mas o facto de ser assim não me concede o direito de maltratar a Mariana, de brincar com petições a pedir que Israel não a devolva à procedência. Estes documentos públicos são um exercício sério de democracia e de liberdade e não devem ser usados de forma leviana e jocosa. Também acredito que os ativistas sabiam, minimamente, com o que contavam. Foram detidos, é certo, mas a comunidade internacional assistia e Israel não iria querer prejudicar, ainda mais, a sua imagem no mundo. Para além de tudo, Israel é um Estado democrático e de direito, ainda, e espero que não se deteriore com a presença dos extremistas israelitas, de quem Netanyahu está refém e que são tão maus quanto o Hamas (também é preciso dizê-lo). Foi, assim, com alguma segurança que estes ativistas partiram para lá, também é bom saber-se disso. Foi um gesto válido, que implicou uma certa coragem, mas não uma coragem desmedida. Essa seria necessária para seguir até ao Iémen ou até ao Sudão, por exemplo. E não faltaria por onde escolher. Façam o seguinte exercício: procurem na Internet por países onde vigoram autocracias e aparecerá uma lista de 89 países distribuídos por listas intituladas de autocracias duras, autocracias moderadas e regimes híbridos. Significa que não faltam territórios esquecidos, a terra de ninguém que todos ignoram e onde seria urgente intervir e dar a conhecer.

Assim, a polémica em torno de Mariana não passou de um “fait divers” e de politiquice matreira para a qual não tenho paciência. Deixo, porém, um alerta: a defesa dos palestinos não deve servir de todo para o reacender de um sentimento antissemita nos países europeus. Há muitos israelitas que se opõem à política de Netanyahu. Tal como a maioria dos palestinos não é terrorista, também a maioria dos israelitas não é extremista. Ver queimar livros em praça pública porque se discorda do ponto de vista de Henrique Cymerman, com quem tantas vezes o Papa Francisco falava, é de uma ignomínia indescritível, de gente tão acéfala e fanática quanto aqueles que criticam.

Agora, a prémio Nobel Maria Corina Machado. Em primeiro lugar, é uma mulher; depois, é muito corajosa. Poderia estar noutro país, mas escolheu ficar na Venezuela, sabendo que se os esbirros do Maduro a apanham, tão cedo não vê a luz do sol, na melhor das hipóteses.

Não falta gente de esquerda descontente com a atribuição do prémio Nobel da Paz a Corina, alegando que ela pediu uma intervenção militar contra o próprio país e acusando-a de ligações perigosas a Netanyahu e a Trump, ou seja, de querer incentivar a guerra no seu país. Que raciocínio mais torpe e mais cego! Estes são os mesmo que defendem a flotilha de Mariana contra a opressão que Israel exerce sobre a palestina, mas não reconhecem o ativismo de uma mulher que luta pela liberdade no seu próprio país, desde os tempos de Chávez até ao momento atual em que Maduro mata o próprio povo à fome e o deixa na miséria. E a responsabilidade não é dos embargos dos EUA. É de um sistema político autocrático onde a corrupção, o crime, o cartel, a opressão, a má política económica e o silenciamento da oposição se fazem sentir. Esta mulher corajosa tem a força, a integridade de se opor a tudo isto e gente tonta entende que ela não merece o prémio. A mesma gente que tece loas a Cunhal e a outros pelo combate ao fascismo! Em que ficamos? O combate pela liberdade é sempre sinónimo de paz ou só é válido se for contra as autocracias de direita, porque de esquerda já não interessa?!

Não me venham com o argumento de ingerência externa, porque ninguém é tão ingénuo para não saber que a queda de uma ditadura só se faz com o apoio das forças armadas e estas, normalmente, estão ao serviço dos chefes de estado que untam muito bem as mãos e os beiços aos seus generais para que estes mantenham a ordem no quartel. Portanto, ou acontece de o movimento começar a corroer por dentro das forças armadas, mas de forma a saberem que têm apoio que os possa auxiliar ou as ditaduras perpetuam-se. Esses dois pulhas (Chávez e Maduro) aproveitaram-se da democracia para a derrubarem e se perpetuarem no poder. Não foi para isso que o povo os elegeu. Os venezuelanos não querem Nicolás Maduro. As fortes suspeitas de fraude nas últimas eleições confirmam-no, mas os canalhas são sempre canalhas. Legitimamente, se Corina Machado puder contar com o apoio de Trump para libertar o seu povo da ditadura, aproveitá-lo-á, porque se esperar pelas forças armadas do seu próprio país, compradas a peso de ouro, esperará uma vida eterna e sem sucesso. Depois, se verá, em democracia, o caminho a seguir. Para já, Corina fala numa transição segura e pacífica de um regime autocrático para um regime democrático. Assim seja.

Parabéns, Corina. Faço votos para que esse Maduro e todos os que o rodeiam e contribuíram para o desastre económico da Venezuela e para a opressão dos venezuelanos sejam rapidamente destituídos. Faço votos para que a democracia e a liberdade vençam sempre, sempre!

Não há boas ditaduras, venham elas de onde vierem e não há paz onde não houver liberdade, portanto, quem luta pela liberdade luta pela paz. Prémio bem atribuído.

 

Nina M.

 

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