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sábado, 21 de março de 2020

Crónica de Maus Costumes 173



Heróis sem capa nem espada

Nas muitas viagens que faço dentro do meu ser, constantemente me deparo com o facto de ser apaixonada pelos anti-heróis dos livros.
Eu não gosto propriamente do super-homem ou do Batman nem do Rambo… Prefiro aquelas personagens recolhidas cheias de si num vazio solitário deprimente, mas que comovem.  Gente com boa índole, mas com defeitos e que fazem a vida aos tropeções. Talvez por isso as personagens de Dostoiévski sejam fascinantes. Carrego o deplorável Raskolnikov e a sua Sonja como duas sombras há anos. Será que o homem sobrevive ao crime que comete mesmo acreditando que este é moralmente correto? Inteligente, o estudante comete o crime perfeito (convencido de que todos os homens superiores cometeram assassinatos em nome de um bem maior para a humanidade), mas é corroído pelo remorso. Após o assassinato da senhoria que o atormentava com a sua dívida, ele fica em estado febril e em delírio. Embora se convença de que não sente culpa, a redenção, que surge após a confissão do crime, revela o oposto. Se a sua consciência lhe dita que agiu de forma correta, a sociedade condena-o e Raskolnikov vive o pânico de ser descoberto pela mãe e pela irmã. Eis que surge o conflito entre o “eu” e a sociedade e “Crime e Castigo” adquire, desta forma, a faceta de um ensaio filosófico sobre a relação do indivíduo com a sociedade que o cerca. A personagem está convencida de que agiu corretamente, mas o medo de que a sua mãe e a sua irmã possam descobrir o que considerariam um ato vil está presente. O romance comprova que a moral ou a ética (para quem preferir um conceito mais laico) por mais que seja do foro individual, correlaciona-se com a sociedade, principalmente com os círculos mais íntimos do indivíduo. Desta forma, a possibilidade de dececionar alguém que nos é querido, poderá ter enorme influência nas nossas escolhas. Teria Raskolnikov assassinado a velha senhoria se a mãe e a irmã estivessem com ele em S. Pitsburgo? Raskolnikov não evitou a sua natureza nem tergiversou na sua autenticidade, realizando o que o seu íntimo dizia ser o correto. Afinal, ele, destinado a grandes realizações, via-se impedido de triunfar por falta de dinheiro. A velha usurária não faria falta à sociedade, bem pelo contrário. Nesta certeza, a personagem agiu e assumiu as consequências do terrível ato: consumiu-se em culpa, apesar de a recusar, até à confissão do crime.
Há, na personagem, a atração pelo abismo de todos os anti-heróis. Percebe que o trajeto será sinuoso, mas algo o impele a trilhá-lo. No meio dos despojos, sobra sempre a enorme coragem de se confrontar a si mesmo com o pior de si e a consciência desoladora de não o poder evitar. Talvez fosse mais fácil, mas como também diz José Régio:

“Vem por aqui- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: “vem por aqui”!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali…
            (…)
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…”

            É esta coragem imensa e rara que me comove e espanta nestes heróis sem capa nem espada. O desígnio triste da fatalidade que sabem não poder evitar, mas com a consciência de que é tudo o que possuem e que todo o contrário é nada, pois apenas significaria perderem-se de si mesmos.

Nina M.









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