O meu pai
O meu pai tem oitenta e quatro anos,
feitos em fevereiro, quatro dias antes do aniversário de uma das suas netas (a
minha Matilde). A minha família é de homens. Os meus pais têm quatro netos
rapazes e apenas duas netas. Têm dois filhos e apenas uma filha, que sou eu. Os
primos com quem mais convivi são homens, no entanto, as mulheres da minha
família são extraordinárias! A começar pela minha avó materna, Matilde, de quem
a minha pequena herdou o nome. A tecedeira que também fazia de parteira e me
punha a dormir durante o dia, na alcofa pousada sobre o tear. Adormecia ao
deslizar da lançadeira e das teias que viriam a ser mantas. A sua primogénita,
a nossa Tia (sem nome, porque todos sabemos quem é) que enviuvou cedo (eu tinha
apenas dois anos quando o meu tio Agostinho morreu. Não me lembro dele. Só lhe
conheço as fotos) e ficou com quatro filhos para criar e fê-lo bem. Uma mulher
de trabalho, sempre de mangas arregaçadas e que aos oitenta julgava ter
quarenta, porque nunca se cansava. Adoeceu uma única vez, aos oitenta e três, e
deixou-nos.
O meu pai veio jantar a minha casa,
porque nesta idade o melhor que se pode oferecer no dia do pai é a companhia.
Olho-o, de soslaio, enquanto come o bacalhau, o seu prato favorito e vejo o pai
que me contava invariavelmente a mesma história, ao domingo de manhã, na sua
cama, enquanto a minha mãe já andava na lida. A cama dos pais é sempre melhor e
qualquer filho que se preze sabe disso. Talvez seja por isso que gosto do
aconchego da cama pela manhã. Eras tão mais novo… Já tinhas as tuas cãs, a
marcarem-te a maturidade, mas as mãos, pai, eram infinitamente mais lisas e
mais ágeis… Agarravas-me pelos braços e fazias-me rodopiar, como uma pena (era
uma pena, de tão magrita!) enquanto entoavas o pirata da perna de pau/orelhas
de burro/ e cara de mau. Lengalenga repetida à exaustão, enquanto voava cada
vez mais alto! Vejo o pai que nos acordava às sete da manhã, na época balnear,
com as cantorias (que detestávamos e tu fingias não perceber), enquanto
tratavas da tua higiene pessoal. Já ficava doida nessa altura com o chinfrim
matinal. A idade não me melhorou… Invariavelmente, fazias-nos chegar às 08:30 a
Mindelo, montavas o estaminé para passarmos o dia e escapulias-te para o café.
Lias os jornais e falavas com o Eusébio, o pescador. Lá regressavas para o
almoço e a sesta da tarde, mas ninguém te apanhava na areia, muito menos no
mar! Deveria ser um suplício para quem não gosta de praia, mas que se convence
de que é o melhor para a saúde dos petizes e lá fazias o esforço… Nós não
compreendíamos! Como é que não se gosta de praia?! E corríamos como doidos, explorávamos
os penedos e saltávamos nas dunas, mas a nada assistias. Lá nos trazias as
pastilhas de mentol e compravas a melancia ou melão na dona Lurdes, para depois
do almoço. Ainda hoje te esqueces de que não gosto de melão e continuas a
oferecer-mo, de cada vez que o há às refeições. Digo sempre o mesmo:
- Ó papá, não gosto de
melão!
- Ai
não?! – Questionas sempre e intervém a mãe irritada, “francamente, ó homem, és
sempre a mesma coisa! Ainda não sabes que nem ela nem o Miguel gostam de
melão?!
Eu rio do teu ar de espanto, sempre
renovado… Para a próxima, a história repetir-se-á, mas não faz mal nenhum.
Hoje,
pai, quando soltaste que querias chegar aos oitenta e cinco e perguntei a
sorrir se agora o peditório era anual e dizes que sim… “Ai queres que diga de dez
em dez!” - Dizes, rendido ao tempo e às evidências, porém, acrescentas, ufano, que
cortaste a lenha para o fogão e para a lareira… Mas sabes, pai, os teus olhos verdes
perderam o fulgor de outrora. Há um brilho sem luz de quem já não espera muito.
Talvez sintas que já cumpriste a missão e vivas nessa tranquilidade de vida feita.
E, de repente, surge a evidência de que fui tanto a menina do papá!
Felizmente,
ainda tens qualidade de vida. Conduzes e quando perguntei se ainda vias bem ou se
era preciso levar-te (uma pequena provocação), perguntas-me se estou tolinha… Ainda
não perdes os jogos do nosso Porto (nem de nenhum outro, se puderes) e manténs a
cadeira na Mata Real, apesar de já não ires ao estádio…
Dou comigo a pensar que a pandemia veio interromper
certos hábitos que devemos retomar. Almoçamos e jantamos menos vezes juntos. Perdeu-se
a rotina e a vida corre, voa-nos pela janela, mas teremos de a segurar nestes pedaços
de eternidade, porque um dia será tudo o que restará.
Nina
M.
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