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sábado, 29 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 380

 

Os professores marcam vidas

            Penso que todos nós tivemos professores que nos marcaram quer pela positiva quer pela negativa.

            Os docentes são, antes mais, seres humanos e, como tal, falíveis. Significa que, como em todos os ofícios, há melhores e piores profissionais. Porém, nenhuma outra classe profissional, exceto jogadores, treinadores e árbitros de futebol, é tão escrutinada quanto o professor e tão apetecível à sanha alheia… Talvez o facto de o mestre passar tanto tempo com os seus alunos possa explicar tal comportamento. Exige-se ao professor aquilo que não se exige ao médico, ao padeiro, ao marceneiro ou ao engenheiro: que entenda a sua profissão como uma missão, que esteja sempre disponível para o aluno e, preferencialmente, que não se atreva a ter um dia mau como todos os outros seres nem a infelicidade de errar…

            No entanto, os professores erram. Falham como toda a gente. É bom que eles mesmos saibam disso, que possivelmente falham todos os dias, porque não são diferentes de ninguém, mas também é preciso que os outros saibam que assim é com toda a gente. Todos falhamos diariamente. Espero e procuro ter a capacidade para refletir e perceber o que não fiz bem e estar recetiva à crítica construtiva. Por isso fazemos formações, para melhoria da prática letiva, que nunca será perfeita, mas que se pretende sempre melhorar, desde que haja abertura de espírito e vontade para isso.

            Tive professores maus, medianos, bons e muito bons, ao longo do meu trajeto. No entanto, o texto de hoje não servirá para falar dos professores que falham, apesar de, certamente, mesmo os muito bons terem falhado também. Serve o texto para prestar homenagem aos professores que contribuíram para aquilo que eu hoje sou. Eles talvez não se tenham apercebido e eu, só mais tarde ganhei essa consciência. Da importância que aqueles professores tiveram para mim. Desde logo, tenho de destacar a minha professora primária (naquele tempo era essa a designação e não primeiro ciclo), logo é o nome que atribuo, a Dona Esperança, que sei que tinha um carinho especial por mim. Foi com ela que fui avançando na arte da leitura e da escrita, das contas também, mas a matemática, nunca me cativou… Depois, obrigatoriamente, no ensino secundário, tenho de referir dois professores, ambos de Filosofia (ainda hoje cultivo apreço pela disciplina e a responsabilidade é deles): o professor João Lima, no décimo primeiro e a professora Celestina, no décimo segundo ano.

            O professor João Lima, falava baixinho. Nunca elevava o tom de voz e conquistava assim o silêncio sepulcral, enquanto caminhava em torno da sala e, sem qualquer manual, papel ou apontamentos perorava sobre Descartes ou o que fosse. Abria a aula com um sumário que, na verdade, era uma planificação com os conteúdos a abordar e que escrevia religiosamente no quadro. A partir daquele momento, o professor João explicava, ia colocando questões aqui e acolá e nós acompanhávamos, escrevendo tudo o que era dito, porque tal como o próprio professor disse no início do ano, o manual seria feito pelos alunos. Foi o primeiro professor que usou aquele método e eu achava extraordinário. E bebia-lhe as palavras, enquanto apreciava a sua desenvoltura discursiva. Eu acho que o professor João fazia umas belas caminhadas enquanto dava aula… Na verdade, ele era um peripatético. Só não o fazia ao ar livre, como aconselharia Aristóteles. Sempre muito calmo e cordial. O professor João Lima não era propriamente próximo dos alunos, no sentido paternal do termo, mas também não era austero. Conseguia, com o seu tom de voz e a sua calma, ter o ambiente propício à aprendizagem. Os testes eram três perguntas escritas no quadro, que não precisávamos de passar para o enunciado e às quais bastava responder. No tempo em que os papéis não eram assim tão importantes e o ensino menos burocrático. Três perguntas davam para encher pelo menos uma folha de teste, mas era normalíssimo precisarmos de segunda… Os alunos gostavam do doutor que tinha uma forma diferente de trabalhar, mas um discurso absolutamente organizado, claro e percetível, sem precisar de qualquer auxílio de memória. Eu achava-o admirável.

