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sábado, 29 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 444

 

 Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce

               Ouço a notícia do agente da PSP e dos militares da GNR que escravizavam os imigrantes, depois, junta-se a notícia dos onze bombeiros que decidiram sodomizar o colega, ainda rapazito jovem… Que diabo se passa com esta gente? Não sei como se deixa tanto mal criar-se em nós. A maldade faz-me sentir impotente. Felizmente, meia-dúzia de meliantes não põem em causa uma classe inteira.

 Quando soube da prisão preventiva de um sujeito conhecido por suspeita de crimes de associação criminosa, fraude fiscal qualificada, falsificação de documentos e de branqueamento de capitais, lesando pessoas e o Estado em cinco milhões e meio de euros, eu já só penso que, pelo menos, este e os seus compinchas, porque há mais falsários envolvidos, não exploraram violentamente ninguém…

            Cismo no mundo em que vivo e a fúria ataca-me e, juntamente com este tempo cinzento, tempo de chuva, tempo húmido e frio, fico mal-humorada. Imagino a habitação social que se poderia construir com esse dinheiro, para que os jovens possam ter a sua independência e construir família mais cedo e penso, sobretudo, em quantos outros cinco milhões e meio esvoaçam na economia paralela para manter vidas, às vezes, pornograficamente faustosas de que ninguém necessita, sem o mínimo pudor, a mínima consciência social, a mínima noção de que todos, todos, todos, devemos contribuir para uma sociedade melhor, porque a sociedade evoluída é aquela em que todos cuidam de todos. Olhar o mundo e ver que há gente tão desumanamente e miseravelmente estúpida, que não vê além do seu umbigo, ensandece-me! Porém, não me compadeço deles. Compadeço-me daqueles que lhes são próximos e são arrastados para esse lodaçal, sem responsabilidade. Dos desonestos, por ambicionarem excessivamente mais do que aquilo que necessitam, por mera vaidade, ou dos cruéis, não sou capaz de sentir misericórdia. Que cada um colha aquilo que plantou e veja a justiça a funcionar.

Ouvir notícias, hoje, é uma prova de resistência à sanidade. Se partirmos para o panorama internacional, então, a ação humana fede: a invasão russa da Ucrânia; a guerra entre Israel e Palestina, com milhares de mortos e bloqueios à ajuda humanitária; o genocídio e a guerra civil no Sudão; o domínio de gangues e massacres no Haiti; censura e crimes de lesa-humanidade na Nicarágua; perseguições e prisões políticas na Venezuela; intensificação da repressão na Bielorrússia; perseguição dos uigures na China; extinção dos direitos das mulheres pelo regime talibã no Afeganistão; violência do narcotráfico no México e no Brasil; sequestros e massacres de cristãos na Nigéria e Moçambique, entre muitas outras que, certamente, me faltará designar.

Maioritariamente, não ligo a televisão. Pouco vejo e o que vejo é porque alguém da casa a ligou. Se estiver só, faz-me companhia o silêncio, o livro ou programas radiofónicos que abraçam a cultura ou me envolvem numa boa conversa, enquanto trato de tarefas domésticas, porque em minha casa, em catraia, nunca fui tratada com o síndroma da princesa e, como tal, lá cumpro com a regra de que quem usa ou suja limpa. Mais depressa me colariam à pele o síndroma da gata borralheira para aprender que a vida se leva com esforço, trabalho e empenho. As mulheres da minha família sempre foram muito kantianas sem sequer imaginarem o que isso significa. A moral cristã do trabalho, também, lhes foi bem passada e eu… Mais calaceirita me confesso, porque nos meus devaneios reflexivos reconheço o papel produtivo do ócio e, à boa maneira do pós-modernismo, abraço a ideia de que o trabalho é necessário com conta peso e medida e que romantizar os que trabalham em excesso é contribuir para a normalização dos esgotamentos, a doença do século. De modo que enquanto atimo as lides caseiras, procuro consolo nesses placebos que se revelam eficazes enquanto duram e me ajudam a não perder totalmente a fé na humanidade.

