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sábado, 4 de fevereiro de 2023

Crónica de Maus Costumes 311

 

Bilhete de identidade

            O povo português é bizarro. Capaz do melhor e do pior, passa de um extremo ao outro, jurando não haver qualquer contradição em tal comportamento.

            Se olharmos para o plano desportivo, a equipa de futebol da seleção já realizou os maiores feitos, ainda antes de entrar em campo, sem ainda nada ter provado e até começar a competição ela é sempre uma forte candidata ao pódio. Com o andar da carruagem, o mito esfarela-se e, subitamente, todos aqueles que eram extraordinários são uns mentecaptos, que só jogam nas suas equipas, o treinador um zero à esquerda! Ou oito ou oitenta! Não há cá meio-termo e o português passa da euforia para a depressão num ápice.

            Para a generalidade dos europeus, somos um povo que recebe bem, caloroso e  simpático. O brasileiro acha-nos um povo fechado e sisudos, muito direto, que “fala na lata”, como eles dizem e difíceis de conquistar. De repente, parece-me que os brasileiros só conheceram portugueses nortenhos. Normalmente, rudes e sem rodeios. Curiosamente, já ouvi, uma altura, uma CEO espanhola, numa empresa qualquer a dizer que éramos pouco assertivos e que tínhamos dificuldade em dizer não. Para eles, espanhóis, essa capacidade não só não era um problema, como seria desejável, para não haver perda de tempo. Eles ainda são mais bárbaros que nós ou será da língua que assim se me afigura. Não têm a suavidade do francês nem o encanto e a sedução do italiano. Uns brutos espalha-brasas, na verdade… Voltando aos brasileiros, recebemos bem, mas sem abrir de imediato a porta da intimidade. Contou um deles, certa altura, um artista cujo nome não me lembro, que ficou espantadíssimo com o português, porque no seu aniversário resolveu dar uma festa e convidou meia centena de pessoas e poucas foram as que surgiram. No entanto, quando lhe faleceu alguém da família, compareceram quase todos para lhe dar as condolências. Dizia, por entre o espanto, que o português aparecia mais facilmente na tragédia do que na alegria. Talvez porque a História de Portugal tenha sido trágica… Inicialmente, um pequeno condado que se fez reino, que contra todas as expetativas sempre conseguiu preservar a sua independência face a Castela, ao contrário dos outros reinos peninsulares. Quando a perdemos soubemos reavê-la. Fomos capazes de avançar e de enfrentar mares desconhecidos e todos os medos, mais do que prometia a força humana/ E entre gente remota edificaram/Novo reino que tanto sublimaram… Criámos um império e perdemo-lo. A queda foi tão fatal que do chão só se levantou o homem saramaguiano. Portugal, até hoje, vive de cócoras.

            Creio que isto confere um paradoxo irresolúvel à alma lusa, a eterna oscilação entre a euforia de venerar as suas qualidades e a depressão do fracasso, o sentimento de pequenez em relação aos gigantes europeus. Para superar a baixa autoestima, entusiasmamo-nos e acolhemos tudo o que nos permita ostentar a grandeza que se não tem. Endivida-se o país para receber o Europeu de Futebol ou as Jornadas Mundiais da Juventude como se endivida o cidadão comum para blasonar, ao conduzir o seu mercedes ou, agora, será Tesla…

Não admira, por isso, que Antero e, mais tarde, Eduardo Lourenço tenham interpretado os Descobrimentos como um fator de atraso mais do que de sucesso. A vontade de enriquecer embarcou meio Portugal, que farto dos excessivos impostos pagos ao senhor e à coroa, deixou as terras ao abandono e saiu à aventura. Um país de comerciantes que vende, mas nada de seu produz, não vai longe. As esperanças depositadas numa Índia longínqua deixaram o território nacional à míngua. Tudo se comercializou, mas nada se produziu. A Índia fez-nos voltar para fora ao invés de voltar para dentro, de criar riqueza interna. O ouro vindo do Brasil foi desbaratado. Possibilitou-nos o Convento de Mafra. Saramago questiona se valeu a pena sacrificar tanta vida para construir o monumento, para satisfação de megalomania de El- Rei D. João V. Recuo tantos anos para estabelecer analogias. Quantos senhores absolutos das eras modernas já tivemos? Desde CCB, a Casa da Música, aos estádios e às jornadas… É só escolher. Outros intervenientes, mas velhos hábitos. Talvez, atualmente, essas megalomanias não custem vidas, mas custam milhões ao erário público, dinheiro que o povo não vê investido no que deveria ser essencial e a principal preocupação da arte de bem governar. Talvez pudéssemos, por uma vez, inverter os termos da equação… Só para vermos se funciona. Primeiro, atender ao primordial e, depois, se sobrar, ver-se o acessório.

No meio da insanidade, o saber e a cultura, que também não enchem barriga, são completamente espezinhados. Já se lamentava Camões, pois ninguém lhe reconheceu o génio e os que o admitiam morriam de inveja e, por isso, havia que o ignorar. Ora, neste caso, resta saber para onde vai a generosidade pela qual o português é conhecido. Creio que para a gaveta, dado que ela só acontece porque o ajudado está em piores circunstâncias, pelo que não se trata de um gesto magnânimo, mas de vaidade pessoal, isto é, a elevação do ego através do outro. Difícil de ver é a empatia por causas dos que lutam pelos seus objetivos, mas que se poderão encontrar em melhores condições financeiras. Assim entendo a sanha que vou lendo em alguns comentários feitos contra as classes que se batem pelos seus direitos. Estão sempre melhor que todos os outros e até deveriam ter pejo em reclamar, mesmo que os salários não sejam de grande monta. A sanha aumenta se os profissionais que reivindicam pertencerem a um grupo profissional que desempenhe os trabalhos “mais limpos” e que exigiram investimento na instrução académica. Para a opinião pública, estão todos muito bem, independentemente, da justiça do que estejam a exigir, na lógica do: “se eu não tenho; tu também não deves ter”, sem olhar ao percurso académico e aos seus esforços e, sem, sobretudo, lhes reconhecer o trabalho realizado. Não é assim que melhoramos a sociedade. Deveríamos olhar para as reivindicações dos outros como justas e se nos sentirmos injustiçados, só teremos um caminho a seguir: reivindicar!

A última palavra d’ Os Lusíadas explica uma das idiossincrasias dos portugueses: inveja.

 

Nina M.

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