            A professora Celestina, minha professora do 12º ano, muito competente e exigente, em todas as aulas nos entregava o resumo da mesma, em fotocópia, ainda que também registássemos o que nos explicava. Também neste ano o manual era feito por nós. Fazia-nos o teste sempre em dois dias (parte um e parte dois) e recuperava sempre a matéria anterior. Coube-lhe a tarefa de nos preparar para a prova de aferição (assim se chamava, mas na verdade era a específica do curso). Isto, porque fui para o curso de Português e Francês um pouco por acaso e num percurso completamente alternativo. Infelizmente, os professores de Português que me calharam em sorte (com exceção da professora do nono ano, e que era contratada) não me tinham feito perceber que eu gostava da disciplina, porque gostava de ler e da Literatura (li integralmente todas as obras obrigatórias). Porém, isso daria outra crónica… Quem sabe um dia destes a conte…

Já na Universidade, as minhas professoras preferidas e as mais competentes serão aquelas de quem a maioria dos meus colegas não podia sequer ouvir falar: Assunção Monteiro (absolutamente irónica, a raiar o sarcasmo) e Henriqueta Gonçalves, austera e severa, mas de uma memória fantástica que a fazia recitar trechos enormes das obras ou poemas com que estivéssemos a trabalhar, tudo de cor… Não eram professoras acessíveis… Porém, eram sumidades na sua cátedra. Estamos a falar da Universidade e dos seus pedestais. Os alunos teriam inclusivamente receio de as abordar, mas eram as professoras ligadas à literatura portuguesa, a minha disciplina favorita. Na Universidade, a paixão pela literatura consolidou-se e, hoje, se houvesse um curso apenas de Literatura, seria aquele que eu, provavelmente, frequentaria. A minha paixão pelo ensino é mais paixão pela literatura do que outra coisa qualquer… Os meus alunos percebem-me o gosto, porque desconfio que os meus olhos brilham quando lhes falo de certos autores e vou notando-lhes alguns sorrisos no rosto. Penso que me devem achar um bocadinho louca, também… A professora gosta de cada coisa… Então, quando insisto que aprender literatura é aprender a ler o mundo!… Sei que ainda não o percebem claramente, mas quem sabe um dia…

            Aos professores que aqui mencionei sou profundamente grata, já agora, não posso esquecer a professora Maria de Lurdes Bastos, a professora que me deu explicações para que eu pudesse fazer a prova específica, já que eu estava no III curso e não tinha a disciplina de Português. De fevereiro a junho, depois de decidir o que queria fazer, analisava textos e poemas, diariamente, e cumpri com o programa de 12º, sem ter aulas. Consegui a segunda melhor nota da Escola Superior de Educação do Porto. Eu tive um 86% e a melhor foi um 88%. Muito trabalho meu e também trabalho da professora.

            Todos eles me marcaram positivamente e me serviram de modelo. Certamente, espelharei a influência de todos. Todos tinham a paixão pela disciplina que ministravam e todos primavam pela competência. A mesma que me esforço diariamente por ter.

 Bem-haja!

 

Nina M.

 

           

 

 

 

 

 

           

 

 

terça-feira, 25 de junho de 2024

Não me falem em felicidade.
Nem me atirem com expressões feitas
De toda a gente e absolutas!
"Faz o favor de ser feliz"!
Não me venham com intenções, nem teorias e nem com ciência, diria, Álvaro de Campos...
A felicidade não se compra
Não é palpável
Não se tropeça nela como por acaso
Ao virar da esquina...
[Olá, felicidade, como passou a menina?!
Que diabo de ideia escrever felicidade
Com "F" maiúsculo e transformá-lo em nome próprio...
A maior das desgraças: uma Felicidade infeliz...
Pobre menina...]
Faço o favor de ser feliz, se conseguir!
Antes pudesse dizer se quiser!
Como se fosse bem aquisitivo em qualquer mercearia tradicional
Vendida como produto "gourmet"!
Pró diabo com os conselhos de quem confunde os conceitos!...
Como se fosse fórmula universal...
Não é dinheiro
Não é pobreza
Não é alegria
Nem tristeza
Nem sequer um amor qualquer
É trajeto à deriva
Andar-se perdido pelos caminhos
Em liberdade e à descoberta
Da paixão que move o ser
Que o estremece como abalo sísmico
E lhe causa rachaduras, marcas indeléveis,
Mas que escapa como areia
Rala debaixo dos pés lavados pela vaga...
Felicidade...
Tão fugidia
Tão encoberta
Tão triste ...

sábado, 22 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 379

 

Quadros de mérito e honrarias…

            A minha Matilde, aluna dedicada e briosa, acabou o ano letivo com nível cinco a todas as disciplinas, mas não entrou no quadro de mérito ou de honra ou de excelência ou como lhe queiram chamar.

