Seguidores

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 361

 

Postal da noite

               Há quem não entenda a importância da cultura, mas o homem desprovido dela não passa de “cadáver adiado que procria”, para citar Pessoa. Este di-lo em relação ao sonho que está na base de todas as grandes realizações humanas, que permitiu aos portugueses desbravar mar e chegar à Índia e que permitiria, também, a este mesmo povo predestinado a construção do Quinto Império, que seria o baluarte da cultura e da civilização, primeiro europeia, depois, do mundo. Eu creio que se pode aplicar à cultura, porque um povo desprovido dela apenas existe, mas não é nem medra.

               Servem os espetáculos culturais e artísticos para nos encher a alma e foi de alma cheia que vim de “Ficheiros Secretos”, espetáculo de Luís Osório, que já nos habituou ao seu “postal do dia”. O postal da noite vai para ele, que foi capaz de encantar uma sala cheia, com o seu longo monólogo de mais de duas horas, recheado de histórias de vida e de morte. Mais de vida, porque a morte faz parte da vida. Hoje, em dia de perda de um amigo, o espetáculo do Luís a mostrar como o caminho de alguns seres se transfigura com a perda. Foi assim com Eduardo Lourenço, que só começou a escrever após a morte dos pais, com Eugénio de Andrade que carregava a perda da mãe sobre os ombros e se sentava numa pedra, em Serralves, a escutar o silêncio que lhe trazia a infância perdida e a mãe de volta. Por isso, detestava que o interrompessem para o felicitarem pelos seus livros. Abriu o espetáculo em Lanzarote, com José, o Saramago, a quem a vida roubou o irmão bem cedo e que depois via sumir-se nos olhos da mãe. Homens que carregam o peso da vida às costas e que sem ele não teriam sido o que foram. Luís conduziu-nos com mestria, por uma conversa muito bem alinhavada, por dentro da vida, dos pesos e da leveza de que é feita. Perfilou figuras políticas de esquerda e de direita e contou histórias deliciosas e secretas, mas não tão secretas que não se possam encontrar no seu livro “Ficheiros Secretos” e que dá nome ao espetáculo.

               Vimos, na mesma turma, Santana Lopes e Louçã. Este último, o aluno irrepreensível, que obtinha vintes e estava sempre de dedo no ar, com a resposta certa para o professor e não passava confiança a ninguém, o que irritava todos. Santana, o “enfant terrible” conseguiu juntar os colegas, fazer uma vaquinha para tentar corromper o Francisco. Davam-lhe o dinheiro se ele dissesse um palavrão terrível na aula: MERDA! (Às vezes, ouvimos bem pior no Norte, escapa-se-lhes sem que sequer se deem conta e, quando chamados à razão, fazem um esgar de quem patinou e pedem umas desculpas mal-amanhadas, mostrando toda a sinceridade do “foi sem querer” e sem necessidade de qualquer corrupção). Talvez tivesse mais piada se Louçã tivesse cedido à tentação, mas manteve-se estoicamente imperturbável. Quando lhe lembraram o episódio, terá dito que já nessa altura lhes fugia a inclinação para a corrupção. Vimos, na mesma mesa, Natália Correia, Francisco Sá-Carneiro e a princesa de gelo Snu Abecassis (como a apelidava Natália), estivemos reunidos na Alemanha, com Mário Soares e a sua esposa Maria Barroso para a decisão da formação do partido socialista. Maria votou contra a proposta que vinha do marido. A história de Edmundo Pedro é comovente: todos os Natais, ele abria a porta ao PIDE que lhe impediu a fuga, que lhe levava um presente, acompanhado de votos de um bom Natal. Nem só de figuras conhecidas se fazem as narrativas. Ouvimos também histórias de anónimos, porque o Luís tem a generosidade e a alma grande de reconhecer heróis entre gente comum. Foi lembrado o emplastro, o Fernando, e os pais do Rui Pedro, a criança desaparecida de Lousada. Momento especialmente comovente, porque o pai estava presente e voltou a falar de esperança. Afiançou que há quem diga que se houvesse a certeza da morte do filho, ele e a esposa poderiam fazer o luto e ter um pouco de descanso, ao que ele responde que se assim fosse, já não haveria esperança e que ela continua presente. A esperança que salva e que permite viver.

               Ficam apenas alguns dos exemplos. Mais de duas horas a ouvir a vida de que é feita a humanidade, porque todos somos feitos de histórias, algumas tão pesadas, que nos obrigam a seguir em frente com o peso do mundo sobre os ombros, mas que nos fazem ser quem somos.

               Num registo que circulou entre o comovente e também o cómico, entre a tragédia e a comédia, tal como a vida é: “just a charming joke”, Luís Osório conseguiu congelar o tempo.

               Obrigada.

 

Nina M.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário