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sábado, 30 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 397

 

A vida tal como é

               A vida não é fácil. Põe-nos à prova inúmeras vezes e puxa-nos o tapete quando menos esperamos, obrigando-nos a equilíbrios difíceis, a tropeções, quedas e recomeços. Oscila entre os píncaros das poucas conquistas e os fundos das perdas, das dores e das angústias.

               É assim quando um amor acaba, é assim quando um amor desponta, é assim quando somos abalados por eventos que nos engolem. Não poupa ninguém. Nisso, a vida é bastante democrática, cada um com os seus sofrimentos e alegrias, realizações e frustrações. Viver exige coragem, mesmo a existência mais tranquila, em algum momento, será transtornada. Uma pedra inesperada que se desloca e surge no caminho que precisamos de continuar a percorrer. Ela é cíclica e exige paciência, resiliência, pede sabedoria para que se compreenda que depois de um ciclo mau virá um ciclo bom. A voz do povo nem sempre tem razão, mas às vezes, acerta: não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe.

               Enquanto escrevo, ocorre-me a situação vivida pelo escritor Pedro Chagas Freitas. Não sou apreciadora do género que oferece aos leitores, mas tenho de lhe reconhecer a coragem. Depois de já ter perdido o pai, viu-se na situação pela qual ninguém quer passar e pela qual tantos passam: o seu filho, o seu pequeno Benjamim, juntamente com os pais, a lutar pela vida. Felizmente, após duras batalhas, três meses de internamento hospitalar, receios e ânsias tão dolorosas, o pequeno Benjamim venceu. O Pedro a aprender com o filho, todos os dias. Talvez nunca o pai tenha escrito com tanta verdade nem com tanto temor, à medida que ia dando notícias ao seu público. Num gesto bonito, o Pedro escreveu “O Rei Tigão”, um conto infantil que expõe as misérias da vida e o seu absurdo, mas onde, ainda assim, há espaço para o riso e para a amizade. Não ganhará um cêntimo. O dinheiro reverterá a favor da Unidade de Hepatologia de Coimbra, o serviço que salvou o seu menino. Fica aqui a sugestão de um presente de Natal. O Benjamim venceu, mas há tantos outros que perdem a guerra e deixam os pais inconsoláveis, na dor maior… E continuam. A vida exige coragem. Todos os dias, com os filhos sempre diante dos olhos a bailar-lhes no coração. Pais enormes! Seres gigantes! Os heróis de ontem, de hoje e de amanhã… Diz-se que cada um só pode dar o que tem para oferecer e muitos destes seres, para quem a vida foi a perder, ainda têm alma para dar. Nunca perderam a doçura no olhar. Conseguiram conservar a pureza, o olhar inocente e limpo perante a vida, mesmo depois do desespero. É tão difícil consegui-lo!

                Li um pequeno trecho de Edgar Morin a propósito da expressão sapiens, que no mínimo, significará razão, mas aponta para a sabedoria, a sapiência, acabando por ligá-la à afetividade. Deixou-me a pensar… Na verdade, a inteligência sem o afeto, sem que o amor viva no interior do homem, cria monstros. Não faltam exemplos históricos a comprová-lo, mas também há seres pródigos em ternura e talvez sejam estes os heróis que verdadeiramente merecerão ser lembrados, aqueles que resistem estoicamente às adversidades de coração limpo, como o preso político que, depois do 25 de abril, religiosamente, recebia em sua casa, às três da tarde, na véspera de Natal, o ex-PIDE que lhe impedira a fuga e que sempre lhe levava um presente. Um pedido de perdão anual, que era sempre concedido, como narra Luís Osório, nos seus Ficheiros Secretos. Nada disto seria possível se o afeto não os habitasse.

            Talvez tenhamos de passar pela vida com ternura, porque quando ela nos esmaga, só os afetos nos resgatam. Eles e a esperança, os motores que nos mantêm à superfície e nos permitem respirar, mesmo que seja com esforço, em certos momentos.     A vida é feita disto. É uma tragicomédia sem ensaio prévio, momentos de fragilidade e de misérias e também momentos de risos e de alegrias. Um pêndulo que oscila entre um ponto e outro e, nesse vaivém de que a vida é feita, resta-nos beber tudo: a ambrósia e a cicuta, quando assim tem de ser.