            Na escola dela, pelo que parece, quando há vários alunos nestas condições e, na turma dela, felizmente, há alguns meninos com excelentes resultados, tem de haver critério de desempate, porque só pode ingressar um aluno. O critério de desempate é a obtenção de níveis cinco a todas as disciplinas, também nos períodos anteriores. A Matilde no segundo período tinha tirado um nível quatro na disciplina de História, pelo que não foi ela a selecionada, mas uma outra colega, também aluna dedicada e briosa.

            Não deixa de ser uma tontice. A escola faz aos alunos o que o Ministério faz aos professores: ora bem, temos aqui cinco alunos com nível cinco em todas as disciplinas, no final do ano letivo (classificações finais e decisivas), mas só há quota para um aluno por turma… Paciência… É assim a vida e nunca ninguém disse que seria justa…

No entanto, não é sobre o critério mal-amanhado que importa falar, tanto que nem dele reclamei, apesar de questionar a sua justiça. Quando cheguei a casa, expliquei à Matilde o sucedido e acrescentei que eram os critérios adotados, mas que ela não deveria ficar triste por isso, bem pelo contrário, porque a satisfação deve ser sempre interna e nunca depender do reconhecimento alheio. Expliquei-lhe que a melhor recompensa pelo trabalho desenvolvido era ver que os resultados corresponderam ao seu esforço e que, felizmente, eram muito bons, mas se não tivessem sido tão bons, também não fazia mal, porque ela tinha cumprido bem com o seu papel: foi sempre uma aluna educada, atenta, interessada e estudiosa e, quando assim é, nada a dizer, independentemente dos resultados alcançados. A esta minha explicação, obtive como resposta (mesmo à Matilde): “Fogo! Ainda bem que não fiquei no quadro! A minha fotografia do cartão está horrorosa e eu não queria nada que a vissem!” Atirei uma gargalhada! Saiu-me.  E acrescentei: “Então, ainda bem, realmente…”

Além de empenhada, a Matilde é extremamente vaidosa! É a menina que me pergunta se acho que ela está bonita e quando lhe garanto que sim, porque ela é bonita e, como tal, não pode ficar feia, responde-me: “Eu sei! Eu vejo-me ao espelho e considero-me bonita! Só tenho pena de não ter os olhos iguais aos teus ou iguais aos do avô…”

Invariavelmente, acrescento: “E vaidosa! És muito vaidosa!” Ela ri-se e arruma a conversa.

Esta situação leva-me a questionar a existência de quadros de mérito, sejam eles de que género for… Podem ser de mérito cívico, de mérito desportivo, artístico, enfim… Sei que a existência deles é bem intencionada, porque pretende reconhecer o esforço e o trabalho desenvolvidos pelos alunos, mas interrogo-me se não estamos a contribuir para que a satisfação vivida seja mais fruto de um reconhecimento alheio e isso é mera satisfação do ego, uma pequena vaidade (tantas vezes mais importante para os pais do que para os filhos) do que alegria interna. Aquele que sente as suas pequenas vitórias sem precisar de palco está mais apto para viver melhor e com saúde mental. Todo o esforço que se disponha a desenvolver será em prol de um objetivo que pretende alcançar e a alegria surge pelo facto de o atingir e não depende de um possível aplauso exterior.

