Desorganização crónica
Ontem, não fui nada surpreendida pela ciência oculta dos signos que me
acusa de ser absolutamente desorganizada e de não ter método. Não contesto e
não o nego. No meio de tanta generalização, nalguma coisa há de acertar. Por
natureza, não sou nem disciplinada nem metódica e não gosto de planificar.
Detesto ter listinhas para cumprir e ementas programadas e coisas assim.
Aborrece-me
profundamente essa planificação sem espaço para o improviso e a criatividade.
Lembro-me de um episódio na faculdade com a professora Assunção Monteiro, em Literatura
Portuguesa II, disciplina que era a minha preferida e na qual era
suficientemente capaz. Acontecia-me amiúde faltar às aulas teóricas e chegar às
práticas com o livro errado. Aquilo irritava-me. A professora era mais rápida
que sei lá o quê; Levo Camilo, já estávamos em Garrett; levo o Almeida, deveria
ser o Prosas Bárbaras, do nosso Eça.
Irra! A professora saberia, com certeza, que eu não ia às teóricas. Estudava os
preceitos teóricos pela História da Literatura do António José Saraiva e pelos
apontamentos fidedignos das aulas, dos quais fazia novos apontamentos, mais
concentrados e concertados com o que dizia o Saraiva. Bem, numa certa aula, a
professora lembrou-se de enviar alguém, de supetão, para analisar e sintetizar um
longo excerto (várias páginas) já não sei se das Prosas Bárbaras, se da
Correspondência de Fradique Mendes… Talvez deste último. Sei que levei, como
habitualmente, o livro errado. A técnica para selecionar alunos, na falta de
voluntários (que nunca havia, porque a ironia da professora Assunção assustava)
era espantosa: “Diga lá um número de quatro dígitos. Se fosse eu diria 1524 ou
25 só para impressionar. (Data provável do nascimento de Camões) ou 1825 (data
de publicação do poema de Garrett aquando o seu exílio, intitulado Camões, e
que marca o início do Romantismo, em Portugal). Quem foi selecionado não disse
nada disto e escolheu aleatoriamente. A professora somou os quatro dígitos, o
que resultou num número só, começou a contar as cabeças e bingo! Calhou-me a
fava! Não teria sido grande mal, se tivesse estado na aula teórica anterior,
mas não fazia a mínima ideia do que tinham falado. Estremeci interiormente e só
tinha duas soluções: ou admitia a ausência ou teria de ir e de me safar. Foi o
que fiz. Solicitei um livro emprestado à colega do lado, que tinha uns
apontamentos nas margens. A professora deverá ter-me dado dois minutos para me
organizar. Li na diagonal, vi as anotações da colega e lá fui para a frente da
sala, incrédula… Com tanta gente que tinha estado na aula, calha-me a fava?!
Fui. Iniciei a análise com a ajuda das anotações e com o auxílio da
hermenêutica possível naquelas condições. A professora ia acrescentando
informação e eu lia por avanço, em silêncio, a preparar rapidamente o que se
seguiria… Lá passei a provação até ao final, até me ser dada ordem para me
sentar, que cumpri, muito dignamente, sem manchar a reputação junto da
professora (penso eu).
Certo
é que depois disso, o improviso não poderia ser assim tão mau… Por isso não
faço ementas certas. Ficaria louca, se soubesse que todas as segundas iria
comer salada russa e, às terças, bife de frango e por aí vai… Nem pensar!
Quando chego a casa, abro o frigorífico. Espreito. Se houver comida será
reinventada, caso contrário, penso em alguma coisa… A menos que sobre comida,
nunca sei de véspera o que vou comer no almoço seguinte e o que irei preparar.
Só se houver convidados em casa. Nesse caso, tenho de planear; também não
seleciono a indumentária de véspera, nem planifico atividades, a menos que seja
imperioso fazê-lo, por ter de fazer marcações. Na verdade, gosto bem de fazer o
que me apetece de momento, segundo a vontade do instante; não tenho dossiês
impecáveis (a não ser os do estágio) e que sofrimento foi organizá-los! Valeu-me
a Sandra (a minha eterna amiga) e a minha memória. Não sei usar agendas, apesar
de as ter… E agora, que começo a esquecer-me das datas de consultas (o que antes
nunca acontecia), registo-as e colo-as no frigorífico, mas depois esqueço-me de
as consultar, ainda que abra inúmeras vezes o eletrodoméstico. Não elaboro planos
para as histórias que crio. Surge a ideia e as personagens crescem e fazem-se por
elas. Raramente sei, até me sentar, do que vos vou falar aos sábados à noite. Hoje
calhou isto… Paciência…
Para
quem nasceu assim, as palavras ordem e disciplina fazem estremecer. Nunca na
vida poderia ser militar (também só a ideia de me acordarem às seis da manhã,
com uma corneta estridente, dar-me-ia vontade de a partir na cabeça do
corneteiro). Não, obrigada! Porém, a vida não se compadece dos desorganizados e
obriga-nos a uma adaptação. Não sou organizada, mas não gosto da desorganização
excessiva. Tendo consciência das minhas limitações, lá me vou impondo alguma autodisciplina
para que as coisas caibam no meu dia. Aprendi a rotina certa com o nascimento dos
filhos. Agora, com eles maiores, já me desmazelo mais, novamente. Há quem diga que
gosto de viver no limite… Não sei se é isso. Talvez goste do inusitado e das surpresas
boas, apesar de me obrigar ao trilho, mas não deixo de cumprir com as minhas obrigações
e responsabilidades.
Quem
não descarrila de vez em quando para ter a certeza de que está vivo?!
Nina
M.
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