 

Nina M.

 

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Estranhamente

Estranhamente
Não tenho nada para te dizer
Tudo o que dissesse poderia
Ser usado contra mim
E no silêncio é contra mim que ando
Com o esqueleto ao contrário
E o vento a assobiar-me nas costelas

Há silêncios pesados como tumbas
Irrespiráveis
Como se perante a morte
Acabasse o direito à vida
Como se o adiar da eternidade
Resultasse em escárnio
Dos que a avistam e recusam

Na tragédia sobra o silêncio
O pântano do que ainda há
Mas tão indizível que se faz vazio
E tu... Preso no lodaçal... À espera
A lenta agonia do caminho da esperança
A vida oscila entre os destroços
E as  colinas do que construímos

Frágil, inútil, um cão danado...

terça-feira, 26 de novembro de 2024

Veio a noite

Veio a noite
Cobriu-me o véu de inverno
A gelar os ossos
A quebrar as esquinas da alma
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

Veio o vento de madrugada
A revoar os recantos do coração
Sobram detritos nas veias
Sangue contaminado - aflição
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

Veio a chuva com ímpeto
Fustigar as vidraças
Olhos inundados torrente sobre a face
Naúfrago sôfrego de vida
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

E no meio da tormenta
Da procela inusitada
Há sempre um raio de luz
A iluminar a estrada
[A vida é sempre a perder]
Ecoa o homem do leme

A vida é todos os dias
O destino é viver...





sábado, 23 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 396

 

               Encontros e fugas

            Três amigas que gostam de literatura e que souberem que o professor Carlos Reis iria estar em Famalicão para uma conferência sobre Camilo e Eça decidiram assistir, pois não é sempre que se tem a oportunidade de ouvir tão ilustre convidado.

            O serão prometia ser auspicioso, apesar do desdém dos “aborrescentes”, que reviram os olhos e encolhem os ombros quando sabem da atividade planeada. “A sério que vais a uma aula?! Ó mãe! Tu não és muito normal!…

            Pois muito bem… Conforme o combinado, encontramo-nos e fomos ter ao destino, com a ajuda do GPS, de maneira a estar lá um pouco antes das 21h30, hora prevista para dar início à comunicação. Seria suposto encaminharmo-nos para a Sala da Cultura Crédito Agrícola Mútuo. Era a única informação que possuíamos. Certo é que chegamos a uma dependência do banco, mas estava tudo apagado, vazio, e não havia aspeto de qualquer evento cultural ou outro nas imediações… Bem, certamente, não estamos no sítio certo… Vejo um senhor com uma certa idade a aproximar-se para entrar no café defronte. Dirijo-me a ele, em passo acelerado e pergunto-lhe se me sabia dizer onde ficava a sala da cultura onde seria realizada a conferência do professor Carlos Reis. Desconhecia, mas sugeriu que o seguisse até ao café para perguntar ao senhor Machado, que era dali e, certamente, saberia… Assim fiz. Esse nome também lhe soou estranho e acabaram por sugerir que talvez fosse a Casa das Artes, o único espaço dedicado a essas atividades culturais…

Não era o que a informação nos dizia, mas sem a morada, só nos restava ir verificar à Casa das Artes e lá, quem sabe, saberiam dizer-nos alguma coisa. Entrámos, perguntámos… Não era ali e também não sabiam da existência de tal espaço, acrescentando que há pouco um casal havia perguntado o mesmo, mas que pesquisaram na Internet… Pois claro, isso já nós tínhamos feito também… Para não desperdiçar a viagem, voltámos a inserir os dados no GPS e… Calcorreamos Famalicão. Andámos de Herodes para Pilatos um bom pedaço. Acabamos por tropeçar noutro senhor a quem perguntámos pelo destinos pretendido e que teve a amabilidade de nos levar até lá. Efetivamente, um edifício bonito, imponente, iluminado, com gente lá dentro e a porta fechada. Quais alunos que chegam atrasadíssimos a uma aula e já não têm a coragem de entrar! Lá ficamos uns segundos a olhar para o cartaz com a cara do professor a censurar-nos o atraso. Já passavam quarenta e cinco minutos da hora. A Lurdes Martins, sempre expedita, ainda antes de nos dirigirmos à casa das Artes, tentou ligar por Messenger ao professor que, obviamente, não atendeu.