Acerta-se muitas vezes e falha-se outras tantas ou mais, mas independentemente de outros valorizarem ou não aquilo que se faz, é mais importante, ainda,  que sejamos nós mesmos a atribuir-lhe significado e a dividi-lo com quem mereça. Depois, ninguém alcança nada sozinho. A Matilde teve o apoio dos professores com quem trabalhou, tem o apoio de uma família estruturada e teve o brio de estudar com regularidade para a obtenção dos seus resultados, sem qualquer tipo de auxílio externo. Porém, ela já parte em vantagem em relação a outros alunos. É difícil resolver os problemas educacionais causados pelas assimetrias sociais e, apesar de a escola pública ser inclusiva e democrática, não consegue ser completamente equitativa, que seria o desejável. Desde logo a inteligência de cada um é um fator biológico pré-determinado sobre o qual o indivíduo não tem qualquer responsabilidade. Apenas lhe compete trabalhar a capacidade com que nasceu, mas as diferenças começam imediatamente aí.

Creio que a existência desses quadros promove uma ideia errada de mérito, porque há efetivamente o perigo de os meninos entenderem que alcançaram tudo sozinhos, sem qualquer auxílio de outros intervenientes. Corre-se o risco de que possam olhar os outros com supremacia e de os estar a preparar mais para a competição do que para a cooperação e a história da humanidade prova que o homem evoluiu e sobreviveu, devido à cooperação entre pares e não por causa da competição. Satisfaz-me ver que nem a Matilde nem o Rodrigo competem com os colegas. Para mim, não é defeito, antes uma qualidade. A alegria de ver uma pauta irrepreensível é justa e merecida, na medida em que reflete o trabalho desenvolvido, mas que teve a mão de vários intervenientes e, como tal, a satisfação deve surgir, porque se alcançou uma meta que se estabeleceu, cumprindo com as suas funções e não porque alguém se lembrou de inventar um quadro honroso. Tenho o hábito de dizer aos meus alunos: é tão meritório o esforço que é feito para se alcançar um cinco ou um vinte quanto o esforço desenvolvido para se chegar ao três ou ao dez. Aliás, há notas de dez valores que sabem a vinte!

Talvez valha a pena refletir sobre isto ou serei eu que não sei andar no mundo sem mastigar certas coisas que aborrecerão outros, certamente…

O Rodrigo, às vezes, irrita-se comigo e diz-me que sou “demasiado boazinha para este mundo”, sobretudo, quando começo a perorar sobre o humanismo e a absoluta necessidade de o mantermos num mundo cruel, para que a nossa alma não se corrompa, mesmo perante as maiores aberrações. Tem dificuldade em assimilar tudo quanto lhe digo e contesta, argumenta, contraria-me. Afinal, é o adolescente. Digo-lhe que espero que a mensagem vá entrando e que aos vinte e cinco ou vinte e seis possa colher o fruto de alguns aborrecimentos.

Se o conseguir, também sei que o mérito não será apenas meu.

 

Nina M.

 

 

domingo, 16 de junho de 2024

Trazes a luz de uma
Razão analítica
O peso do mergulho
De quem em si se adentra
Na eliminação de resquícios
De uma má-fé protetora.
Não é necessário.
Reconheço-a
Mesmo se a calo
Por ser um ser de silêncios...
De fragilidades não expostas
O que salva também condena
Faço parênteses na interioridade
Se me cansar
Uso os devaneios a meu favor
Como droga que alivia
Sem roubar a essência
Olho os pés
Sapatos vermelhos de salto
Subcamadas de verniz indecifráveis
A olhos alheios. Está bem assim.
O mundo é feito de máscaras
De tirar e de pôr
Num baile incessante
Com coreografias prontas.
Sempre há de haver quem
Não goste de dançar
Quem não queira
o desgaste que o corropio
Impõe
Quem se afaste de multidões
Por não suportar o ruído
Quem opte por beber mundo
Com pequenos tragos
Para não se engasgar
Na esperança de nunca se inebriar
Com ilusões desalentadas



Uma tristeza miudinha
Aninha-se no ser
Nem vontade de falar
Nem vontade de ler

Não se procura companhia
Para gastar as horas mortas
É desperdício de energia
Se a tristeza bate à porta

É uma melancolia
Sem razão nem vontade
Trazida pelo vento
A recordar a saudade

Do tempo que não se tem
Da hora que não foi vida
A lembrar que vida cheia
Não passa de vida vazia





sábado, 15 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes

 

Violência doméstica

               Olho ao redor. Vejo mulheres fortes, corajosas, decididas, são elas os pilares de uma casa. Persistem no que acreditam e, apesar do cansaço que as atinge tantas vezes, não baixam os braços.

