Heróis sem capa nem
espada
Nas muitas viagens
que faço dentro do meu ser, constantemente me deparo com o facto de ser
apaixonada pelos anti-heróis dos livros.
Eu não gosto
propriamente do super-homem ou do Batman nem do Rambo… Prefiro aquelas
personagens recolhidas cheias de si num vazio solitário deprimente, mas que
comovem. Gente com boa índole, mas com defeitos
e que fazem a vida aos tropeções. Talvez por isso as personagens de Dostoiévski
sejam fascinantes. Carrego o deplorável Raskolnikov e a sua Sonja como duas
sombras há anos. Será que o homem sobrevive ao crime que comete mesmo
acreditando que este é moralmente correto? Inteligente, o estudante comete o
crime perfeito (convencido de que todos os homens superiores cometeram
assassinatos em nome de um bem maior para a humanidade), mas é corroído pelo
remorso. Após o assassinato da senhoria que o atormentava com a sua dívida, ele
fica em estado febril e em delírio. Embora se convença de que não sente culpa,
a redenção, que surge após a confissão do crime, revela o oposto. Se a sua
consciência lhe dita que agiu de forma correta, a sociedade condena-o e
Raskolnikov vive o pânico de ser descoberto pela mãe e pela irmã. Eis que surge
o conflito entre o “eu” e a sociedade e “Crime e Castigo” adquire, desta forma,
a faceta de um ensaio filosófico sobre a relação do indivíduo com a sociedade
que o cerca. A personagem está convencida de que agiu corretamente, mas o medo
de que a sua mãe e a sua irmã possam descobrir o que considerariam um ato vil
está presente. O romance comprova que a moral ou a ética (para quem preferir um
conceito mais laico) por mais que seja do foro individual, correlaciona-se com
a sociedade, principalmente com os círculos mais íntimos do indivíduo. Desta
forma, a possibilidade de dececionar alguém que nos é querido, poderá ter
enorme influência nas nossas escolhas. Teria Raskolnikov assassinado a velha
senhoria se a mãe e a irmã estivessem com ele em S. Pitsburgo? Raskolnikov não
evitou a sua natureza nem tergiversou na sua autenticidade, realizando o que o
seu íntimo dizia ser o correto. Afinal, ele, destinado a grandes realizações,
via-se impedido de triunfar por falta de dinheiro. A velha usurária não faria
falta à sociedade, bem pelo contrário. Nesta certeza, a personagem agiu e
assumiu as consequências do terrível ato: consumiu-se em culpa, apesar de a
recusar, até à confissão do crime.
Há, na
personagem, a atração pelo abismo de todos os anti-heróis. Percebe que o
trajeto será sinuoso, mas algo o impele a trilhá-lo. No meio dos despojos,
sobra sempre a enorme coragem de se confrontar a si mesmo com o pior de si e a consciência
desoladora de não o poder evitar. Talvez fosse mais fácil, mas como também diz José
Régio:
“Vem por aqui-
dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os
braços, e seguros
De que seria bom
que eu os ouvisse
Quando me dizem:
“vem por aqui”!
Eu olho-os com
olhos lassos,
(Há, nos meus
olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os
braços,
E nunca vou por
ali…
(…)
Não, não vou por
aí! Só vou por onde
Me levam meus
próprios passos…”
É
esta coragem imensa e rara que me comove e espanta nestes heróis sem capa nem espada.
O desígnio triste da fatalidade que sabem não poder evitar, mas com a consciência
de que é tudo o que possuem e que todo o contrário é nada, pois apenas significaria
perderem-se de si mesmos.
Nina M.
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