            Não restou alternativa… Viemos para casa desconsoladas, com o amargo da desilusão. Mais uma vez, a Lurdes envia uma mensagem ao professor a pedir desculpa pelo telefonema, relatando que tinha andado perdida por Famalicão, com outras duas doidas, que fizeram vários trajetos até encontrar uma alma gentil que as conduzira ao local certo, mas que a porta já estava fechada e já passavam quarenta e cinco minutos da hora, pelo que tinha sido uma desilusão. Logo de seguida, obteve a resposta do douto professor a consolá-la do desfecho: valia a intenção, também ele e o organizador que o convidou se viram aflitos para dar com o local, que também desconheciam!

            Para nos vingarmos deste desfecho, hoje, foi dia de Luís Osório, em Ermesinde. Orientámos a rota e apesar de eu e a Lurdes já termos assistido ao seu Ficheiros Secretos, voltámos, porque o espetáculo nunca é exatamente igual, mas a qualidade é sempre a mesma. Algumas histórias repetem-se, mas é sempre bom recordar e ainda tivemos a oportunidade de aplaudir a Aurora Cunha e a Rosa Mota, também presentes.

            Para a próxima, temos de arranjar forma de trazer o professor Carlos Reis a Paços de Ferreira, a lugar escorreito e de fácil acesso, ele, que durante um certo intervalo de tempo, foi o homem mais procurado em Famalicão, mas que não se deixou encontrar!

 

            Nina M.

sábado, 16 de novembro de 2024

Crónica dos Maus Costumes 395

 

Vítimas do S. Martinho

            As probabilidades de alguém assistir a um jogo de vólei, no topo da bancada e levar com uma bola de hóquei a toda a velocidade, por efeito de ricochete, eram mínimas, mas as coisas acontecem e sucedeu a alguém.

É conhecida a teoria do caos e o efeito borboleta e o que vou narrar exemplifica-a. Bastaria que eu tivesse escolhido ir ver a partida ao invés de corrigir testes, que afinal ficaram por corrigir, e tudo teria sido diferente.

De banho tomado e de pijama vestido, com uns carapins quentinhos, preparava-me para me sentar quando recebo um telefonema do marido a informar que tinha sido apanhado de surpresa por bola de hóquei que lhe acertara em cheio na testa. O impacto foi de tal forma violento que, prontamente, foi chamado o INEM que o conduziu ao hospital. Uma fúria tomou conta de mim… Qual a probabilidade de alguém que assiste a uma partida de vólei, num sítio específico da bancada ser colhido por uma bola de hóquei oriunda do recinto de jogo contíguo, numa trajetória diagonal?! O miúdo que bateu a bola, no treino, desencadearia uma série de acontecimentos imprevistos, gerando o caos, tal como prevê a teoria. O marido não acabou de ver o jogo, eu não corrigi testes, voltei a vestir-me e fui ter ao hospital. Pelo menos, a filha ganhou a partida. Enquanto esperava que ela chegasse do jogo para poder sair tranquila, ele cruzou-se no hospital com vizinhança boa. Valeu-lhe a companhia até à minha chegada.

Inicialmente, a experiência foi algo kafkiana:

- Tem de preencher a ficha. É no outro balcão. Vira à esquerda, ao fundo, novamente à esquerda.

- Certo. Esquerda… Fundo… Esquerda… Boa noite, vinha aqui para…

- Já está fechado. Fecha à meia-noite! Já tenho tudo desligado.

- Foram as suas colegas que disseram que era para vir aqui…

- Ai!… Lamento, mas já fechou.

- (Não lamentas coisa nenhuma, pensei…) E então? Dirijo-me ao outro balcão, outra vez?

- Sim. Elas sabem bem que já fechamos.

- Direita, fundo, direita… Boa noite, novamente! Do outro lado já estava fechado, tudo desligado. Disseram-me que fecha à meia-noite e que vocês sabem…

- Ah! Ainda faltam dois minutos… Pronto… Eu trato disso (disse-o com ar de fastio). Fui interromper a cavaqueira. Como se chama o paciente? E o contacto da senhora?

