Crónica não apetecida
A minha caminhada de vida fez-me
voltar mais para dentro, o que tem as suas virtudes, mas também os seus
pecadilhos.
Passo pelas coisas e, às vezes, por
pessoas sem as ver, mesmo estando a olhar para elas. Dentro da minha cabeça
acontece um mundo que me faz não ver nem ouvir e colocar coisas no lugar
errado. Não é de agora. Este defeito, juntamente com outros, acompanha-me desde
que me lembro de mim…
Lembro-me de fazer a primeira
comunhão no Porto, por razões que não vêm ao caso. Um dia, eu tinha seis anos,
a minha mãe perguntou-me se queria fazer a comunhão naquele ano ou no ano
seguinte. Eu andava em ânsias para saber o paladar do “corpo de Cristo”, de
modo que respondi imediatamente que a faria nesse mesmo ano. Foi no Porto, num
espaço e numa igreja que me era desconhecida, no Pinheiro Manso, com muitas
outras crianças que também não conhecia. Houve ensaios e, ao que parece, seria
para entrar em pares, que foram distribuídos pelas responsáveis. Teria sido bom
que tivesse estado atenta, porque não ouvi nada do que disseram. Não me lembro
das músicas ensaiadas. Também não as cantei, porque desde cedo que sei que
canto mal e não iria nunca expor-me ao ridículo, de modo que fazia playback. Uma das gaiatas ao meu lado,
mais atenta, deu conta e lembro-me que comentou com a amiguinha: “olha, ela não
canta! Está a fazer playback”. Também não sei como sabíamos o que era playback. Talvez se devesse à música do
Carlos Paião… Certo é que eu saí de lá sem ouvir que tinha um par e que deveria
entrar na igreja ao lado da miúda que me calhou em sorte. No dia, eu estava
tranquilíssima, junto dos meus pais, à espera, quando se aproxima uma menina,
vestida de branco, como mandava o figurino, a chamar-me. Já me tinha procurado
por todo o lado… Para meu espanto, sabia o meu nome! Juraria nunca ter ouvido o
dela, mas talvez jurasse falso, porque devem-no ter dito na altura da
distribuição dos pares… Não sei. Não ouvi. As vozes imaginárias que me povoavam
distraíam-me em demasia e era frequentemente apanhada a falar sozinha.
O tempo foi corrigindo esses
pequenos lapsos, porque a vida em sociedade não os perdoa, mas as vozes que me
povoavam não desapareciam, nunca desapareceram e habitam-me. Continuo a ter
ausências. Na fase da juventude portava-me melhor, creio. A vida voltada para
fora não se compadece de vozes que insistem em nos inquietar. Apareciam menos,
por força da vida. No entanto, ninguém pode fugir do que é e à medida que o
tempo avançava, elas regressaram ao lar. Mais domadas, mais pacientes, sabem
esperar o seu tempo, mas mesmo assim intrometem-se e causam o caos e a
distração inúmeras vezes. Fazem-me companhia, mas são perigosas. Elas são
melhor companhia do que muita gente de verdade. As pessoas de corpo visível nem
sempre correspondem aos nossos anseios e não há mal nenhum nisso. Não têm que
corresponder. Quando me encontro só, não estou verdadeiramente só. Há um
diálogo interno entre mim e as minhas vozes. Salvam-me inúmeras vezes de
conversas de circunstância. Sinto-me cada vez mais confortável no meu silêncio.
Cada vez menos gosto do desperdício de palavras. Elas são valiosas. O
extravasamento acontece só com aqueles de quem gosto, em momentos de
descontração. Não é um registo contínuo nem muito interessante. Sei, no entanto,
ser capaz de uma boa conversa e produtiva, mas são poucas as pessoas que gostem
ou sejam capazes de o fazer. Há que saber selecionar os registos. Encontrar quem
se interesse pelos assuntos que me povoam e que passam ao lado do mundo sensível
é difícil.
Assim,
as minhas vozes salvam-me muitas vezes. Ditam-me textos e poemas, trazem-me ideias…
Não me digam que não existem e não são reais, porque dialogo com elas amiúde, enquanto
cozinho, caminho, corro, arrumo a casa ou passo a ferro. Há quem não goste de caminhar
ou correr só. Eu faço-o com motivação e sempre sem música, porque sei que as vozes
vêm ter comigo e querem ser ouvidas. Há gente que só incomoda, elas sempre me salvam.
Nina
M.
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