A Odisseia e a atualidade
Muitas vezes, ao entrar na minha
biblioteca, por onde passo sempre a caminho do escritório, que lhe fica
acoplado, olho para a estante. Os livros de edições mais cuidadas, de capas
duras, ficam nas prateleiras de cima.
Por estes, dias, os olhos bateram na
Odisseia, um belo exemplar traduzido pelo professor Frederico Lourenço (agradeço,
pela humanidade em geral e pelos portugueses, em particular, haver homens desta
imensa sabedoria, doutos em Latim e Grego). Peguei nele. Ainda não o li. Toda a
gente sabe que os amantes de livros (digo amantes e não amadores, por gostar mais,
ainda que ambas possam significar o mesmo: aquele que ama) têm sempre mais do
que os que conseguem ler. Tirei-o, sentei-me e comecei a folhear. Tive de
parar, porque o fiz em trânsito, enquanto pegava na pasta, para ir trabalhar.
Não é livro que se leia de ânimo leve e sem reflexão. Voltei a pousá-lo, porque
me vai exigir tempo. Mas será a minha próxima grande leitura. Entretanto, já
voltei a pegar nele e já li o Canto I e acho que farei como Alexandre Magno, terei
Homero na mesinha de cabeceira, ainda que por motivos diferentes. O grande
imperador macedónio, educado por Aristóteles, inspirava-se em Aquiles, da Ilíada,
antes das suas campanhas bélicas. Assim cumpriu o sonho do seu pai, traído e
morto por Tebas e Atenas. Com Tebas, após uma segunda rebelião, agora contra
Alexandre, foi implacável: destruiu a cidade e vendeu os seus habitantes como
escravos; com Atenas, a pólis mais culta, o rei admirador da cultura helénica
perdoou-lhe a aleivosia. Depois disso, haveria de conquistar a Síria, Fenícia,
Palestina, Egito (foi ele o responsável pela fundação de Alexandria), travando
depois uma batalha com Dario, o rei persa, vencendo-o, cumprindo o sonho do seu
pai. Porém, no auge da sua força e com planos para novas conquistas (a Arábia e
a Europa) foi acometido de uma febre intensa que duraria dez dias. No décimo
primeiro, Alexandre pereceu, aos trinta e três anos, curiosamente, a mesma idade
com que Jesus morreria, mais tarde.
A Odisseia inicia-se com o proémio, onde,
logo no primeiro verso, é pedido à Musa que lhe fale do “homem versátil que
tanto vagueou”, mas cujo nome só é referido no verso vinte e um, o “divino Odisseu”.
De seguida, já no Concílio dos Deuses, é aberta a sessão por Zeus, “o pai dos
homens e dos deuses”, que desaprova o comportamento dos humanos que se revoltam
contra os deuses, mas sem razão, porque são desobedientes e insistem em não
ouvir as mensagens de Hermes. A bela Atena concorda, mas vai intervir a favor
de Odisseu, por quem lhe “arde o coração” e pede a intervenção do Olímpio (Zeus),
lembrando-lhe os sacrifícios, que o mortal oferecera em Troia. Impossível não
estabelecer a ligação com a epopeia camoniana, em que a bela Vénus, intercede
junto de Júpiter, a favor dos mortais portugueses. Se Baco era o oponente dos
lusos, Posídon, vulgo Poseidon, o deus dos mares (Neptuno, para quem preferir a
designação romana) é o antagonista de Ulisses ou Odisseu, furioso com o mortal,
por este ter cegado Polifemo. Não o mata, o deus, mas castiga-o, fazendo-o
vaguear e impedindo-lhe o regresso (em grego nóstos). Nostalgia, como tão bem
tratou Kundera, significa a dor do regresso. Era nostalgia que o Odisseu
sentia, sempre que pensava na sua distante Ítaca.
Ainda no Canto I, a ligeira Atenas,
se metamorfoseará e se transformará em Mentes, dos Táfios, amigo de Laertes e de
Odisseu (pai e filho) para transmitir a Telémaco que ouviu dizer que o seu pai
está vivo, mas que os deuses lhe dificultam o regresso. Serão as palavras de
Atenas, num longo diálogo com Telémaco, que lhe põem “força no espírito” e o convencem
a partir em busca de notícias do pai, para pôr fim aos abusadores pretendentes
de Penélope, que se instalam no palácio.
Não será à toa que, no primeiro
verso, Odisseu seja designado de “homem versátil”, de homem inteligente,
adaptável, quem Atenas diz ser de “muitos engenhos”. Odisseu será um herói
próximo dos humanos (não fosse ele mortal), que mente, que mata, que sobrevive,
que sofre, que vive as experiências com que se depara, que escapa da Circe e do
canto das Sereias com astúcia, mas que se encontra preso por Calipso, em
Ogígia. O herói sobrevive a tudo, não sem um golpe de asa e o favor dos deuses
e reentra menor, disfarçado de mendigo e irreconhecível, vinte anos depois, na
sua Ítaca. Só o seu cão, Argos, já moribundo, o reconhece. Humano, Ulisses
prepara a vingança contra os pretendentes.
A Odisseia, um dos textos fundadores
da civilização ocidental, contém a condição humana e, por isso mesmo, se
eterniza. Está lá tudo: o poder, o amor, a traição, o destino mais amenizado,
os deuses avisam os homens, mas eles não os escutam, está presente o livre-arbítrio
e a escolha (afinal, os deuses não são tão carrascos), o sofrimento, a dor, a nostalgia,
a superação, o desejo de vingança, a crueldade, a morte e a imortalidade e a
esperança… Em última análise, foi a esperança do regresso a casa que manteve Odisseu
lúcido e resiliente. A necessidade de regressar à origem de si mesmo ou à sua
essência.
Impressionante como um texto do
século VII a.C. permanece atual. Uma obra-prima que merece ser lida
atentamente.
Há quem me considere um pouco doida pelas
escolhas que vou fazendo e há quem deixe suspirar: “gostas de cada coisa”!...
Eu gosto do que se relaciona com o
humano, com as suas misérias, sempre maiores do que os feitos, gosto de constatar
que milénios depois, a essência humana continua semelhante, gosto dos mitos que
a tentam explicar.
Afinal, como diria Pessoa “O mito é o
nada que é tudo”.
Nina M.
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