Colocam-me a fita no pulso e deixam-me entrar… Corredores, seguranças, macas… Um corrupio de gente para trás e para a frente. Ninguém vê quem chega, ninguém vê ninguém. Tive de incomodar… desculpe, precisava de saber onde fica a cirurgia interna… Entra ali, vira à direita, depois… Já não me lembro… Corredores, gabinetes, mais corredores… Lá encontrei… Sentei-me. Levantei-me. Assisti ao curativo e aos pontos que estavam a ser dados. Novo corredor, nova sala, à espera para fazer a TAC.

Não sei qual foi o bater de asas que desencadeou tudo quanto se passou a seguir…

Aproxima-se um sujeito cinquentão bem entrado, bem-arranjado, de boina na mão e cabeça enfaixada… Sangue na parte de trás…

- Então… Eu vou ficar aqui, no meio desta gente toda? – pergunta à enfermeira – enquanto tenta manter a pose de uma certa altivez.

- Pois claro! - responde-lhe – não me diga que está com medo da Covid…

Não percebi o que lhe respondeu… Entrou a resmonear, a falar consigo mesmo, a andar um pouco torto e a entaramelar as palavras… Pegou no telemóvel. Baixinho, quase em surdina, explicava a alguém que estava no hospital, que tinha caído…

 Que grande piela, pensei! Se estivesse aqui a Dona Júlia, diria que se te destilassem o sangue, poderiam fazer vinho do porto! Calei-me. Isto… Com ébrios vale mais o silêncio. Ele tagarelava sozinho…

Feita a TAC, regresso ao anterior corredor. Há que aguardar pacientemente… Nova cadeira. Olho para o relógio… Uma da manhã… Ouço alguém que se aproxima a falar alto, animado… Nariz e braço enfaixados… Parecia um Cristo… Senta-se pesadamente na cadeira. Comentei baixinho: este é comparsa do outro. Vieram da mesma festa… O indivíduo pega no telemóvel e faz uma chamada:

- Mário Jorge! Onde estás, Mário? (falava muito alto) Eu também estou no hospital, mas não te vejo… Ó Mário! Já te pus um processo, pá! A culpa foi tua! Ria-se. Vais pagá-las! Vias!... Olha… Vou pedir 750 mil euros e vou reformar-me… Tenho este braço incapacitado para o resto da vida… Vais, vais…

Talvez o outro tenha sido chamado para fazer a TAC, porque desligou. A esta altura, já me via aflita para permanecer séria… Olhava para o fulano, que já tinha o nariz como uma batata e para a sua boa disposição, fruto do álcool, que o deixava anestesiado… Pega num cigarro.

- Olhe que o senhor não pode fumar aqui.

- Eu sei! Eu vou lá fora e olhe… Se chamarem pelo António Machado… Diga que eu morri! Ele morreu. Diga assim.

Ainda não tem dado meia-volta, apercebe-se do compincha, que saía da TAC e vinha para o mesmo corredor… Numa cena de filme, correm um para o outro…

- Ó Mário! Estás aqui! Até que enfim te encontro! Abraço daqui, empurrão dali… Ouviu-se um catrapum, pás, tás… Os doentes nas camas à espera de serem atendidos a rirem-se como perdidos… O Mário e o António enrolados, em cima das camas rolantes e o enfermeiro, aflito: “então, meus senhores! Isso é para ficar quieto! Ninguém mexe!” Quais adolescentes de idade avançada!

Lá vêm os dois esmoucados abraçados, corredor fora, enquanto o Mário Jorge proclamava para quem o quisesse ouvir que eram vítimas do S. Martinho! Esse malvado!… Param junto de uma senhora que estava com dor, coitada… Ela não se ria… E diz o António: “esta está pior do que eu, olha bem… Coitada… Vai morrer… Amanhã…”

 Por esta altura, eu já tinha perdido a compostura e só me lembrava da crónica que escreveria…

Foi chamado o António Machado. Senta-se o Mário Jorge ao meu lado… Ai! O meu lado diabólico a querer soltar-se e a querer pormenores da história… Não preciso. Mete conversa…

- Que grande livro! – diz-me - Isso… Tem aí livro para dois dias inteiros neste hospital! (Continuava a entaramelar-se todo e, às vezes, não o percebia…)

- Pois tenho - assenti. Tenho tempo.

