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sábado, 2 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 272

 

Feminilidades

                A mulher é um ser extraordinário e só ela poderia albergar o verbo que se fez carne. A grande maioria vem com a capacidade e a vontade de albergar novos seres dentro de si, que expelem no momento certo, não sem dor nem sacrifício.

            É, assim, ao sexo fraco que cabe a função de gestante e de parideira, olhada como missão menor pelas sociedades patriarcais. Irrito-me com comportamentos retrógrados, infundados e reveladores de inseguranças masculinas que temem a força e a determinação femininas.

            Na cultura ocidental, há já muito ficou para trás a ideia de que a mulher se deveria cumprir no lar e na criação dos filhos. Aquelas que o decidem fazer, estão no seu pleno direito, desde que se sintam realizadas e que essa seja a sua escolha, mas querer impingir esse modo de vida a quem não o deseja seria inaceitável. Hoje, felizmente, há já respeito e maior cooperação e equilíbrio na distribuição das tarefas domésticas. Os homens começaram a compreender a injustiça que as primeiras mulheres trabalhadoras tiveram de suportar. Na ânsia de emancipação, essas primeiras guerreiras tiveram que se bater para conseguirem a independência financeira em relação aos seus pais ou aos seus cônjuges e ganharam inúmeras horas de trabalho, pois para além da profissão, ainda cumpriam com as tarefas domésticas, que se entendia ser trabalho de mulheres. As mudanças foram lentas e as mulheres da minha geração, apesar da maior abertura com que foram criadas, ainda estiveram sujeitas a uma cultura demasiado patriarcal, principalmente, nos meios rurais. A minha tia dizia sempre que o mundo era dos homens, mas para ela a mulher exemplar era a que o acompanhava e o auxiliava nas conquistas, partilhando os seus desejos, enquanto dirigia tudo na casa, com os seus oito tentáculos e onde tudo funcionava a tempo e a horas. Por muito apreço e admiração que sempre tive por ela, neste ponto em particular, não podia estar de acordo. O desejo de companheirismo e de parceria é compreensível, mas a anulação de si para que o outro brilhe, não é admissível nem desejável. E faltava muito equilíbrio…

            Essa geração de mulheres, onde a minha mãe se inclui, era a que se levantava cedíssimo, mesmo de inverno e, antes de ir para o ofício, deixava uma bacia de roupa lavada à mão, no tanque, e estendida no arame. Foram as que criaram os filhos com as fraldas de pano que tinham de ser lavadas em água bem quente, com sabão-rosa, e postas a corar para que o branco permanecesse imaculado, apesar das urinas e dos dejetos mal cheirosos. Não me lembro de as ver descansar, entre o fogão, a roupa, o ferro, o arrumar da cozinha… Dia após dia… Depois, o mundo era dos homens! Não. O mundo nunca foi deles, porque elas contribuíram bem mais, apesar de sempre ficarem na sombra e encararem essas tarefas como parte da sua natureza.

Ouvia, em criança, as histórias contadas pelos homens, a do passeio que foram dar ao Porto para mostrar a ponte D. Luís à Eva, uma camponesa com muitos filhos, que nunca a tinha visto e que levou o farnel, numa ceira, à cabeça. Enquanto ela transportava de costas muito direitas, habituada à carga e ao jugo, tão forte quanto a junta de bois que lhe carregava as espigas do milho, o marido, o Claudino e os que o acompanhavam, seguiam à frente, como chefes de família, libertos de pesos desnecessários e prontos a satisfazer-se com as iguarias pela Eva preparadas. Como se fosse tudo muito natural. Lembro-me de ouvir estas conversas de adultos e de eles rirem à gargalhada com o medo dela, que soltava impropérios por temer pela vida, ao atravessar a ponte, enquanto os seus olhos alcançavam as funduras do Douro, que serpenteava pelo meio do casario e implorava pelo regresso e pelos seus bois que não tornaria a ver… A Eva, certamente, mulher bem terrena não saberia que o voo e as alturas causam vertigens.

Eu, criança, ouvia atentamente. Sempre houve coisas que me captavam total atenção e outras que juraria nunca me terem sido ditas… Sempre gostei de histórias e elas sempre se resguardaram na minha memória… Lembro-me de pensar que não queria ser uma Eva. Eles a rirem-se do medo dela e eu só a imaginá-la vermelha e grotesca do esforço despendido, a arfar e o suor a escorrer-lhe por baixo da rodilha que amparava a ceira. A Eva… redonda como um tonel, de pernas másculas, dois pilares, de tronco varonil e de avental à cinta, sempre nos trabalhos árduos do campo, na criação dos filhos e dos afazeres da casa…

A minha infância está povoada de mulheres assim, de uma valentia admirável e, no entanto, submissas e devotas aos seus maridos, provedoras do seu bem-estar… E lá as ouvia desabafar que se soubessem, não teriam casado (exceto a minha tia, que perdeu o marido cedo e lhe sentia a falta. Nunca a ouvi lamentar-se do seu. Só da sua ausência).

 Qual Inês Pereira que procura a emancipação e encontra a prisão! Pudera… Por mais amigos que os maridos fossem, a verdade é que o trabalho as sobrecarregava e atendiam as solicitações do esposo e da pequenada (que naquele tempo recebia a atenção só depois do patriarca) e não sobrava tempo para si mesma. Anulada à não existência. Um sopro que servia todos e se extinguia.

Um infortúnio! E sei que jurava baixinho nunca ser uma Eva e que talvez um marido não fosse lá coisa que prestasse para muito…

 

Nina M.

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