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sábado, 31 de maio de 2025

Crónica de Maus Costumes 423

 

Cinquenta anos         

 

A escola que frequentei como aluna e na qual, atualmente, sou professora, celebrou cinquenta anos de existência, há uns dias. Nasceu no mesmo ano que eu e é dezoito dias mais velha…

            Quando a conheci, éramos ambas adolescentes, mas ela mais acabada do que eu, porque deixava entrar água nalguns espaços, havia uma sala onde nasciam pequenos cogumelos e era gélida e inóspita. Ainda assim, a escola era bem melhor do que a preparatória, que era mais velha, ainda, e onde havia aulas ao sábado de manhã, o que me deixava profundamente irritada.

Gostava mais do liceu (como chamávamos à secundária) do que tinha gostado da preparatória. Era maior e os miúdos não eram tão grunhos. Não havia um senhor Ferreira com um molho gigantesco de chaves na mão a distribuir mosquetes a torto e a direito sobre as cabeças dos petizes encurralados num pátio, enquanto aguardavam pelos autocarros. « Eiriz, Sanfins da pacense ! » - gritava o senhor Ferreira a plenos pulmões. A catraiada desse autocarro furava e corria desabrida no corredor estreito de acesso à rua, guardado pelo funcionário. De cada vez que vinha ao portão espreitar os autocarros que já tinham chegado, havia sempre meia-dúzia de atrevidos que avançavam as correntes a servir de gradeamento e se infiltravam no corredor, atrás do funcionário, que nos queria a todos do outro lado do perímetro. Era nessa altura que ele se virava, irritadíssimo, com a sua mão defeituosa, e distribuía cacetadas com o molho de chaves. Ocorre-me, agora, que ele deveria ser o guardião de todas as chaves da escola ! Eu… Sempre atenta e com receio de que alguma vergastada me pudesse acertar inadvertida e injustamente. Lá aguardava, pacientemente, a suportar  os encontrões até ouvir : Ferreira e Vilela, Albano Esteves !… Tudo aquilo me lembrava dos touros prestes a entrar na arena e eu nunca fui fã de touradas…

A chegada à secundária, libertou-me da bruteza e até já era crescida o suficiente para poder vir para o pátio do Star, o café, aguardar a chegada do autocarro, na paz do Senhor. Não guardo recordações extraordinárias desse tempo.  Na verdade, a adolescência é uma fase difícil e sei que era bem mais feliz a correr os montes, até Ferreiró Fundo, junto ao rio Ferreira, próximo do atual bosque das Quintãs que, na época, era ladeado por lameiros cultivados ou a explorar os castelos de madeira encastrada ou a jogar ao trinta um com a ganapada da aldeia. Uma infância feliz, num meio mais rural, ainda, do que era a pequena cidade de Paços.

Naquela época, a escolaridade obrigatória era apenas o sexto ano, o que implicava a seleção de miúdos mais cedo, um ambiente mais ordeiro, cívico e respirável. Havia a D. Carminda, o senhor Abel, a D. Conceição e o senhor Nuno, um funcionário mais novo, que gostava de meter conversa com a ganapada e que brincava connosco. Havia ralhetes, mas não havia mosquetada e era muito mais tranquilo. Também não havia aulas ao sábado, o que era um prazer !

Na segunda metade do século XX , a escolaridade obrigatória era apenas o sexto ano. Comecei a trabalhar e esta regra ainda se mantinha. Depois, passou a ser o nono até chegar ao atual décimo segundo ano. Em 1991, apenas 30% da população terminava o secundário, na região do Tâmega e Sousa. Em 2023, 98,3% terminou a escolaridade obrigatória. O abandono escolar foi drasticamente reduzido, através de políticas de inclusão social e de apoios para famílias mais carenciadas. Foi feito um esforço tremendo pelo país, pela escola e também pelas autarquias para chegarmos até aqui. O ensino profissional permitiu reduzir o abandono escolar e é imperioso que nele se continue a apostar, melhorando-o, até porque os estudos comprovam que os países europeus mais desenvolvidos economicamente, apresentam um ensino profissional forte. A Criação dos CTESP segue esta política de investimento na educação. Portanto, não são legítimos os discursos apocalíticos sobre a educação. Muito tem sido feito e muito continua por fazer. Nem tudo está péssimo e nem tudo está ótimo. É preciso continuar a caminhada. Neste percurso, gostaria que os jovens compreendessem a importância da escola, mesmo que esses tempos possam não ser os mais felizes. Na escola, crescemos ; na escola, nos educamos ; na escola, adquirimos competências para a vida ; na escola, criamos laços e afetos. A minha vida foi e continua a ser feita na escola, que me tem trazido tanto : alegrias e dores, prazeres e cansaços, afetos e indiferenças, enfim… Tudo aquilo de que uma vida se compõe !