- Tem alguma coisa? – pergunta-me. Eu, não. E o senhor? Espetou-se aos tombos?

- Pois foi… Eu só queria divertir-me… Isto é o hospital de Penafiel, não é?

- É.

- Sabe dizer-me como posso fugir daqui? Eu já tentei, mas não dou com a saída… Foi a polícia que me trouxe…

- Não pode sair - disse-lhe a sorrir - Agora, tem de esperar pelo resultado da TAC que fez.

- Ó! Eu não queria estar aqui… Não tenho nada… Só tenho aqui uma coisita… Foi a polícia que me trouxe… Eu não gosto de violência nem de incomodar…

- O Mário Jorge levanta-se, entretanto, é chamado novamente. Em cima de uma cadeira, fica o telemóvel, a carteira e o tabaco do compincha António. O Mário liga… liga… Ninguém atende…

02h30. Finalmente, alta! Continuava a rir-me dos episódios e só me lembrava do velho homem de casaco coçado, do conto do Mário Dionísio, que entra no elétrico à pinha e, descontraidamente, começa a assobiar com um à-vontade que deixa os passageiros, inicialmente, desconfortáveis, exceto uma criança e a sua mãe, mas ao longo do trajeto, a descontração instala-se.

Esta dupla de marretas - Mário Jorge e António - tiveram esse efeito nos corredores inóspitos do hospital. O bom vinho de ambos arrancou algumas gargalhadas. A mim, ajudaram-me a passar o tempo. Não li nada, é certo, mas ri bastante. Hoje, ao acordar, pensei nos dois desgraçados e nas dores que deveriam estar a sentir, principalmente, o António, de nariz empanzinado… Ontem, nada lhes doía! Pudera! A anestesia do álcool valeu-lhes… Eram as vítimas alegres do S. Martinho, mas hoje, coitaditos… Não devem estar assim tão felizes…

Penso cá com os meus botões que os homens… Nãaaa… tanto faz terem 16 como cinquenta… Não podem sair sem mulheres, em grupo! Dá-lhes para isto… Malham no vinho e depois esmoucam-se todos!

Que bater de asas terá causado o caos aos amigalhaços foi o que não descobri. Porém, ganhei uma crónica. Estou a pensar pedir a reserva de uma cadeira nos corredores de um hospital qualquer. Tenho a impressão que lá não devem faltar histórias para contar!

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 9 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 394

 

Vivências e processos

O meu aborrescente decidiu lembrar-me do meu afazer habitual de sábado à noite, ao jantar. “Tens de escrever a tua crónica”, alerta-me. Respondo que sim, mas que ainda nem sabia sobre o que ia escrever… É então que do alto da sua sapiência me diz:

- Ai, ainda não sabes?! Olha, ficas a saber que se queres ser bem-sucedida nisso, tens de fazer um plano… Não é assim… Os outros fazem planos, com tempo…

Estive dois segundos boquiaberta para lhe responder de seguida que… Sim senhor… Vindo dele era um conselho absolutamente extraordinário!… Não fosse o ditado “olha para o que eu digo e não para o que eu faço”, até estaria muito certo…

- Ficas a saber – responde - que eu faço planos para os meus dias… Só que às vezes eles correm mal… por isso detesto quando já tenho tudo pensado no que vou fazer e vocês me vêm inquietar para eu fazer isto ou aquilo…

- Meu menino, digo-lhe, foram muitos anos a ter de te responsabilizar… Como não partilhas os teus planos e não sabemos para o que te vai dar, estamos sempre a alertar-te… Não vás esquecer do que tens de fazer…

A conversa ficou por aqui e como me manda escrever, mas não lê uma linha, nem imagina as vezes que é referenciado… Acabei por lhe dizer que se ele desistir da ideia de engenharia informática pode sempre enveredar por um caminho na comédia…  Porém, ficava absolutamente mais tranquila, porque, finalmente, o meu filho já faz planos, mesmo que saiam gorados, de vez em quando…

A irmã, mais metódica e organizada, olha para ele, encolhe os ombros e abana a cabeça como quem diz que o irmão não tem remédio… Planos já faz ela há muito… Quando não lhe diz que não fosse a idade e o conhecimento das matérias, sente que está mais preparada para ir para a Universidade do que ele, apontando-lhe tudo o que já é capaz de cozinhar…