Hoje, no “Vencidos” de Luís Osório, fiquei a conhecer um pouco melhor Luís Portela, o homem que foi médico durante três anos, seis anos professor universitário e aos 27 anos assumiu a presidência da Bial. Em 1994, criou a fundação Bial, que atribui inúmeras bolsas para investigação na ciência e inúmeros prémios, alguns bem chorudos, na área da saúde. Ouvir este homem falar do seu sentido de vida, apesar de ter uma vida confortável e economicamente abastada, que se sente feliz quando recebe e-mails de doentes a agradecer-lhe a descoberta do medicamento que lhes permitiu controlar a epilepsia ou ouvi-lo dizer que diariamente procura ser melhor do que aquilo que foi no dia anterior e que esse caminho de aperfeiçoamento deverá ser um propósito ou, ainda, o cuidado que punha na escolha dos trabalhadores da Bial, desde o cientista à senhora da limpeza, pois é preferível escolher um bom ser humano, ainda que menos evoluído tecnicamente, do que um técnico excelente, mas de má índole, é um verdadeiro bálsamo que minimiza as iniquidades a que vamos assistindo neste mundo. São estes seres que, ainda, permitem alguma fé na humanidade e, tal como ele, também o meu “vencido” preferido é Jesus, ele, homem de ciência, não-religioso, mas absolutamente crente na espiritualidade, ainda entende ser possível que Ele e a Sua mensagem triunfem. Jesus, o maior e melhor líder espiritual, diz ele, apesar de também admirar Confúcio e Buda.

Quando se ouve ou lê gente desta, seres absolutamente admiráveis, quer profissionalmente quer humanamente, aqueles que comecei por referir nos primeiros parágrafos da crónica tornam-se-me tão pequenos, tão desprezíveis e, sobretudo, absolutamente, ridículos! Compraz-se o meu coração por saber de homens que justificam a sua existência. De alguma forma, sereno um pouco e agradeço ao Luís Osório a possibilidade que nos dá de os descobrir. No meio do deserto encontrar um oásis é, seguramente, uma forma de salvação.

Ide ouvir, ide.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 22 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 443

 

Ideias de jerico

            Quem nunca teve ideias luminosas, que depois de executadas se percebe que só podem ter sido sopradas ao ouvido por Belzebu, atire a primeira pedra!

Eu tenho algumas e faço o impensável: sei que pode correr mal, mas ainda assim ponho em prática… Já aconteceu duas vezes e não há duas sem três e não adianta jurar que não volto a incorrer na asneira, porque sei que basta que as circunstâncias conspirem e zás! Lá estou eu novamente… Há quem abane a cabeça e chame de teimosia, mas eu prefiro dizer que é … Técnica de aperfeiçoamento…

Não aprecio muito ir à cabeleireira nem a salões de estética. Aborrece-me ter de telefonar para marcar. Sei lá… Não me apetece falar para isso. Ando constantemente a dizer para mim mesma que preciso de ligar, mas nunca me apetece fazê-lo e o tempo vai passando e eu vou procrastinando…

 Entedia-me o tempo gasto nesses locais… Falta-me a paciência e dá-me cabo dos nervos. Ponho-me a pensar no que poderia estar a fazer naquela 1h30 que para ali estou. Um desperdício! Que rica caminhada faria e mais proveitosa!

Quando a falta de tempo aperta, por obrigações profissionais, tudo se torna pior e sou obrigada a fazer escolhas. O cabelo não se compadece com alturas ocupadas e há momentos em que uma mulher se põe a olhar e aquilo… Bem… Já lhe começa a meter ranço… Dita o juízo que se ligue e se marque uma hora na cabeleireira e pronto. Ficaria resolvido. No entanto, esta alminha, lembra-se que até pode ir buscar a tinta e fazer o procedimento em casa e, enquanto, a tinta está no cabelo, até se pode ir fazendo outras coisas! Muito prático, pois claro… Seria muito prático, se a cor que a nossa cabeleireira faz existisse prontinha… Porém… Não acontece exatamente assim e vamos arriscando…

Mulheres! Tenham cuidado com os acobreados! Garanto-vos que já consegui ficar rosa, laranja e ruiva mais escura. Pois… Desta vez foi ruiva… E atrevi-me dois dias, mas aquela mulher não era eu e nem a Nina que tão bem conheço! E a esta altura já se estão a questionar … Foi à cabeleireira arranjar o que estragou… Pois claro que não! Não ia arriscar ouvir sermão da minha cabeleireira que já deve andar pelos cabelos das invenções ranhosas que vou arranjando… Nem pensar! Já sabem que a única pessoa que nos manda baixar a cabeça e a gente obedece é, precisamente, a cabeleireira! Não senhor! A Internet também serve para coisas boas e lá aprendi que os verdes e os azuis, por serem do espectro oposto cortam os vermelhos e que uma tinta clara que diga cinza ou mate mitiga o problema. Ufa! Safei-me do ruivo… Mais ou menos… O acobreado lá está, mas a coisa está mais aproximada do que tinha e dá para o gasto…