Agradeço à ESPF a minha formação de base, à UTAD, a minha formação e os anos de alegria, vividos junto dos melhores amigos que se poderia desejar e onde fui, ingenuamente, feliz. Agradeço a todas as escolas por onde passei (são muitas, cerca de dezasseis), porque em todas elas aprendi.

Parabéns, ESPF ! Venham lá outros cinquenta, mas que, entretanto, algures pelo caminho, eu me possa reformar !

 

Nina M.

 

           

 

 

 

terça-feira, 27 de maio de 2025

São as palavras que me hão de perder

São as palavras que me hão de perder
As ideias que me trazem o
Mar dos meus mergulhos
Profundos. Em apneia.
E nelas respirar
E retirar o sal da vida


São as palavras que me hão de matar
Aquietar o coração
até ao último batimento
Onde reine o silêncio na
Solidão mais funda

São as palavras que me hão de ferir
Até sentir os olhos doer
De tanto os fechar à bruta realidade
Que me encarcera o ser

São as palavras que me hão de matar
De amor e de desamor
Em carne viva ardente

São as palavras que me hão de ferir
Na fatalidade de ser ser em busca

São as palavras um universo por decifrar

sábado, 24 de maio de 2025

Crónica de Maus Costumes 422

 Rescaldos

               Os resultados eleitorais do passado fim de semana têm feito correr rios de tinta… A AD subiu, mas não o suficiente para governar sozinha, de modo que o Governo terá de conseguir dialogar com os diversos partidos e arranjar acordos para conseguir implementar o que preconiza.

               A surpresa foi a queda substancial do principal partido da oposição e constatar que esses votos migraram para um outro que muitos não desejariam ver crescer. A maioria do eleitorado continua a preferir uma orientação política ao centro. Se somarmos o resultado da AD e o do PS, constata-se que continuam a ter mais votos do que todos os outros juntos. Para mim, bom sinal. Os portugueses continuam, na generalidade, a preferir gente moderada à frente dos desígnios do país.

               No entanto, será necessária uma séria reflexão sobre o sucedido, desde logo pelo partido socialista. Para além de sofrer o desgaste de muitos anos de Governo, a aposta em Pedro Nuno Santos revelou-se ineficaz. Nesta altura, é fácil percebê-lo, à época não foi tão evidente.

O partido terá de encontrar, agora, o seu caminho novamente, sob uma nova liderança.

               Espero que o Governo recém-eleito seja capaz de governar e de fazer um bom trabalho, em primeiro lugar, pelas pessoas, pelo país; depois, porque as eleições mostram que não há margem para erros. Se a AD falhar na tarefa, temo bem que os indesejáveis continuem a subir. Alimentam-se do ressentimento de muitos e da ignorância dos mais incautos. O argumento de que no pós-abril têm sido sempre os mesmos a governar e que pouco fizeram tem tido acolhimento e, por isso, entendem que a mudança deve pender para o lado dos que berram mais alto as falácias que apresentam, dos que se mostram mais radicais e mais duros, dos que espicaçam a implementação de uma justiça popular, dos que preferem os ataques pessoais à troca séria de ideias.

O problema é que o populismo parece ter-se entranhado e tomado conta de muitos. Tomou conta de muitos jovens que formam a sua consciência política com pouco conhecimento histórico, baseando-se nos vídeos que veem no Tikok e no Instagram. Todos os candidatos as usaram, mas o que mais cativa os jovens é o Ventura e os seus soundbytes, repetidos ad nauseam. Estamos a falar de jovens escolarizados, que ouviram falar das ditaduras fascistas, do Holocausto e da política perniciosa de Hitler, na escola, mas não conseguem interpretar os sinais… É preocupante. No entanto, talvez não devesse espantar se pensarmos que os alemães, povo dotado de uma cultura extraordinária, com filósofos, escritores, músicos de excelência, gente instruída e experiente caiu no engodo, não só não viu a verdade como apoiou o regime totalitário.

Hannah Arendt explica-o bem, citando como exemplo Hitler e Stalin, que usaram a propaganda como meio de disseminar o mal, de forma atrativa. Hitler escolheu o povo judeu como vítima do terror, responsabilizando-o por todo o mal e dificuldades que a Alemanha atravessava, colhendo o apoio do povo, para perpetuar o poder e o controlo das massas. O totalitarismo tem, como tríade orientadora, a polícia, a propaganda e o terror. À primeira, concedia-se o poder do exército, a segunda disseminava o ódio e o terror gerava perseguições e torturas, instigava o medo que, por sua vez, neutralizava as ações políticas dos homens.  Todos totalitarismos funcionam de forma semelhante. Nunca anunciam claramente ao que vêm, mas os sinais estão lá. Todos os ditadores seguem os mesmos princípios. Fê-lo também Stalin, Mussolini, Franco e Salazar, que escolheram os seus opositores como alvos a abater.

