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sábado, 10 de fevereiro de 2024

Crónica de Maus Costumes 360

 

A Odisseia e a atualidade

Muitas vezes, ao entrar na minha biblioteca, por onde passo sempre a caminho do escritório, que lhe fica acoplado, olho para a estante. Os livros de edições mais cuidadas, de capas duras, ficam nas prateleiras de cima.

Por estes, dias, os olhos bateram na Odisseia, um belo exemplar traduzido pelo professor Frederico Lourenço (agradeço, pela humanidade em geral e pelos portugueses, em particular, haver homens desta imensa sabedoria, doutos em Latim e Grego). Peguei nele. Ainda não o li. Toda a gente sabe que os amantes de livros (digo amantes e não amadores, por gostar mais, ainda que ambas possam significar o mesmo: aquele que ama) têm sempre mais do que os que conseguem ler. Tirei-o, sentei-me e comecei a folhear. Tive de parar, porque o fiz em trânsito, enquanto pegava na pasta, para ir trabalhar. Não é livro que se leia de ânimo leve e sem reflexão. Voltei a pousá-lo, porque me vai exigir tempo. Mas será a minha próxima grande leitura. Entretanto, já voltei a pegar nele e já li o Canto I e acho que farei como Alexandre Magno, terei Homero na mesinha de cabeceira, ainda que por motivos diferentes. O grande imperador macedónio, educado por Aristóteles, inspirava-se em Aquiles, da Ilíada, antes das suas campanhas bélicas. Assim cumpriu o sonho do seu pai, traído e morto por Tebas e Atenas. Com Tebas, após uma segunda rebelião, agora contra Alexandre, foi implacável: destruiu a cidade e vendeu os seus habitantes como escravos; com Atenas, a pólis mais culta, o rei admirador da cultura helénica perdoou-lhe a aleivosia. Depois disso, haveria de conquistar a Síria, Fenícia, Palestina, Egito (foi ele o responsável pela fundação de Alexandria), travando depois uma batalha com Dario, o rei persa, vencendo-o, cumprindo o sonho do seu pai. Porém, no auge da sua força e com planos para novas conquistas (a Arábia e a Europa) foi acometido de uma febre intensa que duraria dez dias. No décimo primeiro, Alexandre pereceu, aos trinta e três anos, curiosamente, a mesma idade com que Jesus morreria, mais tarde.

A Odisseia inicia-se com o proémio, onde, logo no primeiro verso, é pedido à Musa que lhe fale do “homem versátil que tanto vagueou”, mas cujo nome só é referido no verso vinte e um, o “divino Odisseu”. De seguida, já no Concílio dos Deuses, é aberta a sessão por Zeus, “o pai dos homens e dos deuses”, que desaprova o comportamento dos humanos que se revoltam contra os deuses, mas sem razão, porque são desobedientes e insistem em não ouvir as mensagens de Hermes. A bela Atena concorda, mas vai intervir a favor de Odisseu, por quem lhe “arde o coração” e pede a intervenção do Olímpio (Zeus), lembrando-lhe os sacrifícios, que o mortal oferecera em Troia. Impossível não estabelecer a ligação com a epopeia camoniana, em que a bela Vénus, intercede junto de Júpiter, a favor dos mortais portugueses. Se Baco era o oponente dos lusos, Posídon, vulgo Poseidon, o deus dos mares (Neptuno, para quem preferir a designação romana) é o antagonista de Ulisses ou Odisseu, furioso com o mortal, por este ter cegado Polifemo. Não o mata, o deus, mas castiga-o, fazendo-o vaguear e impedindo-lhe o regresso (em grego nóstos). Nostalgia, como tão bem tratou Kundera, significa a dor do regresso. Era nostalgia que o Odisseu sentia, sempre que pensava na sua distante Ítaca.

Ainda no Canto I, a ligeira Atenas, se metamorfoseará e se transformará em Mentes, dos Táfios, amigo de Laertes e de Odisseu (pai e filho) para transmitir a Telémaco que ouviu dizer que o seu pai está vivo, mas que os deuses lhe dificultam o regresso. Serão as palavras de Atenas, num longo diálogo com Telémaco, que lhe põem “força no espírito” e o convencem a partir em busca de notícias do pai, para pôr fim aos abusadores pretendentes de Penélope, que se instalam no palácio.

Não será à toa que, no primeiro verso, Odisseu seja designado de “homem versátil”, de homem inteligente, adaptável, quem Atenas diz ser de “muitos engenhos”. Odisseu será um herói próximo dos humanos (não fosse ele mortal), que mente, que mata, que sobrevive, que sofre, que vive as experiências com que se depara, que escapa da Circe e do canto das Sereias com astúcia, mas que se encontra preso por Calipso, em Ogígia. O herói sobrevive a tudo, não sem um golpe de asa e o favor dos deuses e reentra menor, disfarçado de mendigo e irreconhecível, vinte anos depois, na sua Ítaca. Só o seu cão, Argos, já moribundo, o reconhece. Humano, Ulisses prepara a vingança contra os pretendentes.

A Odisseia, um dos textos fundadores da civilização ocidental, contém a condição humana e, por isso mesmo, se eterniza. Está lá tudo: o poder, o amor, a traição, o destino mais amenizado, os deuses avisam os homens, mas eles não os escutam, está presente o livre-arbítrio e a escolha (afinal, os deuses não são tão carrascos), o sofrimento, a dor, a nostalgia, a superação, o desejo de vingança, a crueldade, a morte e a imortalidade e a esperança… Em última análise, foi a esperança do regresso a casa que manteve Odisseu lúcido e resiliente. A necessidade de regressar à origem de si mesmo ou à sua essência.

Impressionante como um texto do século VII a.C. permanece atual. Uma obra-prima que merece ser lida atentamente.

Há quem me considere um pouco doida pelas escolhas que vou fazendo e há quem deixe suspirar: “gostas de cada coisa”!...

Eu gosto do que se relaciona com o humano, com as suas misérias, sempre maiores do que os feitos, gosto de constatar que milénios depois, a essência humana continua semelhante, gosto dos mitos que a tentam explicar.

Afinal, como diria Pessoa “O mito é o nada que é tudo”.

 

Nina M.

 

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