Agora… Tranquilamente, deixarei passar esta fase ruim e quando estiver mais desafogada e a tinta já mais desbotada, prometo-me que lá vou ao salão e se a Zeza estranhar, eu lá direi que… Enfim… Tive de meter uma coisita caseira a meio para arranjar as raízes por falta de tempo, mas que foi uma cor aproximada, mas que sempre é melhor ir lá retificar bem aquilo. Placidamente, ela fingirá acreditar, enquanto me separa as mexas e vê os acobreados que considerará mitigar, que ela é que sabe o que põe a mais ou menos para o resultado ser decente, enquanto pensa com os seus botões que já andei a inventar, mais uma vez, e que espero que ela arranje o que eu mesma andei a arruinar… Mas também… Vá lá… É só cabelo! Já que lá vou menos vezes do que o desejável, dar-lhe um bocadinho mais que pensar não fará assim tão mal…

Em casa, os filhos abanam a cabeça e já me dizem… Já estás a inventar outra vez. Na segunda, perante os comentários da canalha, que nunca deixa escapar nada, vão-me dizer: “a stôra pintou o cabelo, outra vez!”. Serenamente, responderei: “a outra era a base que precisei de fazer para chegara a esta.” Assunto encerrado durante dois meses, até à próxima tentativa, quer dizer… Ida à cabeleireira…

 

Nina M.

 

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Há sempre sombra

Há sempre sombra 
Por detrás da luz
E uma certa penumbra
Por detrás do brilho
Um chovisco impercetível
Em dia soalheiro

E quem não sabe ver
Nem escuta
Não adivinha
Ou sequer perscruta
Silêncios

Imagina céus limpos
Sem nevoeiros
Drama
Sem tragédia
E mares
Sem fúria


Na janela
Olhares distantes
A fixar horizontes

Quem tem um sol dentro
Sabe limar-lhe as sombras



segunda-feira, 17 de novembro de 2025

É uma brisa que perpassa

É uma brisa que perpassa  
E me estremece o ser
Vem de longe e abraça
Até ao anoitecer

Não é friagem este sopro
Que sinto também na alma
É tépida aragem que sofro
E me transtorna a calma

Que será e o que diz?
Assim não o sei dizer
É sopro, brisa, aragem
Que me faz estremecer

Neste arrepio de alma
Onde baila o coração
Acende-se imensa chama
Incendeia-se a paixão.

sábado, 15 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 442

 

Porta das petições II

            Deveria fazer como o rei do Conto da “Ilha Desconhecida”, de Saramago, e arranjar um primeiro secretário, que por sua vez chamava o segundo e este o terceiro, que chamava o primeiro ajudante e por aí adiante até chegar à mulher da limpeza que abria a porta das petições para ouvir o homem dizer que queria um barco…

            Acontece que cá em casa a mulher da limpeza sou eu, pelo que acabaria por me caber abrir a porta das petições e perguntar às mulheres:

 - Que quereis?

- Uma crónica que seja um brinde à nossa amizade.

            Lá acabaria por dizer que iria ver o que se podia arranjar e como elas fizessem como o suplicante do conto e se fossem sentar a um canto da porta até lhes fazerem chegar o escrito, é melhor satisfazer-lhes a vontade com o coração grato e disponível.