Mesmo quando o homem é o único provedor da casa, a mulher é a sua estrutura. O homem desespera perante as dificuldades, alguns tornam-se agressivos, grosseiros e insuportáveis, mas a mulher, com a sua paciência infinita e a sua calma milenar, passada de geração em geração, por meio de uma cultura de subjugação e de autossacrifício vai levando a água ao seu moinho, devagarinho. Eram assim as mulheres da minha infância. Fortes e com uma paciência resignada treinada, sempre prontas a encontrar desculpas para os maridos que as destratavam, principalmente, quando chegavam a casa com demasiado álcool no sangue…

Havia uma desgraçada que já sabia que nas noites em que o marido chegasse com o grão na asa a casa teria uma cena de pancadaria. Tem mau vinho, dizia… E tudo ia suportando abnegadamente… Um dia cansou-se. Tudo cansa. Na noite que o marido saiu para o café e já sabia o que a esperava, mudou de estratégia. Nessa noite, preveniu-se e quem apanhou foi ele. Não lhe guardou o respeito e teve o atrevimento de se defender, o que não foi difícil, dado o estado ébrio da figura. Abençoada decisão. Nunca mais o sacripanta lhe voltou a bater. As mulheres eram tratadas como saco de boxe demasiadas vezes e, apesar disso, nunca lhes passava pela cabeça a separação… Ou passaria, não sei… Se tal ideia lhes ocorria, raramente era concretizada, apesar do abuso. Vários fatores o podem explicar: a dependência económica, a vergonha associada a uma separação, naquele tempo, e a dependência emocional. O vínculo estabelecido com marido, na maioria dos casos, o único homem da vida delas, dificultava a decisão. É muito difícil quebrar uma ligação afetiva de anos… Talvez pensassem que todos os homens seriam assim, que a violência lhes corre nas veias contra as suas mulheres, aquelas que lhes põem a comida na mesa, lhes lavam e passam a roupa, lhes cuidam dos filhos e ainda lhes aturam os seus apetites. Eram relacionamentos absolutamente desiguais em que um dá tudo o que tem e o outro apenas recebe e paga com ingratidão e violência. A tudo se sujeitavam.

O mercado de trabalho veio equilibrar um pouco mais as forças. A mulher não é tão dependente economicamente, mas muitas continuam dentro de relações abusivas, tóxicas, absolutamente violentas quer física quer psicologicamente. Questiono-me sobre o que pode levar uma mulher independente, que ganha o seu autossustento, inteligente, suportar o desvario, continuar a tentar equilibrar uma relação desequilibrada e doentia. O amor. Pensarão alguns.  Não. O amor não agride e não devemos permitir que nos maltratem. É mais complexo. Eu sei. Normalmente, há modelos erróneos de amor do tempo de infância e que se perpetuam. Se a criança aprendeu que o amor é violência, irá repetir o processo ao longo da vida e toda a relação em que a agressão esteja ausente não vai ser entendida como amor, porque o modelo a que se habituou contemplava-a.

            O melhor que podemos fazer pelas nossas filhas, para ir quebrando os elos que continuam a aprisionar as mulheres, é ensiná-las a não aceitar um relacionamento tóxico, ensinar-lhes que o amor cuida, não agride. Fornecer-lhes bons exemplos e bons modelos. Portanto, o pai que se preocupa com a filha, em primeira instância, trata muito bem a mãe, para que a criança aprenda o que deve querer para si.

            A dependência emocional não é positiva, quando nos leva o amor-próprio e a autoestima, mas no mínimo, a existir, que seja por alguém que nos cuide, que nos ame e que nos trate com toda a dignidade que merecemos. Será o mínimo exigível para que se aceite continuar um relacionamento. Gostaria que as mulheres, normalmente, tão melhores do que os homens, são elas os alicerces de um lar e a cola do amor, reunissem toda a sua coragem para ditar as suas regras e fazer parar a vertigem violenta do macho acossado.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Sublevação