Eu, que pari estes dois seres tão distintos, vou olhando para ambos com o mesmo amor, a tentar descortinar o que sairá dali. Ela mais pragmática, ansiosa, mexida e briosa; ele mais relaxado, com um sentido de humor peculiar, sem angústias e sem pressas… Ela diz não querer medicina, mas quer algo na área da saúde; ele, para já fala na engenharia informática, mas tem saídas mais artísticas…

No outro dia, fez questão de me dizer que tinha feito uma boa ação que me teria deixado orgulhosa… Já nem me lembro do que foi… Sei que foi prestativo ou que ajudou alguém e lá lhe respondi que esperava que os ensinamentos colhessem os seus frutos…

Olho-os. Ela, sempre mais adulta e despachada. Desde sempre. A Matilde é a menina que aos seis ou sete anos era capaz de preparar o seu pequeno-almoço e o lanche para a escola. A menina que assume as suas responsabilidades e que detesta falhar. Ele, o que se esquecia de todos os recados… Ele… agora mais crescido, mais responsável, mas com tanto para amadurecer ainda…

Eu, aqui, a ampará-los para que possam ser o que quiserem, para voarem em direção ao seu destino, de asa aberta para os receber a cada regresso a casa.

Nina M.

 

 

Porvir

Será que ainda me verás no futuro?

Mesmo velha e um pouco engelhada

Ainda procurarás o encantamento

No meu olhar?...

Mais pardo quem sabe...

Menos esperançoso no brilho...

Será que ainda nos reconheceremos assim

Imperfeitos e tão perfeitos para o outro

Ainda nos veremos os mesmos

Ou seremos estranhos enfiados

Num corpo usado e gasto e velho...

Ainda me contarás histórias 

E dirás: "sempre gostas de histórias"...

Ou me pedirás ainda restos de escrita por ler...

Seremos ainda amantes na confidência 

De um ombro dado depois do amor

E restará ainda o olhar aceso que

Poisa sobre o fulvo amanhecer outonal

Ou sobre o rosáceo céu a despedir-se do sol...

Vejo sempre a partida

Como um ocaso que se tarda de tão belo

[E as minhas mãos vazias do que não tive]

Um desejo de repouso como quem cansa da vida 

e se despede com atrevida elegância

Uma figura ao longe que se afasta devagarinho... 

sem dor nem espanto...

Como quem entra naturalmente em casa

Como quem pisa um paraíso qualquer 

 

 






quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O pêndulo


Oscila a vida
Como um pêndulo
Num perpétuo movimento
Num balancear seguro

Ambivalente
Entre a alegria e a tristeza
A paz e a angústia
O desejo e o tédio
O ser e o não ser

A vida é baloiço de jardim
Sob o sol e a chuva
É aquilo que existe
Entre Deus e mim

sábado, 2 de novembro de 2024

Crónica de Maus Costumes 393

 

Diferenças e convivência

               A convivência e coabitação não são fáceis. Há ajustes, tolerância e cedências necessárias perante visões de mundo diferentes e personalidades distintas. Há personalidades que não se ajustam, por mais que as pessoas gostem umas das outras, o que pode dificultar uma convivência sadia.

            Para que duas pessoas possam coabitar ou conviver sadiamente é necessário que, no mínimo, tenham valores e princípios alinhados e gostos semelhantes. Se for para ser amor, então, ainda são necessários mais um pozinhos mágicos de mais alguma, mas isto é o mínimo exigível. A famosa teoria de que os opostos se atraem até pode ser verdadeira, inicialmente, e ter muita piada, mas em algum momento redundará em fracasso. Com o tempo, os opostos afastam-se. Se não é fácil manter a proximidade com quem, de alguma forma, nos identificamos, fará com aqueles com quem estamos nos antípodas!