            Honrarei Aristóteles. Ficai a saber, amigas, que este grego prezava imensamente a amizade. Para ele, este vínculo é essencial para os seres humanos, porquanto lhes permite alcançar a eudaimonia (conceito traduzido, normalmente, por felicidade). Segundo ele, as relações sociais são vitais para o desenvolvimento ético e moral do homem. Tem razão, pois claro. O homem não é sozinho e descobre-se na relação com o outro, que nos obriga a estabelecer os nossos limites e a nossa ética que pode ou não se enquadrar na moralidade vigente, mas que só é construída na relação com o outro. Estes gregos sabiam umas coisas e deixam-nos um legado extraordinário e atual. De modo que, ficais a saber que se Aristóteles fosse vivo, provavelmente, seria utilizador de redes sociais e, mais certo ainda, não dispensaria um jantar, na companhia de amigos, tal como fizemos.  Dizia ele que a amizade poderia ser de três tipos diferentes: a amizade útil, que é aquela em que ambas as partes beneficiam da relação. As pessoas juntam-se porque se podem ajudar de alguma maneira, mas também é superficial, pois desaparece a utilidade e desaparece a amizade. Acontece com os colegas de trabalho com quem temos de colaborar, mas com quem não mantemos contacto fora do âmbito profissional. Depois, há a amizade por prazer, aquela que se fundamenta na busca de prazer e de diversão, visível naqueles que se juntam para o exercício de determinada atividade recreativa ou festa. Esta também é passageira. Basta que os interesses mudem e eles mudam ao longo da vida e a amizade termina. Por fim, vem a amizade por virtude: a mais duradoura e elevada. Esta baseia-se na apreciação mútua do carácter e da bondade do outro, desejam o bem de forma altruísta e partilham valores. Esta amizade é mais rara e exige tempo e intimidade para que se possa estabelecer.

            Creio que já percebestes (sois mulheres perspicazes) aonde vai desaguar a conversa. Obviamente, a nossa amizade encontra-se no estágio número três, mas percorreu as três etapas, necessariamente. Passamos pela utilidade. Conhecemo-nos em contexto laboral, depois, juntamos à utilidade a diversão, ocasionalmente, e, entretanto, muitos anos depois, já em lugares de trabalho diferentes, continuamos a marcar encontro e a falarmos, menos do que aquilo que deveria ser, na verdade, mas a vida não está com contemplações e obriga-nos, sempre a muita ocupação. Todos sabemos que não deveria ser assim. Não se pode adiar o amor como não se pode adiar a amizade e umas tantas outras coisas, mas passamos uma vida inteira a fazê-lo e a arrependermo-nos, para voltar a falhar consecutivamente. Felizmente, vamos conseguindo manter de pé o encontro anual. Por mais jantares e encontros brindados com sorrisos!

            Conhecemo-nos na mesma escola. Primeiro a Adelaide e a Zé, depois a Sofia e eu, no mesmo ano, ambas grávidas. Uma no fim de gravidez, a parir em dezembro e a outra em junho. Em seguida, vieste tu, Lurdes, completar o ramalhete. Quiseram os deuses que colaborássemos, que nos divertíssemos algumas vezes e que a amizade por virtude ficasse.

Vou dizer-vos o que mais aprecio no grupo: a ausência de ego. Nenhuma se considera o alfa e o ómega e olhai, mulheres, que tendes boas qualidades: sois competentes, profissionais e empáticas, mas há em vós um desassombro que me agrada profundamente. Gosto de gente desassombrada e livre de vaidades inócuas. Num mundo onde todos se acham tão cheios de si, encontrar pessoas que sabem que fazem um bom trabalho, mas que encaram esse facto com naturalidade e sem artifícios, permitiu construir esta relação de confiança mútua, que nos permite certas partilhas e muitas, muitas risadas. Temos histórias desde o palheiro da Lurdes até Paris! Já sei, Lurdes, fui uma boa guia turística e muito convincente, ninguém duvidaria do meu conhecimento e até fui enfermeira do “chouchou de la maîtresse”, o diabo do rapaz logo tinha de querer experimentar os serviços do SAMU e os hospitais franceses! Valha-nos ao menos que o médico era uma simpatia! Convosco, ainda arriscaria a mais uma viagem de autocarro para Paris (Deus me livre!) onde só a madame Lurdes consegue dormir “super bem!”

            Por mais jantares e brindes à amizade e que a nossa nunca perca a virtude!

 

Nina M.

           

 

 

 

sábado, 8 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 441

                A porta das petições

               Não aprecio por aí além escrever a pedido, mas há certas petições, feitas de modo indireto, que na verdade dissimulam pequenas recriminações, que não me atrevo a ignorar.