É templo
O meu corpo que alberga
Alma
Altar consagrado
Ao amor
Poder aceder-lhe
É privilégio
Nunca direito
Por lei divina
Nem humana
Apenas o consentimento
Da livre vontade
Da dádiva e da entrega
Do desejo de inteireza
Não o tocará
A infâmia
Nem a podridão
A putrefação de afetos
Líquidos e inconstantes
A ara do amor
Veste-se de luz
Aguarda contemplação
Mistério e transcendência

















sábado, 8 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 377

 

Mudanças necessárias

             O ser humano é um pouco avesso a mudanças. Elas implicam sair da zona de conforto, sair do que se conhece e ao qual já se está habituado, por isso, quando a vida nos parece estagnada, mas não nos é absolutamente desconfortável, normalmente, não se tomam decisões drásticas de mudança. Vai-se vivendo com o que se tem, analisam-se as circunstâncias, pesam-se os prós e os contras e pondera-se muito bem a situação. Se esta for terrível, talvez haja mudança, caso contrário, talvez ganhe o que se conhece. O desconhecido pode ser assustador. Se isto é difícil para um adulto, imagine-se para um adolescente, especialmente, se for alguém mais reservado e mais tímido.

            O meu “aborrescente” predileto enfrentou a mudança e o desafio e saiu vencedor. Fiquei muito feliz e orgulhosa, porque conseguiu superar o obstáculo. No final do segundo período, mudou de escola, de colegas, de professores e de ambiente. Teve de ser, porque o Rodrigo não era feliz há quase dois anos e a família sentia o seu mal-estar diariamente e ressentia-se com isso. A mudança para o secundário foi-lhe penosa, dada a sua imaturidade e desmotivação. Conseguiu colocar-se numa situação difícil e eu digo-lhe que oitenta por cento da responsabilidade lhe pertence. Ele sabe disso. Não o desresponsabilizo no que lhe compete, mas os restantes vinte não lhe podem ser atribuídos.  Quando quis correr, verdadeiramente, atrás do prejuízo, as portas já não se abriam. Tentou até à última, já com um prazo como ultimato, e teve de mudar. A situação era-lhe tão desfavorável que só a mudança prefigurava um bom augúrio, mas sempre incerto. Largar os colegas e a escola que há muito frequentava não foi fácil, mas diz o ditado que quando Deus fecha uma porta abre uma janela e o meu filho pulou e soube aproveitar a nova oportunidade. Vai para o décimo segundo ano, com aproveitamento em todas as disciplinas e já com o arrependimento de não ter mudado mais cedo, porque os seus resultados teriam sido melhores. Agora, compreende que tinha dois períodos que lhe foram prejudiciais. Cresceu com a experiência e já diz que o próximo ano vai ser melhor. Pude voltar a perguntar-lhe se os testes ou os trabalhos tinham corrido bem, sem que me dissesse, irritadíssimo, que não queria falar de escola!

Foi muito bem recebido por professores e colegas. No final da primeira semana, já me dizia que a turma era muito “fixe” e que os professores eram diferentes… Por diferentes, ele queria dizer mais próximos e pasmava com o bom relacionamento e o à-vontade com que dialogavam. De alguma forma, a aprendizagem passou a ser mais descontraída e mais empática. Há quem ainda não compreenda o valor da empatia na aprendizagem. Teve fichas de avaliação, fez trabalhos, gravou vídeos, fez um podcast, fez apresentações orais, teve questões-aula, enfim, aprendeu de forma variada e holística, como consignado no PASEO (Perfil do aluno à saída do ensino obrigatório) e que todos os professores têm a obrigação de conhecer, tal como devem conhecer os decretos-lei nº 54 e 55 de 6 de julho de 2018 e reconhecer os espírito da lei, quer esta agrade ou não: “dura lex sed lex”. O professor tem a obrigação, porque antes de qualquer outra coisa, está estipulado na legislação, mas tem sobretudo o dever ético de fazer o que está ao seu alcance para trabalhar com todos os alunos e tentar recuperar os mais fracos, adaptando o currículo às necessidades deles. Nos tempos atuais é inadmissível que ainda haja escolas que avaliem os alunos quase exclusivamente pelos testes, porque os noventa por cento dedicados ao saber são avaliados por um ou dois testes, muitas vezes, sem “feedback” de qualidade, repetindo-se exaustivamente a avaliação de matérias que não ficaram sabidas e nunca haveriam de ficar, porque ao longo do ano não há tempo para retomas constantes, dada a extensão dos programas. Fazer apenas testes globais onde se valoriza tanto ou mais o que já ficou para trás como o que se avalia no momento prejudica o aluno, especialmente, os que mais têm dificuldade, não lhe dando oportunidade de melhorar. Não perceber que a escola, hoje, é diferente da escola de há 30 anos é ser mau profissional. A escola é de todos, para todos e obrigatória. Não compreender que as competências exigidas e que devem ser treinadas estão para além de uma prova escrita é não saber o que se anda a fazer.