Não é preciso ser-se muito inteligente para perceber quem o líder do partido em ascensão responsabiliza por todos os males do país, numa propaganda perniciosa e mentirosa, com dados adulterados, promovendo o ódio e o medo, ganhando o apoio das massas. O medo da invasão cultural e da substituição demográfica, o medo do agravamento da crise da habitação, o medo da perda de trabalho (trabalhos que o português já nem quer fazer), o medo de que o dinheiro dos contribuintes seja gasto no apoio a gente que não contribui… O medo, o medo, o medo… O egoísmo e a burrice. Tudo junto.  O líder em questão atua desta forma descarada e sem pudor.

Uma coisa é dizer-se que as entradas no país devem ser mais controladas e a imigração mais regulada, até para salvaguarda dos próprios imigrantes. Há que evitar circuitos de miséria e de pobreza e também combater as máfias em torno da escravização de pessoas. Não é admissível que um país de emigrantes permita o alastramento desses grupos criminosos. Não é admissível que um país de emigrantes considere que os emigrantes portugueses são todos muito bons e os imigrantes sejam todos muito maus, que é o que se quer fazer sentir. Outra, bem diferente, é usar o soundbite como arma de arremesso contra quem se escolheu como alvo, incentivando o racismo e a xenofobia para fazer crer na necessidade de um líder forte e duro o suficiente para “limpar Portugal”. Só a expressão me causa calafrios.

O modus operandi está identificado. Reflita quem quiser, ainda que eu saiba que a base da argumentação factual não convença quem já se convenceu. Segundo especialistas da comunicação, apenas as contranarrativas serão eficazes contra o discurso do ódio. A comunicação social tem um papel importante a fazer, no sentido de dar voz a quem não a tem para desconstruir preconceitos. Seria bom que os órgãos de comunicação local se interessassem pelas histórias das pessoas e as contassem, numa ação de proximidade. Talvez, assim, se percebesse que gente é gente, em qualquer lugar do mundo, sujeita aos mesmos deveres e aos mesmos direitos. É também o dever de cada cidadão saber ouvir e predispor-se a conhecer o outro, com humanidade, habituar-se a ver pessoas e não números.

Esta é a forma que encontrei de exercer cidadania…

 

Nina M.

 

 

 

sábado, 17 de maio de 2025

Crónica de Maus Costumes 421

 

Insanidade

 

            Já não me deveria espantar com a loucura que a humanidade revela. Por princípio, o conceito define um estado mental em desequilíbrio, um transtorno mental caracterizado por uma perda de contacto com a realidade, que pode ser acompanhado de delírios, alucinações, agitações ou apatia.

            Seja o que for, a loucura ou a insanidade é uma fuga a uma realidade que possivelmente causa dor. Pensando no que vou vendo, uma boa parte da humanidade está emocionalmente doente. Não encontro outra explicação.

            Deparei-me, ao longo da semana, com notícias sobre os bebés « reborn »… Para quem desconhece, tratam-se de bonecos hiper-realistas, feitos de silicone e que parecem bebés verdadeiros, com cheiro, cabelo, pele, em tudo muito semelhantes. São lindos, efetivamente…

Quando era criança, gostava imenso de bonecas. Tinha cerca de quarenta bonecas, todas batizadas com o seu nome. Umas reproduziam pequenas palavras, outras gatinhavam, outras andavam… Tinha uma oferecida pela minha tia que estava em França que cantava « sur le pont d’Avignon, on y danse on y danse/ Sur le pont d’Avignon, on y danse tous en rond… » Ainda as guardei para a minha pequena, que já não apreciou tanto estes brinquedos… Tive um chorão, como lhe chamavam, com cerca de 50 centímetros, que ao longe passava mesmo por um bebé. Prenda da minha madrinha, na minha primeira comunhão, aos seis anos. Escusado será dizer que foi a minha melhor prenda. Adorava bonecas! E consumia a Lila (a minha tia a quem não chamamos tia), que tem mãos de fada para a costura. O chorão (martelão para o meu pai, mas epíteto que me deixava furiosa, porque o nome dele era Nuno, se a memória não me engana) tinha direito a alcofa de palhinha, lençóis, colcha e roupa feita à medida pela Lila, pois claro, que me aparava o pião! Se naquela época existisse o reborn eu quereria muito um! Na verdade, olho para esses bonecos e acho-os lindos! Parece que estamos na presença de recém-nascido de carne e osso. Até aqui tudo certo, a perfeição do boneco espanta-nos, mas pensamos na sorte das crianças que podem ter bonecos tão bonitos e realistas…

O problema surge quando percebemos que os bonecos pertencem, na maioria, a mulheres adultas que os tratam como bebés verdadeiros! O boneco tem certidão de nascimento, dão-lhe biberão, têm berço, dão-lhe banho e a pior das loucuras : levam-nos ao hospital porque o boneco está com febre ou para fazer a consulta de rotina e pesar, inclusivamente, organizam festas de aniversário e convidam outras « mães » de « reborn’s »! Ao ver que isso já é um comportamento disseminado e mais ou menos normalizado nas redes sociais, siderei ! De repente, pareceu-me que a louca seria eu, tal a normalidade com que estas mulheres agiam ! Bem sei que há homens adultos que também brincam com as « playstation's », mas isto pareceu-me um absurdo!

