O Pacheco
Não se trata do Pacheco do Eça, o político que não fazia nada, a quem nunca ninguém vira uma ação avisada, mas a quem todos gabavam a extrema inteligência, tal como a altura da sua testa fielmente afiançava.
Trata-se de um Pacheco que, afinal,
é Azevedo e ninguém sabe explicar porque o tratam por um nome que não é o seu. O
senhor tem 88 anos e uma genica de sessenta. Ainda conduz o carro e o trator se
for preciso e é ele quem trata da esposa, uns anos mais nova, mas de memória
atrapalhada. O senhor Pacheco é a exuberância da aldeia quase abandonada, de
uma aldeia votada ao esquecimento e onde as crianças escasseiam. A creche lá
instalada veio trazer algum sopro de vida e as crianças das imediações contrastam
com a população envelhecida, a maioria dos seus habitantes.
O
Pacheco é uma espécie de guardião do tempo, sempre disposto a contrariá-lo. Num
espaço onde o tempo parece levar o seu tempo, onde os ponteiros do relógio
parecem mudar mais devagar, onde ainda é possível recuperar o ritmo da
lentidão, onde nem o marulhar do Corgo chega ao cimo da aldeia, o Pacheco
circula lesto, sempre na pressa dos seus afazeres, como se a vida lhe soubesse
sempre a pouco, à espreita de um qualquer negócio. Negociante exímio, ele é
capaz de falar sem erro dos negócios passados e do dinheiro que deu por determinado
pedaço de terreno e por quanto o vendeu. Autodenomina-se, com uma pontinha de
orgulho, de “o pobre” por saber que o não é. Soube ganhar dinheiro e foi capaz
de formar dois filhos. Um é chefe da equipa de enfermagem no hospital e ligado
à política local (bom homem. Não há quem o desdiga) e o outro, o mais novo, um
dos mais conceituados ortodontistas da capital de distrito. De modo que não é
de estranhar que os olhos azuis e luminosos do Pacheco (ainda conservam o
brilho de quem gosta da vida) brilhem de orgulho ao sentir que fez tudo o que
estava ao seu alcance pelos filhos. Justiça lhe seja feita. Homem de trabalho e
que sempre pensou na família e nos filhos em particular. Os seus descendentes
muito lhe devem e serão, certamente, reconhecidos, porque o pai nunca deixou de
zelar por eles, mesmo quando já não havia necessidade. Sempre preocupado em
proporcionar-lhes uma vida confortável, sente satisfação ao ver os seus
descendentes a prosperar. Saberá, certamente, que também é o seu legado.
O
Pacheco faz falta à aldeia e ela morreria um pouco mais sem ele. Estabelece a
ligação ao mundo, por conta dos negócios e traz as novidades aos habitantes. Se
há dito tido como verdadeiro é que o Pacheco sabe sempre de tudo. Distinguiu-se,
de certa forma, do resto dos moradores pela postura que teve perante a vida, o
que lhe terá granjeado admirações e também algumas invejazitas.
Eu
simpatizo com o senhor que sempre me recebeu bem e com certo espanto. Sinto
que, de alguma forma, pousa o seu olhar sobre mim com benevolência e
acolhimento. Certa manhã de corrida, ainda de rosto mal acordado e de cabelo
apanhado, de figura ainda pouco arranjada, sob os primeiros e jovens raios de
sol, ele não se conteve e lá deixou escapar o elogio espontâneo, ao fim de muitos
anos:
- A
tua mulher é mesmo bonita! Vá, botai lá, então - terá acrescentado. De tão inusitado,
teremos sorrido todos.
Cisma
em tratar-me por madame, num misto de
brincadeira e de solenidade e, da última vez, terá ficado um pouco atrapalhado,
porque à minha entrada no café, ao lamentar-se de que a madame só estava a cumprimentar certas pessoas e aos pobres (ele
mesmo) nem boa-tarde dizia (não tinha ainda tido tempo), eu pedi licença a quem
falava e fui cumprimentar o senhor. Pareceu-me que não estava à espera que o
fizesse, mas dei-lhe os dois beijos da praxe e também à sua esposa. Nesse pequeno
instante, terá ficado o senhor Pacheco um pouco atordoado com a naturalidade do
gesto, mas ficou satisfeito por se saber incluído. Lá passou o seu domingo à
conversa. Já não deve ter as vacas, caso contrário andaria atrás da bicharada e
viu-se obrigado a deixar parte do muito que ainda fazia, dada a situação da
esposa, mas é bonito ver o cuidado com que a trata e a tem ao seu lado, agora
que ela não pode.
Certo
é que o senhor Cândido (esse é o seu primeiro nome) traz tempero à lassidão
dominical da aldeia transmontana. A sua alegria e a sua energia povoam o
ambiente. Nunca o vi zangado nem sisudo. Eu observo-o, sorridente, e cuido que
ele é o mais jovem de todos.
Nina
M.
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