            Quem muda Deus ajuda, diz o adágio. O Rodrigo mudou e para melhor. Não posso deixar de dirigir uma palavra de gratidão à escola básica e secundária D. António Taipa e aos seus professores que receberam, acolheram, responsabilizaram e fizeram o Rodrigo trabalhar com mais motivação.

            Obrigada por acreditarem no seu potencial. Obrigada por lhe devolverem a alegria. Obrigada pelo facto de a escola cumprir bem com o seu papel.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Mistério

Descobri como preencher
A falha
A inquietude

Descobri como apaziguar
A angústia
O coração

Descobri a alma plena
De alegria
De feitiço

Descobri o significado
Do vazio
Da solidão

Descobri a saudade
Do que não vivi
Do que senti

E tudo em mim se multiplica
E se funde no mistério contínuo
De me perder no mundo
De me encontrar em Ti




sábado, 1 de junho de 2024

Crónica de Maus Costumes 376

 

A memória

            A nossa memória é seletiva. Não guarda tudo o que vivemos e, mesmo o que vivemos, a nossa memória vai adulterando os factos ao sabor dos nossos afetos. Certo é que nos fica o que nos marca, quer pela positiva quer pela negativa.

 Normalmente, ela tende a suavizar o mal e a intensificar o bom, a partir do afastamento com que relembramos esses momentos. Na psicologia, afirmam que as dores estão curadas quando se consegue falar do que nos magoou sem que haja sofrimento. Significa que o tempo e as nossas emoções processaram o que tinha de ser tratado, resolvendo as nossas angústias. Quando não conseguimos fazê-lo, adoecemos.

Em conversa com a amiga que estagiou comigo e a propósito de atividades que se organizam para os alunos, ela recordou uma visita de estudo que teremos ajudado a organizar ou que organizámos e que acompanhámos no nosso ano de estágio, há 27 anos. Tem a imagem de termos feito uma paragem na praia e de haver alunos que nunca tinham visto o mar. Estagiámos em Lamego e tínhamos alunos oriundos de aldeias e que nunca saíam da terra. Ela lembra-se de haver miúdos a provarem a água do mar e de ficarem admirados por constatarem que, efetivamente, é salgada… A visita de estudo terá sido inesquecível para eles, certamente. Causou-me espanto, porque eu não tenho qualquer memória desse acontecimento. Na minha memória, esse momento não existe. Não me lembro de o ter vivido. O que não deixa de ser estranho, pois a minha memória é boa. Regista muitos factos e conversas passadas. Não regista rostos, principalmente, se a convivência não tiver sido grande. Não tenho grande memória visual, dada a distração que me caracteriza e me faz passar pelos locais e pessoas sem as ver. Quando isto acontece, significa que estou recolhida nos meus pensamentos, no meu mundo interior e tudo o que é externo a mim me passa despercebido. No entanto, não posso deixar de questionar o que motivou esta ausência, este apagão total, porque não guardo o mais ínfimo pormenor. “Não te terá marcado” - diz-me ela – porém, não é facto que me desmereça a atenção, porque gosto de proporcionar estes momentos aos miúdos. Por mais voltas que dê, não vislumbro uma única imagem. Nada. Na altura, não andávamos com máquina fotográfica e os telemóveis não abundavam e, mesmo que os tivéssemos, ainda não tinham câmara incorporada. Nessa altura, nem mensagens escritas poderíamos enviar por um telemóvel. Isso só foi possível um ou dois anos depois. Quando fazemos estas viagens ao passado, apercebemo-nos, com maior exatidão, do progresso e da época de inovação acelerada em que vivemos. Hoje, os telemóveis são minicomputadores de bolso, que permitem registar estes momentos, para que nãos nos escapem pelo fio do tempo…

