Feminilidades
A mulher é um ser extraordinário e só
ela poderia albergar o verbo que se fez carne. A grande maioria vem com a
capacidade e a vontade de albergar novos seres dentro de si, que expelem no
momento certo, não sem dor nem sacrifício.
É, assim, ao sexo fraco que cabe a
função de gestante e de parideira, olhada como missão menor pelas sociedades
patriarcais. Irrito-me com comportamentos retrógrados, infundados e reveladores
de inseguranças masculinas que temem a força e a determinação femininas.
Na cultura ocidental, há já muito
ficou para trás a ideia de que a mulher se deveria cumprir no lar e na criação
dos filhos. Aquelas que o decidem fazer, estão no seu pleno direito, desde que
se sintam realizadas e que essa seja a sua escolha, mas querer impingir esse modo
de vida a quem não o deseja seria inaceitável. Hoje, felizmente, há já respeito
e maior cooperação e equilíbrio na distribuição das tarefas domésticas. Os
homens começaram a compreender a injustiça que as primeiras mulheres
trabalhadoras tiveram de suportar. Na ânsia de emancipação, essas primeiras
guerreiras tiveram que se bater para conseguirem a independência financeira em
relação aos seus pais ou aos seus cônjuges e ganharam inúmeras horas de
trabalho, pois para além da profissão, ainda cumpriam com as tarefas domésticas,
que se entendia ser trabalho de mulheres. As mudanças foram lentas e as
mulheres da minha geração, apesar da maior abertura com que foram criadas,
ainda estiveram sujeitas a uma cultura demasiado patriarcal, principalmente,
nos meios rurais. A minha tia dizia sempre que o mundo era dos homens, mas para
ela a mulher exemplar era a que o acompanhava e o auxiliava nas conquistas,
partilhando os seus desejos, enquanto dirigia tudo na casa, com os seus oito
tentáculos e onde tudo funcionava a tempo e a horas. Por muito apreço e
admiração que sempre tive por ela, neste ponto em particular, não podia estar
de acordo. O desejo de companheirismo e de parceria é compreensível, mas a
anulação de si para que o outro brilhe, não é admissível nem desejável. E
faltava muito equilíbrio…
Essa
geração de mulheres, onde a minha mãe se inclui, era a que se levantava cedíssimo,
mesmo de inverno e, antes de ir para o ofício, deixava uma bacia de roupa
lavada à mão, no tanque, e estendida no arame. Foram as que criaram os filhos
com as fraldas de pano que tinham de ser lavadas em água bem quente, com sabão-rosa,
e postas a corar para que o branco permanecesse imaculado, apesar das urinas e
dos dejetos mal cheirosos. Não me lembro de as ver descansar, entre o fogão, a
roupa, o ferro, o arrumar da cozinha… Dia após dia… Depois, o mundo era dos
homens! Não. O mundo nunca foi deles, porque elas contribuíram bem mais, apesar
de sempre ficarem na sombra e encararem essas tarefas como parte da sua
natureza.
Ouvia,
em criança, as histórias contadas pelos homens, a do passeio que foram dar ao
Porto para mostrar a ponte D. Luís à Eva, uma camponesa com muitos filhos, que
nunca a tinha visto e que levou o farnel, numa ceira, à cabeça. Enquanto ela
transportava de costas muito direitas, habituada à carga e ao jugo, tão forte
quanto a junta de bois que lhe carregava as espigas do milho, o marido, o
Claudino e os que o acompanhavam, seguiam à frente, como chefes de família,
libertos de pesos desnecessários e prontos a satisfazer-se com as iguarias pela
Eva preparadas. Como se fosse tudo muito natural. Lembro-me de ouvir estas
conversas de adultos e de eles rirem à gargalhada com o medo dela, que soltava
impropérios por temer pela vida, ao atravessar a ponte, enquanto os seus olhos
alcançavam as funduras do Douro, que serpenteava pelo meio do casario e
implorava pelo regresso e pelos seus bois que não tornaria a ver… A Eva,
certamente, mulher bem terrena não saberia que o voo e as alturas causam
vertigens.
Eu,
criança, ouvia atentamente. Sempre houve coisas que me captavam total atenção e
outras que juraria nunca me terem sido ditas… Sempre gostei de histórias e elas
sempre se resguardaram na minha memória… Lembro-me de pensar que não queria ser
uma Eva. Eles a rirem-se do medo dela e eu só a imaginá-la vermelha e grotesca
do esforço despendido, a arfar e o suor a escorrer-lhe por baixo da rodilha que
amparava a ceira. A Eva… redonda como um tonel, de pernas másculas, dois
pilares, de tronco varonil e de avental à cinta, sempre nos trabalhos árduos do
campo, na criação dos filhos e dos afazeres da casa…
A
minha infância está povoada de mulheres assim, de uma valentia admirável e, no
entanto, submissas e devotas aos seus maridos, provedoras do seu bem-estar… E
lá as ouvia desabafar que se soubessem, não teriam casado (exceto a minha tia,
que perdeu o marido cedo e lhe sentia a falta. Nunca a ouvi lamentar-se do seu.
Só da sua ausência).
Qual Inês Pereira que procura a emancipação e
encontra a prisão! Pudera… Por mais amigos que os maridos fossem, a verdade é
que o trabalho as sobrecarregava e atendiam as solicitações do esposo e da
pequenada (que naquele tempo recebia a atenção só depois do patriarca) e não
sobrava tempo para si mesma. Anulada à não existência. Um sopro que servia todos
e se extinguia.
Um
infortúnio! E sei que jurava baixinho nunca ser uma Eva e que talvez um marido
não fosse lá coisa que prestasse para muito…
Nina
M.
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