Flotilha e Nobel
A atualidade
tem sido dominada por dois temas que deixam as redes sociais em polvorosa pela
polarização de opiniões que desencadeiam e por dois comportamentos de ideais
opostos que, afinal, se tocam. O mais incrível é nenhuma das fações perceber
que se iguala ao outro.
Começarei pela
flotilha de Mariana Mortágua, também de Sofia Aparício e de Miguel Duarte.
Relativamente aos dois últimos, ambos são ativistas habituais, com visibilidade
maior para o Miguel Duarte, conhecido pelo seu trabalho ligado a missões civis
de resgate de migrantes, no Mediterrâneo. Sei que já escrevi uma crónica a
propósito, a louvar-lhe o bom coração e a generosidade. A Sofia Aparício, pelo
que se sabe, também costuma marcar presença em certas manifestações em defesa
de causas que considerará pertinentes. A polémica gerou-se com a participação
de Mariana Mortágua. Uns consideram que procedeu mal, porque ao participar na
missão, deixou de cumprir com as suas responsabilidades no Parlamento e para
isso foi eleita deputada, pelo que só se quis fazer notar. Para outros, Mariana
terá agido em conformidade com a sua consciência e o seu coração. A partir
destas duas visões antagónicas, o caldo entornou e, obviamente, passou-se ao
exagero. No meio de tudo isto, andará a virtude. Acredito que Mariana terá
agido em conformidade com a sua consciência e com a minha também. Netanyahu já
tinha ultrapassado os limites há muito e ninguém mais aguentava ver o extremo
sofrimento do povo palestino, em especial, o horror passado pelas crianças. É
importante, porém, salientar que o povo palestino estava refém de dois
demónios: um exterior, o presidente de Israel e o pernicioso inimigo vindo de
dentro, o Hamas. Este grupo terrorista que os usa como escudos, que os executa
à luz do dia se alguém se atreve à mínima oposição e lhes confisca os bens,
fruto da ajuda humanitária que lhes ia chegando, sempre mal e insuficiente. É
bom não nos esquecermos de que se o Hamas tivesse um pingo de decência e de
preocupação para com o seu próprio povo, talvez, as coisas não se tivessem
extremado tanto. Afirmar isto, não iliba Netanyahu da matança cometida e, se
houver alguma decência neste mundo, ele e Putin, um dia, responderão no
Tribunal Penal Internacional (TPI) pelas suas ações.
De modo que a
Mariana Mortágua não pensa diferentemente da maioria ao falar do genocídio em
Gaza e está a ser injustiçada quando alegam que ela não condena o Hamas. É
falso. Uma pesquisa rápida pela Internet comprova isso mesmo. Em 18 de outubro
de 2023, há uma notícia em que Mortágua condena ambos os países, defendendo a
autodeterminação do povo palestino, que tem o mesmo direito que os ucranianos. Eu
não sou fã da Mariana, nunca votei e não votarei Bloco de Esquerda, mas nesta matéria
concordo inteiramente com ela. No conflito israelo-palestiniano, a
responsabilidade é dividida por ambos os povos: a existência dos colonatos, por
um lado e da Fatah e, recentemente, do Hamas pelo outro. Um imbróglio de
difícil resolução. O atual cessar-fogo não me convenceu totalmente, mas vamos
ver o que se seguirá. Por isso, não entendo toda a celeuma em torno da Mariana,
que fez o que lhe pediu o coração. Se entendo que a flotilha teve alguma
importância no desenrolar dos acontecimentos? Nem por sombras. Todos os que lá
iam e nós, que ficamos, sabíamos que Israel não ia autorizar a passagem da
flotilha. Já Greta Thunberg tinha sido barrada. Se a ação foi importante para
alertar para o que se estava a passar? Não… A menos que as pessoas sejam cegas,
surdas e mudas, as televisões mostravam em horário nobre os acontecimentos.
Portanto, na minha opinião, foi uma operação inócua e que não contribuiu para
nada, mas o facto de ser assim não me concede o direito de maltratar a Mariana,
de brincar com petições a pedir que Israel não a devolva à procedência. Estes
documentos públicos são um exercício sério de democracia e de liberdade e não
devem ser usados de forma leviana e jocosa. Também acredito que os ativistas
sabiam, minimamente, com o que contavam. Foram detidos, é certo, mas a comunidade
internacional assistia e Israel não iria querer prejudicar, ainda mais, a sua
imagem no mundo. Para além de tudo, Israel é um Estado democrático e de direito,
ainda, e espero que não se deteriore com a presença dos extremistas israelitas,
de quem Netanyahu está refém e que são tão maus quanto o Hamas (também é preciso
dizê-lo). Foi, assim, com alguma segurança que estes ativistas partiram para
lá, também é bom saber-se disso. Foi um gesto válido, que implicou uma certa
coragem, mas não uma coragem desmedida. Essa seria necessária para seguir até
ao Iémen ou até ao Sudão, por exemplo. E não faltaria por onde escolher. Façam
o seguinte exercício: procurem na Internet por países onde vigoram autocracias
e aparecerá uma lista de 89 países distribuídos por listas intituladas de autocracias
duras, autocracias moderadas e regimes híbridos. Significa que não faltam territórios
esquecidos, a terra de ninguém que todos ignoram e onde seria urgente intervir
e dar a conhecer.