Lembrámo-nos do nosso orientador de Português, o padre Zé Abrunhosa, parente do músico sobejamente conhecido, de quem muito gostávamos pela pessoa que era. Questionámo-nos se ainda será vivo. A última vez que o vi foi no casamento do meu primo Ricardo, de quem fui madrinha e o padre Zé o pároco, porque a esposa é natural daqueles lados e casaram no santuário da Nossa Senhora dos Remédios. Falámos um bocadinho, no final do casamento, e ficámos felizes pelo reencontro, eu e o padre Zé. Também fiquei vaidosa, porque ele fez questão de dizer aos presentes que eu tinha sido a melhor estagiária que lhe tinha passado pelas mãos, uma excelente professora. Se o voltasse a encontrar, agradeceria novamente o que nos ensinou. O que dele recordo é sobretudo o seu humanismo e consigo claramente compreender o motivo pelo que os investigadores em ciências da educação apontam o fator empatia e sensação de bem-estar como o mais preponderante para as aprendizagens dos alunos. Estes aprendem melhor com quem se sentem confortáveis, com quem sabem que é capaz de os ouvir. A competência científica é, naturalmente, importantíssima, mas a sensibilidade para gerir sensibilidades, para fazer os alunos sentirem-se ouvidos e acolhidos é ainda mais importante. Às vezes, tenho uns malandrecos que já me passaram pelas mãos, que me vão “visitar” à sala de aula e dizem-me: “viemos ver a stôra”. A rir-me, pergunto-lhes se querem assistir à aula, porque sei de antemão a resposta… Não é a minha competência científica que eles guardam… Na verdade, não consegui passar-lhes nem o gosto pelo estudo nem o gosto pelo português, mas algo de mim lhes terá ficado, porque apesar de maus alunos e do percurso diferente que escolheram, vêm ter comigo. Riem-se e metem-se comigo, dizem-me que perdi os meus melhores alunos… Eles sabem que não eram. Assumem-no. Sabem que me deram algumas dores de cabeça, talvez saibam que sempre tentei fazer o meu melhor, mesmo que não tenha sido o suficiente, para que trabalhassem e aprendessem. Creio que se sentiram acolhidos, apesar de tudo, apesar da sua falta de motivação que me enfurecia, às vezes; apesar de todos os raspanetes pela irresponsabilidade de que faziam gáudio. Sempre lhes pergunto se, agora, no profissional, trabalham mais, se estão a aproveitar a escola para saírem com a qualificação de que precisam para o mercado de trabalho. Dizem que sim e sorriem e eu digo-lhes que vou perguntar aos colegas para saber se é verdade, se estão, realmente, a aproveitar… Talvez seja isto que os faz, meia-volta, fazerem as suas visitas ou dizerem-me adeus com as mãos, enquanto passam no corredor e me veem a dar aulas. Devolvo-lhes o aceno… Não sei o que lhes fica de mim. Não mo dizem claramente, mas espero que fique algo que valha a pena.

Não me lembro da visita de estudo, mas lembro da miúda difícil e rebelde do ano de estágio, que muitos anos mais tarde me telefonou porque veio a Paços de Ferreira, talvez, comprar mobiliário e que me foi visitar a casa (ainda morava com os pais), só para me ver… Ou da aluna que, no final de ano, descobriu, sem que eu o soubesse, onde moravam os meus pais, porque a avó os conhecia, para ir levar uma lembrança à sua diretora de turma. Tal como muitos outros que me foram e vão agraciando ao longo do trajeto. Pequenos gestos que me dizem que algo de mim terá ficado.

Perante estas evidências, como poderá haver quem julgue que o relacionamento entre professor e aluno não influencia a aprendizagem para melhor ou para pior? Sabê-lo não implica condescendência nem tolerância total, mas implica compreender que não há bom professor sem humanismo, não há bom professor se não souber ver o aluno para além de um número e, especialmente, não há bom professor sem ética e sem a capacidade de olhar para o futuro e compreender que eles poderão vir a fazer mais tarde o que não conseguem, no momento, mesmo que saibam pouco de português ou do que for.

Nina M.