            Evidentemente, há diferenças superáveis e diferenças insanáveis. Os valores e princípios pelos quais orientamos a nossa caminhada e nos quais assentamos a nossa ética pertencem ao domínio do que não pode ser negociado. Se para alguém o valor da honestidade e da integridade for indispensável, por exemplo, não conseguirá permanecer ao lado de alguém que seja mais flexível e que use da consciência da manga larga em certas situações. Não compactuará com estratégias menos lícitas para alcançar os objetivos pretendidos. Se alguém pauta a sua vida por valores humanistas, não suportará a convivência com alguém muito moralista, mas pouco tolerante e discricionário. Nestes casos, talvez se esteja perante diferenças insanáveis. No entanto, também há as diferenças superáveis, que dizem respeito à personalidade, mas que se pode, com vontade, ultrapassar. Se uma pessoa gosta de dormir até tarde e a outra de se levantar cedo, basta que se respeitem para que nem um nem outro se incomodem mutuamente. Há quem diga que os relacionamentos terminam pelas pequenas coisas e não pelas maiores… Bem, eu entendo que podem terminar por uma infinidade de fatores e também pelas pequenas, porque a convivência é feita de irritações que se vão tolerando: as pequenas idiossincrasias de cada um que cansam ao cabo de uns anos e irritam sempre, mas que estão presentes, porque as pessoas são o que são, inconscientemente e, mesmo que façam um esforço, no sentido de minimizar o que irrita o outro, haverá sempre momentos em que o que se é se torna mais forte. Quando há um comportamento padrão que nos enerva, significa que é da natureza da pessoa e, provavelmente, tenderá a ser repetido, mesmo que seja alguém comprometido e esforçado.

            Perante isto, confrontando-nos com um comportamento ou maneira de ser que nos desagrada especialmente, só há duas atitudes racionais que se pode tomar e uma absolutamente irracional. Pode-se escolher o afastamento, apesar do amor ou da amizade por se entender que aquele tipo de postura só causa tristeza e mal-estar, um desconforto com o qual não se é capaz de lidar e uma angústia à qual se tem de pôr fim, a bem da sanidade mental. Isto é uma escolha racional. Por outro lado, a pessoa pode entender que o comportamento a incomoda verdadeiramente, mas que respeita o outro e ficará ao seu lado, esperando ver um esforço para minimizar o problema, não deixando de a apoiar e de estar ao seu lado. É também uma escolha racional e válida e que deve ser respeitada. A irracionalidade está, porém, na escolha de ficar, mas com o propósito de querer mudar o outro à força, por coação, manipulação, violência, seja o que for… Acontece que quem o faz torna-se numa pessoa tóxica, que exige do outro o preenchimento das suas necessidades e vazios. Ninguém é obrigado a suprir as necessidades do outro. Esse é um papel que cumpre a cada um em relação a si mesmo e não é justo que se queira mudar alguém, apenas para ver as suas necessidades atendidas. Todos temos o direito de não aceitar ou de não tolerar certos comportamentos, mas ninguém tem o direito de manipular nem de tentar colonizar o outro, tentar transformá-lo no que não é, na base da discussão e da força. O máximo que se pode fazer é tentar chegar a um entendimento confortável para ambos, se houver razoabilidade.

            Há pessoas matinais e pessoas notívagas. Há quem acorde a cantar de manhã e quem não suporte a cantoria nem nenhum barulho matinal. Há que respeitar essas personalidades que acompanham as pessoas ao longo da vida. Não adianta querer obrigar aquele que gosta de prolongar um pouco mais o sono a levantar-se cedo nem obrigar o que gosta de se levantar a permanecer na cama. Não se pode obrigar o outro a ser o que não é por mero capricho ou forma de encarar o mundo. Não adianta pedir ao ansioso para ter calma nem ao calmo para se apressar. Há que respeitar os tempos de cada um, desde que cada um cumpra com as suas obrigações nos prazos necessários.

            Enfim, sem estes reajustamentos e adaptações, a vida em sociedade torna-se infernal e é preciso que nos lembremos sempre de que o outro tem direito a ser quem é e o máximo que podemos fazer é escolher entre ficar, com uma dose extra de paciência para gerir as diferenças ou partir se as considerarmos insanáveis. Só não vale a pena querer mudar um comportamento padrão, porque, no final, ninguém muda ninguém e o desgaste é tremendo para ambos.

            Há, por isso, quem afirme que o amor é uma escolha diária e, a partir de uma certa altura, percebe-se claramente que também é isso.

 

Nina M.