Assim, a
polémica em torno de Mariana não passou de um “fait divers” e de politiquice
matreira para a qual não tenho paciência. Deixo, porém, um alerta: a defesa dos
palestinos não deve servir de todo para o reacender de um sentimento
antissemita nos países europeus. Há muitos israelitas que se opõem à política
de Netanyahu. Tal como a maioria dos palestinos não é terrorista, também a
maioria dos israelitas não é extremista. Ver queimar livros em praça pública
porque se discorda do ponto de vista de Henrique Cymerman, com quem tantas
vezes o Papa Francisco falava, é de uma ignomínia indescritível, de gente tão
acéfala e fanática quanto aqueles que criticam.
Agora, a prémio
Nobel Maria Corina Machado. Em primeiro lugar, é uma mulher; depois, é muito
corajosa. Poderia estar noutro país, mas escolheu ficar na Venezuela, sabendo
que se os esbirros do Maduro a apanham, tão cedo não vê a luz do sol, na melhor
das hipóteses.
Não falta gente
de esquerda descontente com a atribuição do prémio Nobel da Paz a Corina,
alegando que ela pediu uma intervenção militar contra o próprio país e
acusando-a de ligações perigosas a Netanyahu e a Trump, ou seja, de querer
incentivar a guerra no seu país. Que raciocínio mais torpe e mais cego! Estes
são os mesmo que defendem a flotilha de Mariana contra a opressão que Israel
exerce sobre a palestina, mas não reconhecem o ativismo de uma mulher que luta
pela liberdade no seu próprio país, desde os tempos de Chávez até ao momento
atual em que Maduro mata o próprio povo à fome e o deixa na miséria. E a
responsabilidade não é dos embargos dos EUA. É de um sistema político
autocrático onde a corrupção, o crime, o cartel, a opressão, a má política
económica e o silenciamento da oposição se fazem sentir. Esta mulher corajosa
tem a força, a integridade de se opor a tudo isto e gente tonta entende que ela
não merece o prémio. A mesma gente que tece loas a Cunhal e a outros pelo
combate ao fascismo! Em que ficamos? O combate pela liberdade é sempre sinónimo
de paz ou só é válido se for contra as autocracias de direita, porque de
esquerda já não interessa?!
Não me venham
com o argumento de ingerência externa, porque ninguém é tão ingénuo para não
saber que a queda de uma ditadura só se faz com o apoio das forças armadas e
estas, normalmente, estão ao serviço dos chefes de estado que untam muito bem
as mãos e os beiços aos seus generais para que estes mantenham a ordem no quartel.
Portanto, ou acontece de o movimento começar a corroer por dentro das forças
armadas, mas de forma a saberem que têm apoio que os possa auxiliar ou as
ditaduras perpetuam-se. Esses dois pulhas (Chávez e Maduro) aproveitaram-se da
democracia para a derrubarem e se perpetuarem no poder. Não foi para isso que o
povo os elegeu. Os venezuelanos não querem Nicolás Maduro. As fortes suspeitas
de fraude nas últimas eleições confirmam-no, mas os canalhas são sempre
canalhas. Legitimamente, se Corina Machado puder contar com o apoio de Trump
para libertar o seu povo da ditadura, aproveitá-lo-á, porque se esperar pelas
forças armadas do seu próprio país, compradas a peso de ouro, esperará uma vida
eterna e sem sucesso. Depois, se verá, em democracia, o caminho a seguir. Para
já, Corina fala numa transição segura e pacífica de um regime autocrático para
um regime democrático. Assim seja.
Parabéns,
Corina. Faço votos para que esse Maduro e todos os que o rodeiam e contribuíram
para o desastre económico da Venezuela e para a opressão dos venezuelanos sejam
rapidamente destituídos. Faço votos para que a democracia e a liberdade vençam
sempre, sempre!
Não há boas
ditaduras, venham elas de onde vierem e não há paz onde não houver liberdade,
portanto, quem luta pela liberdade luta pela paz. Prémio bem atribuído.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário