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sábado, 30 de abril de 2022

Crónica de Maus Costumes 276

 

Desarranjos

 Não sei se a crónica de hoje sairá com destreza argumentativa… O pensamento dispersa-se e perde-se; não se concentra e torna-se escorregadio…

Dizia-me uma colega que a idade a ensinou a não tecer juízos de valor sobre comportamentos alheios. Desculpa, cara colega, sei que provavelmente me irás ler e não referi que tudo me pode servir de mote e é passível de ser transformado em escrita. Tudo o que me rodeia pode ser matéria. Já avisei antes, mas não tinhas tido ainda o (des)gosto (deixo ao teu critério) de me conhecer... Fica o aviso…

Concordei em absoluto. Posso pensar que faria ou não de forma diferente, mas condenar ou sequer atrever-me a palpitar sobre a vida alheia, não! Na verdade, a vida dos outros não me interessa nada. Ao contrário do que supostamente dita o meu signo, não sou de coscuvilhices. Respeito profundamente a intimidade alheia e espero que os outros tenham o mesmo respeito para comigo. Simples assim. Também acho que foi Cronos quem me ensinou isso. Cada um é responsável pela sua vida e de a conduzir como bem a entende, salvaguardando-se o facto, obviamente, de não atuar com maldade nem de prejudicar alguém deliberadamente. Os juízos de valor fáceis e condenatórios são, muitas vezes, parcos em empatia e compreensão. Quem não calça o sapato alheio pode nunca compreender as razões do outro. Falo, obviamente, de comportamentos que não configuram crime, muitos deles até poderão ser explicáveis, mas não justificáveis. Falo das pequenas decisões e escolhas com que somos confrontados no dia a dia. Estamos sempre no limbo, na eminência da escolha e, apesar de ser um sinal de manifesta liberdade, é também, absolutamente, dolorosamente e infalivelmente angustiante. Sartre explica bem essa angústia. Como diria o meu amigo escritor, Luís Altério, ide ler… Ide… Quem tem de fazer escolhas é naturalmente suscetível à falha e quem tem a consciência da falha, das suas falhas e da sua escuridão, não se atreverá a atirar pedras alheias. Admito as minhas, com toda a minha franca e honesta humildade. É verdade que tento ser sempre melhor e sei que fico sempre aquém do desejável e, por vezes, quanto mais tento ser e crescer tanto mais erro, mesmo não o desejando. Perante esta consciência de que o caráter se constrói ao longo da vida e é feito de vários recomeços e correções não há como ter a arrogância de condenar seja quem for pelas pequenas coisas que dizem somente respeito à vida particular de alguém.

Ao pensar nestas questões, lembrei-me da história de um amigo que foi surpreendido pela têmpera primitiva e irracional transmontana em que os envolvidos na contenda, primeiro digladiam-se e esmurram-se, para mais tarde encostarem a barriga ao balcão e pagarem mutuamente uma cerveja, em sinal de paz e de respeito. Coisas inusitadas destas acontecem, mas chegar ao Reino Maravilhoso, sem preparação e assistir ao vivo e a cores a uma bravata, assusta qualquer um, mesmo que se trate de um cavalheiro. A fuga e a prevenção perante uma situação destas até poderão ser entendidas como uma cobardia pelos locais, que veem o mundo filtrado pelas suas lentes, sem compreenderem que pode e que há leituras e posições diferentes perante a vida. Algumas delas insanáveis e, a menos que sejam assuntos de valor quase absoluto, ninguém poderá presumir ser o dono da verdade. Algumas vezes, os nossos desejos colidem com os desejos alheios e só há uma via a seguir, a do respeito mútuo e da honorabilidade. Porém, nem sempre é possível, nem sempre é conseguido, porque a vida é feita de diversas tonalidades. Há muito mais para além do preto e do branco e quem souber pintar atreva-se a usar a cor.

 

Nina M.

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