Pão com açúcar
Julgo, se a memória não me atraiçoa, já me ter
confessado neste espaço saudosista. Só deixa saudade o que verdadeiramente se
inscreveu na nossa memória e no nosso coração. As saudades são tão mais
profundas quanto esses momentos nos pareçam irrecuperáveis. Na verdade,
irrecuperáveis são todos os que já foram experienciados, porque os do presente
ou os do porvir poderão assemelhar-se, mas já não serão os mesmos. A mesma água
não passa sob a mesma ponte duas vezes…
Certo é que amiúde sou inundada pela saudade que me
traz cheiros, sabores e afetos… Quem não ficou preso à sandes de banana ou de
Nesquick da infância (o nosso melhor nutella e o pão bem mais saboroso do que
quando era barrado com tulicreme)?
Por estes dias, dei comigo a pensar no meu meio pão
preenchido com açúcar, da minha tia Alexandrina, mulher do meu tio Zé. Este meu
tio teve sete filhos, meus primos direitos por parte da minha mãe, todos bem
mais velhos do que eu, a começar por aquele que é o meu padrinho. Já não tenho
nem estes tios nem dois destes primos, que foram colhidos bem antes do seu
tempo, ambos por ataque cardíaco (a Rosa, aos 33 e o António, este ano, aos
64). Evidentemente, se a saudade fosse reposta com o simples pão com açúcar,
seria facilmente resolvida, mas são os momentos que ela evoca que são
irrecuperáveis e insubstituíveis. A vida era dura para este meu tio, a quem
cabia a função de trazer o dinheiro para casa, enquanto os filhos não começaram
a trabalhar. Depois, já com os filhos jovens a ajudar, as coisas melhoraram um
pouco, porém, nada era fácil. De maneira que o pão com açúcar era a guloseima
que a minha tia me podia ofertar. Ou isso ou o pão com planta, mas esse não
tinha nada de especial! E eu comia-o com deleite e com o açúcar a
derreter-se-me na boca e a deixá-la doce e esbranquiçada…
A minha tia perguntava-me quase em surdina:
- Ó Sonita, (ainda hoje sou tratada assim por esses
primos) queres pão com açúcar?!
E como haveria de não querer se era a doçura
clandestina, quase um segredo bem guardado? A minha mãe só há pouco o soube e
riu-se incrédula, quando falei da sandes com açúcar da tia Alexandrina,
afiançando-me que só agora sabia da iguaria…
Nem o tento repetir, porque nem hoje aprecio tanto
o açúcar e porque sei que seria uma desilusão. Esse sabor não é recuperável,
porque não teria o ingrediente da infância e do afeto, dos primos que me
levavam aos sábados à noite para casa deles (quantas vezes vi os festivais da
eurovisão na casa deles, desde as Doce ao José Cid, de quem a minha prima
Glória gostava tanto)! E dormia com as raparigas na mesma cama, quatro e comigo
cinco, umas para os pés e outras para cima. Também sei que dormia para cima e
no meio de duas ou três. Não se questionem, porque cabíamos todas e ao que me
lembro (apesar da minha tenra idade, quatro ou cinco anitos) ninguém se
queixava, no dia seguinte, de dores de costas causadas pelo desconforto. Ficava
lá a dormir de sábado para domingo, talvez para dar descanso aos meus avós maternos
com quem ia dormir, normalmente e, já no meio de ambos, afirmava que a perna esquerda
era da avó e a direita do avô, antes de dormir e da oração do anjo da guarda. E
ainda hoje oiço o Lino das Toiras, quando desço a ladeira, com a minha avó de
candeia em punho a perguntar-me:
- Tu já vens, minha papagaia?!
Dizem-me que falava muito e alto, de maneira que a
minha passagem se fazia anunciar ao povo, mas também me lembro de esperar que a
velhinha Sra. Palmira não estivesse por lá à minha passagem, para não me
agarrar nem me besuntar com os beijos repenicados que fazia questão de me dar!
Só ela e mais tarde o meu tio Claudino que nos amassava e nos ferrava as
bochechas como se não houvesse amanhã. Assim, quando a minha mãe chamava para
dizer olá ao tio, nós aparecíamos obedientes e contritos, a esfregar a cara por
antecipação!
Certo dia, depois de acordar sozinha nos meus avós,
pois eles já se tinham levantado e depois de tanto chamar sem ser ouvida, deduzi
que se tinham ido embora sem mim e lá me vesti com a saia castanha de rosas miudinhas
amarelas e que apertava atrás com um colchete e foi um sarilho! Meti os pés ao caminho,
a segurar com as mãos a saia que não conseguia apertar e ao chegar ao meio da aldeia,
as raparigas, as minhas primas, já não me lembro de qual, lá me perguntou onde ia
e a razão de estar sozinha. Lá disse que ia para casa, porque não sabia da avó.
Depois de me abotoarem a saia, lá foram avisar a avó, que coitada, por aquela hora,
deveria estar a morrer de preocupação por não me ver…
Olhando para trás, apesar da origem humilde, ganho
consciência do mimo com que fui criada. Ah, Glória! Uma destas primas, afilhada
da minha mãe, quantas vezes de prato na mão, no penedo grande do monte em
frente à casa dos meus pais e que hoje já não existe, com toda a paciência, me
fazia comer as batatas cozidas esmagadas com o ovo e o peixe… E a mistura
colava-se ao palato e não queria despegar e com muito custo lá ia engolindo a
comida, do prato dos leõezinhos, que apesar do depósito de água quente
arrefecia, por força do tempo que levava a ser ingerida. Ainda hoje não aprecio
batata cozida, mas não serve de desculpa, porque à época não apreciava nada!
Havia a minha avó que me subornava com refresco de vinho (hoje, seria caso para
chamar a CPCJ ainda que fosse uma pinguinha só para colorir a água adoçada com
açúcar), mas que só me deixava beber no final da refeição, que durava uma
eternidade!
Tudo isto me surge a partir de um pão com açúcar. Uma
infância feliz, muito longe de bens materiais, mas povoada de seres que me quiseram
e fizeram tanto bem! Seres para quem hoje, mulher adulta e mãe de filhos continuo
a ser a Sonita, para não dizer Quita, que era assim que dizia chamar-me aos meus
dois anitos. Uma infância cheia de dormidas fora de casa… Cheia de afetos e de sabores.
Nina M.
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