            Vá-se lá saber a razão, o meu rapaz decidiu perguntar-me sobre o que tinha sido a crónica, na semana passada, talvez porque se aproximasse a hora de me sentar, para a escrever. Certamente, uma curiosidade inócua, visto que não lê a mãe. Não faltaria mais nada! Não basta ouvi-la quanto mais lê-la! Lá lhe disse o tema, a polarização política a que se assiste no mundo atual. Atira-me com um “isso é bom”! Entenda-se, a temática, não a crónica em si, obviamente. Disse-lhe que foi referenciado no texto. Ainda antes de acrescentar o que quer que fosse, a pequena, a irmã, olha para mim e diz-me que esta semana poderia escrever sobre ela, que estou sempre a falar do Rodrigo… Nem sempre é em tom elogioso, sempre com muito carinho e amor de mãe, é certo, mas isso ela não sabe. Também não me lê. Pergunto-lhe, então, queres que escreva sobre ti?! “Olha, fala que eu te vou buscar as camisolas e que as uso…”

            Lá lhe fiz o reparo que também tem algumas crónicas em que aparece, mas não a convenci. De modo que, minha pequena amorosa ciumenta, a crónica de hoje é tua, da filha que não escolhi, mas que desejei muito e que não trocaria por outra. A Matilde gosta de reconhecimento, sente necessidade de aprovação e gosta de reforço positivo. Não é difícil conseguir fazê-lo. É uma menina empática e sensível, dona de um coração meigo e que se comove facilmente. É criativa e habilidosa. Ao contrário da mãe, que é uma desajeitada, ela tem jeito para tudo: desenrasca-se muito bem nos trabalhos manuais, é uma boa atleta e uma boa aluna. Tem um brio e uma exigência implacáveis consigo mesma e é muito comprometida com o que decida fazer. A minha menina é aquela pequena ansiosa para quem falhar é insuportável. É assim desde pequenina. Ainda no infantário, fui obrigada a ligar à educadora para lhe dizer que havia dias em que os pais não a conseguiam levar à escola e que precisávamos de recorrer à ajuda do tio. Ainda hoje, quando é preciso, entreajudamo-nos e levamos filhos e sobrinhos, de modo que se acontecesse, de um dia por entre outro, a Matilde chegar ligeiramente mais tarde, a responsabilidade não seria dela. A educadora Denise (beijinho para ela), quando alguns meninos se atrasavam muito, brincava com eles e perguntava-lhes: “Já chegaste, ó turista?” A Matilde, só de pensar que poderia chegar um pouco depois e ouvir a educadora chamar-lhe turista, entrava em sofrimento sério. Teve de me ouvir falar com a educadora para poder serenar. É a menina ansiosa a quem treme as mãos e dói a barriga em dia de certos testes, apesar de se preparar muito bem e tem de recorrer ao “sedatif”, medicamento natural, recomendado pela pediatra, mais placebo do que outra coisa, para controlar o nervosismo. Já está um bocadinho melhor. É a menina a quem tenho de lembrar que não é obrigada a ter “muito bom” a tudo. Ela diz que sim, que sabe, mas chega ressabiada quando as coisas não correm como deseja e apresenta um oitenta e oito. Para ela, abaixo de noventa não é grande coisa… Se for de oitenta cinco para cima, ainda vai, menos disso fica rezingona, o que lhe vale o epíteto de “aziada”, posto pelo irmão, que não é dessas tolices nem compreende tamanhos desvarios… Tenho o mais relaxado que possa existir e a mais ansiosa. Quem sofre é a mãe, que tem de ser diferente, a mãe que cada um deles precisa é o oposto da outra.

            Esta menina delicada e sensível é, também, alegre, sociável, mas tímida, desenrascada, proativa, mas com pelo na venta. Se lhe dá na veneta, não faz fretes e acabou a conversa! É a minha doçura que em tenra idade gostava de me preparar lanches surpresa e de ver a minha reação de felicidade, que consistia em abraçá-la muito e dar-lhe muitos beijinhos. No fim, perguntava se tinha ficado feliz. Tinha de lhe garantir que sim. Precisava extremamente desse reconhecimento, porque gosta de agradar. É a menina que me pedia abraços. “Dás-me um abraço?”. Dava, claro! Muitos e prolongados, até ela se querer soltar de mim. A adolescência limpou algumas destas características. Os afetos começam a envergonhar-se…

            Matilde, raramente me pedes abraços, agora, e quando os dou não os recusas liminarmente, mas és mais comedida, invadida pela vergonha da adolescência. Não gostas de estar na mesma escola da mãe e ainda menos de seres vista comigo. Assim que estaciono o carro, é ver-te sair porta fora o mais rapidamente que consigas! Eu compreendo, filha. E deixo-te seguir, mas sabes… Tenho saudades dos abraços e das tareias de cócegas e de beijos que vos fazia, antes de vos deitar e de vos ler a história, antes de vos adormecer.

