A lentidão urge no caos
O mundo
avança e transforma-se a um ritmo avassalador. A minha geração será a última a
ter visto o mundo a preto e branco num televisor que tinha uma caixa tremenda, um
mundo onde a lentidão e o analógico se cruzavam.
Por falar em
mundo analógico, não deixa de ser curioso como continua a cruzar-se comigo nos
dias de hoje. A Dona Lurdes, a senhora funcionária que substituiu a Dona
Carminda no seu posto, exerce as suas funções de forma tão simpática e
competente quanto a sua antecessora. A Dona Carminda, mesmo reformada, é uma
instituição dentro da ESPF, porque acompanhou várias gerações de professores e
de alunos que vieram, mais tarde, a ser professores na escola, eu inclusive.
Porém, dizia que o analógico continua a cruzar-se comigo, porque a Dona Lurdes
tirou-me muitas fotografias. Sempre que precisávamos de fotos para as
matrículas, lá íamos ao senhor Passos e, muitas vezes, era a Dona Lurdes que nos
sentava no banco alto e nos compunha o rosto, virando-o mais para a esquerda ou
para a direita, com o guarda-chuva atrás, e fazia os vários disparos que dariam
origem às fotos. Não deixa de ser engraçado que a pessoa que ocupou o lugar da
dona Carminda também me tenha visto crescer…
Naquele
tempo, a lentidão era outra. Primeiro, as fotografias demoravam oito dias a
ficarem prontas e até lá fazíamos preces para que tivéssemos ficado bem, porque
não havia possibilidade de repetir o processo. De modo que a ida ao fotógrafo
para levantar as fotos era sempre precedida por alguma angústia e quando a dona
Lurdes chegava com o envelope que continha as fotos tipo passe e uma outra,
maior, oferta da casa, um estremeção percorria o corpo. A medo, puxávamos pela
fotografia grande para avaliarmos o estrago…
Hoje, com o
mundo digital, tiramos e apagamos a vezes necessárias, espreitamos para o visor
da câmara ou para o ecrã do telemóvel para decidirmos se gostamos ou não da
carantonha que observamos todos os dias ao espelho e não parece tão mal, mas
que nas fotografias decide parecer-se com um maltrapilho…
É impossível passar pela Dona Lurdes
e não me ver sentada no banco, imóvel, a arreganhar a taxa sob as suas ordens: “ora,
agora, um sorrisinho… Isso… Trac, trac, trac… Já está!” Quem aguentaria,
atualmente, oito dias para ver as fotografias? Tudo aquilo era um processo
enigmático! Literalmente, eram tiros no escuro e muitas fotografias não se
aproveitavam! Só sabíamos do resultado, sem direito a segundas oportunidades, quando
tínhamos as fotos na mão e depois de muita espera! Era sempre uma surpresa e
nem sempre agradável. Foi assim durante muitos anos!
De repente, sem que déssemos conta,
surgiu o digital e a Internet. Em poucos anos, deixou de ser necessário ligar o
cabo ao telefone, porque o sem fios trouxe uma liberdade desejada, tal como os
telemóveis… As novas gerações jamais conhecerão o mundo como a minha geração
conheceu. Em vinte e cinco anos, a evolução foi gigantesca e continuamos a
assistir ao processo de transformação, agora, com a chegada da Inteligência
Artificial, só que, neste momento, a evolução será muito mais rápida. Tão
rápida que o homem não consegue acompanhar o ritmo para regular a utilização
das novas ferramentas. Parece estar sempre atrasado, a correr atrás do
prejuízo, porque este novo mundo suscita muitas questões éticas sobre as quais
é necessário refletir para se poder tomar uma posição. No entanto, a reflexão é
do tempo da lentidão e o mundo moderno é da vertigem e do abismo, tonando-nos
reféns da velocidade e do imediatismo.
É imperioso saber pausar. Não há
pensamento sólido no meio de um remoinho. Talvez seja importante voltar à
paciência da espera de outros tempos. Um tempo em que a chuva de verão tinha
odores e as amoras amassadas em folhas de videira tinham sabor, o tempo em que
a receção de uma carta escrita à mão criava formigueiro na barriga, em que o
verão demorava o seu tempo sem que, de repente, fosse setembro outra vez, o
tempo em que para se ver uma fotografia eram precisos oito dias, o tempo em que
o poema levava uma vida inteira dentro de um ser.
É preciso tempo para ter tempo,
porque é a única medida impossível de recuperar e a única que nos constrói.
Nina M.