Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce
Ouço a notícia do agente da PSP e dos
militares da GNR que escravizavam os imigrantes, depois, junta-se a notícia dos
onze bombeiros que decidiram sodomizar o colega, ainda rapazito jovem… Que
diabo se passa com esta gente? Não sei como se deixa tanto mal criar-se em nós.
A maldade faz-me sentir impotente. Felizmente, meia-dúzia de meliantes não põem
em causa uma classe inteira.
Quando soube da prisão preventiva de um
sujeito conhecido por suspeita de crimes de associação criminosa, fraude fiscal
qualificada, falsificação de documentos e de branqueamento de capitais, lesando
pessoas e o Estado em cinco milhões e meio de euros, eu já só penso que, pelo
menos, este e os seus compinchas, porque há mais falsários envolvidos, não
exploraram violentamente ninguém…
Cismo no
mundo em que vivo e a fúria ataca-me e, juntamente com este tempo cinzento,
tempo de chuva, tempo húmido e frio, fico mal-humorada. Imagino a habitação
social que se poderia construir com esse dinheiro, para que os jovens possam
ter a sua independência e construir família mais cedo e penso, sobretudo, em
quantos outros cinco milhões e meio esvoaçam na economia paralela para manter
vidas, às vezes, pornograficamente faustosas de que ninguém necessita, sem o
mínimo pudor, a mínima consciência social, a mínima noção de que todos, todos,
todos, devemos contribuir para uma sociedade melhor, porque a sociedade
evoluída é aquela em que todos cuidam de todos. Olhar o mundo e ver que há
gente tão desumanamente e miseravelmente estúpida, que não vê além do seu
umbigo, ensandece-me! Porém, não me compadeço deles. Compadeço-me daqueles que
lhes são próximos e são arrastados para esse lodaçal, sem responsabilidade. Dos
desonestos, por ambicionarem excessivamente mais do que aquilo que necessitam,
por mera vaidade, ou dos cruéis, não sou capaz de sentir misericórdia. Que cada
um colha aquilo que plantou e veja a justiça a funcionar.
Ouvir notícias, hoje, é uma prova de resistência à sanidade. Se
partirmos para o panorama internacional, então, a ação humana fede: a invasão
russa da Ucrânia; a guerra entre Israel e Palestina, com milhares de mortos e
bloqueios à ajuda humanitária; o genocídio e a guerra civil no Sudão; o domínio
de gangues e massacres no Haiti; censura e crimes de lesa-humanidade na
Nicarágua; perseguições e prisões políticas na Venezuela; intensificação da
repressão na Bielorrússia; perseguição dos uigures na China; extinção dos
direitos das mulheres pelo regime talibã no Afeganistão; violência do
narcotráfico no México e no Brasil; sequestros e massacres de cristãos na
Nigéria e Moçambique, entre muitas outras que, certamente, me faltará designar.
Maioritariamente, não ligo a televisão. Pouco vejo e o que vejo é
porque alguém da casa a ligou. Se estiver só, faz-me companhia o silêncio, o
livro ou programas radiofónicos que abraçam a cultura ou me envolvem numa boa
conversa, enquanto trato de tarefas domésticas, porque em minha casa, em
catraia, nunca fui tratada com o síndroma da princesa e, como tal, lá cumpro
com a regra de que quem usa ou suja limpa. Mais depressa me colariam à pele o
síndroma da gata borralheira para aprender que a vida se leva com esforço,
trabalho e empenho. As mulheres da minha família sempre foram muito kantianas
sem sequer imaginarem o que isso significa. A moral cristã do trabalho, também,
lhes foi bem passada e eu… Mais calaceirita me confesso, porque nos meus
devaneios reflexivos reconheço o papel produtivo do ócio e, à boa maneira do
pós-modernismo, abraço a ideia de que o trabalho é necessário com conta peso e
medida e que romantizar os que trabalham em excesso é contribuir para a
normalização dos esgotamentos, a doença do século. De modo que enquanto atimo as
lides caseiras, procuro consolo nesses placebos que se revelam eficazes
enquanto duram e me ajudam a não perder totalmente a fé na humanidade.
Hoje, no “Vencidos” de Luís Osório, fiquei a conhecer um pouco
melhor Luís Portela, o homem que foi médico durante três anos, seis anos
professor universitário e aos 27 anos assumiu a presidência da Bial. Em 1994,
criou a fundação Bial, que atribui inúmeras bolsas para investigação na ciência
e inúmeros prémios, alguns bem chorudos, na área da saúde. Ouvir este homem
falar do seu sentido de vida, apesar de ter uma vida confortável e
economicamente abastada, que se sente feliz quando recebe e-mails de doentes a
agradecer-lhe a descoberta do medicamento que lhes permitiu controlar a
epilepsia ou ouvi-lo dizer que diariamente procura ser melhor do que aquilo que
foi no dia anterior e que esse caminho de aperfeiçoamento deverá ser um
propósito ou, ainda, o cuidado que punha na escolha dos trabalhadores da Bial,
desde o cientista à senhora da limpeza, pois é preferível escolher um bom ser
humano, ainda que menos evoluído tecnicamente, do que um técnico excelente, mas
de má índole, é um verdadeiro bálsamo que minimiza as iniquidades a que vamos
assistindo neste mundo. São estes seres que, ainda, permitem alguma fé na
humanidade e, tal como ele, também o meu “vencido” preferido é Jesus, ele,
homem de ciência, não-religioso, mas absolutamente crente na espiritualidade,
ainda entende ser possível que Ele e a Sua mensagem triunfem. Jesus, o maior e
melhor líder espiritual, diz ele, apesar de também admirar Confúcio e Buda.
Quando se ouve ou lê gente desta, seres absolutamente admiráveis,
quer profissionalmente quer humanamente, aqueles que comecei por referir nos
primeiros parágrafos da crónica tornam-se-me tão pequenos, tão desprezíveis e, sobretudo,
absolutamente, ridículos! Compraz-se o meu coração por saber de homens que
justificam a sua existência. De alguma forma, sereno um pouco e agradeço ao
Luís Osório a possibilidade que nos dá de os descobrir. No meio do deserto
encontrar um oásis é, seguramente, uma forma de salvação.
Ide ouvir, ide.
Nina M.