            Quando implicáveis um com o outro para saber a quem pertencia a fatia maior do amor da mãe, eu garantia que era exatamente igual: muito e imensurável. O teu mano, mais pequeno, por falta de melhor argumento, dizia-te que eu gostava dele há mais tempo. Não havia como negar, ele é mais velho. Veio primeiro. Fazer-te entender que a partir do momento em que te aninhaste na barriga da mãe te tornaste igual no amor, não era tarefa fácil. Via sempre uma pequena sombra no teu olhar, uma certa tristeza por não seres a primogénita.

O comentário de hoje é a sombra no teu olhar. Eu sei. O teu irmão exige mais da mãe, consome-lhe mais energia e, de certa maneira, mais atenção. A tua mãe é diferente da mãe do Rodrigo, porque assim tem de ser, mas aborrece-se muito, muito menos contigo e podes ter a certeza de que a medida do amor é a mesma: muito e imensurável.

Aqui tens a tua crónica, minha pequena Mati. Dás-me um abraço?

 

Nina M.

              

           

 

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Em qualquer cais

Não te canso de esperar, Amor,
Mesmo se te não espero
Nesta vida gasta e vã

Sinto-te aninhado a meu lado
A ofereceres o peito calado
Numa ausência já prevista

Talvez fosse hora de não esperar
De desesperançar da hora tardia
Conhecer o sabor do dia

De uma manhã que raiou fria
Filha da noite sem calma
Em hora fugidia

Não te canso de esperar, Amor,
Neste inverno que é a vida
Nem em cada despedida

E  se o dia se renova
A espera feita treva
Traz esperança luminosa

Nesse nada feito ausência
A correr para o vazio
Vaga a vida como um fio

Não te canso de esperar, Amor,
Nem que leve duas vidas
Num navio encalhado

À espera em qualquer cais




sábado, 1 de novembro de 2025

Crónica de Maus Costumes 440

 

Bom senso e bom gosto

               O grande revolucionário, hoje, é aquele que mostra equilíbrio e bom senso. Entre o tudo e o nada deve haver alguma coisa e entre o céu e a terra, mais do que se possa suspeitar. Hoje, numa sociedade tão polarizada, o se não és por mim és contra mim vigora, num cerrar de fileiras surdo e absurdo.

            O jovem da casa, que alcançou há poucos meses o direito de votar, é adepto do ideal liberal. Confere. Nunca gostou e muito se contorce quando lhe ditam regras que, de alguma forma, sente como coercivas ao ser. Tenho sempre de lhe recordar que a Liberdade vem a par da responsabilidade, porque implica escolha e estas, consequências. Assim, o que nos acontece, de bom e de mau, é fruto das nossas escolhas, pelo que não adianta tergiversar.  Depois da escolha, exige-se o arcabouço para aguentar as consequências. Algumas trazem ranger de dentes. Como todo o jovem, é cheio de muitas certezas e apresenta algumas dúvidas. Tenho de o fazer pensar, constantemente, que no mundo não existe só o preto e o branco. Como me sabe adepta de políticas sociais, na área da saúde e estou sempre a lembrá-lo da enorme conquista que foi e é o nosso SNS, mesmo que esteja em agonia, por isso, temos o dever de o proteger, assim como defendo uma excelente educação pública, porque não deve haver nenhum jovem que tenha muita vontade de estudar, mas não o consiga fazer por falta de recursos ( e ambos podem coexistir com o privado, mas não deve haver desinvestimento público nestes dois setores), diz-me constantemente que sou de esquerda. Escusado será dizer que, para ele, o atual Governo é de esquerda, ao que lhe respondo que para um comunista, o mesmo é de direita. Não sei dizer exatamente o momento em que os partidos de centro se transformaram, para uns, em partidos de direita e, para outros, em partidos de esquerda. Eu sou uma social-democrata de génese europeia. Neste país, temos dois partidos que representam a social-democracia e que, se fosse noutro país, provavelmente, já se teriam fundido e as franjas de um e de outro teriam de procurar outros lugares. Na política, o vazio não existe. Significa que pretendo para o país a implementação de uma política social responsável, mas que coexista com uma economia que possa ser fulgurante. Quem não produz pouco tem para dar. A política social é implementada através dos impostos e todos devemos ser chamados à nossa responsabilidade, já que os Estados não fabricam dinheiro quando lhes apetece. São as pessoas que geram riqueza através dos seus trabalhos. Por isso, é importante haver uma economia de mercado e uma forte iniciativa privada. Quanto mais produtivo for um país, melhor política social poderá implementar, mas tem de a implementar ou reforçar de modo significativo, porque todos somos responsáveis por todos. Assim se vive nos países mais a Norte da Europa e vive-se muito bem: boa política social aliada a uma economia forte. Falta cumprir Portugal, neste sentido.

            De modo que tenho de lembrar o meu jovem que a esquerda e a direita não são apenas virtudes ou defeitos e, precisamente, por isso, há um centro democrático que deve procurar conjugar o melhor dos dois mundos. E tenho de lhe fazer entender que os direitos laborais como as oito horas de trabalho, ao invés do laborar até que o sol se deite, o direito às férias e feriados pagos, entre muitos outros, foram conquistas da esquerda e que ninguém está disposto a perder. Deve haver, sim, uma economia produtiva e funcional, mas que não singre por conta de uma escravização moderna e, por isso, o estado deve ter um papel regulador sem, no entanto, se imiscuir em demasia ou se tornar demasiado paternalista em relação aos seus cidadãos. É um equilíbrio difícil e que nem sempre é óbvio e muito menos fácil de conseguir. No entanto, é preciso haver discernimento para não sermos arrastados para um lodaçal sem exercício de uma reflexão crítica séria.

            Hoje, se alguém se atreve a dizer que deve haver um maior controlo sobre as pessoas que entram e de quem o país precisa para trabalhar, para proteção dos próprios trabalhadores, evitando que caiam em mãos mafiosas e para se saber quem entra, zelando pela segurança de todos, sujeita-se a ser apelidado de fascista. Os que defendem a abertura de portas, com regras menos exigentes são apelidados de esquerda radical, que procura o caos e a anarquia. É fascista quem se mostra preocupado com questões de segurança e defende as forças de segurança e de extrema-esquerda os que as criticam; É facho e burguês aquele que aspira a possuir alguma coisa de seu, que reconhece o valor do empresário, que cria postos de trabalho e gera riqueza, na sua maioria, o pequeno empresário que faz pela vida (com o suor dos outros todos podemos bem); comunista ou de extrema-esquerda, o que se insurge contra o patrão, ainda que possa ter razão.

            Entre estes dois polos andará a virtude e neste mundo, é um verdadeiro ato revolucionário encontrar-se o equilíbrio. É possível defender-se o imigrante e reconhecer o seu valor, respeitando-o, mas defendendo uma entrada de acordo com as necessidades do país e com as condições que o país lhes possa proporcionar; é possível defender as forças de segurança para que o país continue seguro e estas sejam reconhecidas, mas exigindo-lhes o compromisso com uma atuação respeitosa, recorrendo apenas ao uso proporcional da força, sabendo o cidadão que deve manifestar um comportamento colaborativo. É possível reconhecer o valor do patronato, mas exigir condições laborais e o patrão valorizar o trabalhador sem o qual nada seria possível.

O radicalismo na política e na vida nunca me convenceu. O seis também pode ser um nove, dependendo da perspetiva. Sempre serei de consensos. Sempre serei um ideal que reconhece a necessidade do pragmatismo. Na política, tal como na vida, a pitada dos diversos condimentos será o que lhe dá sabor. Nem só doce nem só amargo. O agridoce é-me agradável. Por mais equilíbrios e menos polarizações, com rejeição total de quem se manifesta intolerante, insultuoso e cultivador de ódios.

Resta acrescentar que o centro democrático tem a sua responsabilidade na insanidade destes tempos, porque não foi capaz de responder aos desafios, aos ressentimentos e frustrações de muitos, perdendo-se em joguinhos, malabarismos e aproveitamentos políticos. Depois, há a franja dos invejosos, imbecis e ignorantes contra os quais a razão nada pode. Contra esses, apenas o desprezo.

Como escreveu Antero, em resposta a Feliciano Castilho, na sua carta “Bom senso e bom gosto”: “pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.”

Nina M.