Sabemos que os algoritmos fazem das suas… Depois de ver isto, logo de seguida, surge-me a notícia de um homem, um fisioculturista, que tem uma boneca adulta, também hiper-realista e, tal como as  « mães reborn », também ele levava a namorada (seria uma « reborn » já crescida) para lanchar, jantar, passear, viajar… Dizia, satisfeito, que as pessoas se acercavam, curiosas, que queriam tirar fotografias com ambos e que ficavam agradavelmente surpreendidas…

Eu… Nem sei que diga… Parece-me, obviamente, um comportamento desviante a necessitar de psicoterapia… Que fragilidades emocionais, que vínculos fragilizam as pessoas para que estas tenham a necessidade de recorrer a estas ilusões ? Quão difícil será suportar a realidade para necessitarem de um escape desta amplitude ? Apesar de se mostrarem felizes nos seus papéis de mães e de namorados, estes seres não podem estar bem ! Ou isso ou, então, quem já estará insana para este mundo sou eu… O que leva as pessoas a preferirem laços fictícios e imaginários à realidade ?! Por mais hiper-realista que seja, um « reborn » não é uma criança nem a boneca hiper-realista, namorada… Que vazios poderão preencher num relacionamento unilateral ?! O casal de namorados dificilmente discutirá e as mães imaginárias não terão grandes problemas para educar as suas crianças!

Vivemos num mundo estranho, onde o homem humaniza os animais ao ponto de os despir da sua natureza, tratando-os como filhos, preferindo cuidar de um animal de estimação a uma criança e em que se substitui os afetos verdadeiros por afetos fictícios, como se estes só pudessem existir quando o outro não nos contesta e não nos desagrada. Talvez o Homem seja tão incompetente e tão intolerante que não é capaz de aceitar que o outro possa divergir de Si, de aceitar a diferença e, sobretudo, de respeitar a vontade alheia… O homem não está para o diálogo, para a cedência nem para o encontro, que implica trabalho e determinação, mas não pode, por outro lado, dispensar os afetos, uma vez que somos seres gregários e gostamos da validação alheia. De modo que, eventualmente, alguns se fechem numa bolha própria em que a realidade e a ficção se misturam a tal ponto que já não conseguem distinguir qual deles é o mundo mais verdadeiro : o do sonho e da imaginação ou o da realidade dolorosa.

Fiquei apreensiva e a pensar como iria gostar de um boneco desses, se ainda fosse criança…

Os meus filhos já estão crescidos, já não usam biberão nem fralda e já não precisam que lhes dê banho e, por mais saudades que sinta dessa fase em que após a amamentação os deitava sobre o meu peito, onde eles dormiam consolados e eu lhes sentia o cheiro a bebé e os sentia tão unicamente meus, não me passa pela cabeça fazer isso com um boneco! A fase do faz de conta já passou há muito e por mais hiper-realistas que sejam, não são seres de verdade! Só alguém profundamente desiludido poderá apreciar tanto uma ilusão!

 

Nina M.

sábado, 10 de maio de 2025

Crónica de Maus Costumes 420

 

Educar para a paz

               Detenho-me a pensar sobre o mundo que deixaremos aos nossos filhos. A escalada dos conflitos violentos entre nações e a carnificina a que se assiste não pode deixar ninguém indiferente. Que mundo lhes deixaremos e para que mundo os preparamos ?

            É preciso educar para a paz. Educar para a cooperação em vez da competição, num mundo cada vez mais opressivo e sem valores. Discordo por completo de quem entende que a competição num grupo pode trazer benefícios. Não há competição saudável, mesmo quando se apregoa o inverso. A competição inspira a vontade de vencer o adversário. Vencer o adversário significa ser-se e ver-se como o mais forte, sentir-se superior. A ideia de superioridade em relação ao seu semelhante é perniciosa. Portanto, no meu ponto de vista, a única competição válida e frutífera é aquela que fazemos somente connosco. A exigência que nos impomos de sermos melhores no dia seguinte do que aquilo que fomos no dia anterior. Nesse sentido, sempre fui desprovida de ambição. Nunca pretendi nem quero fazer ou sentir-me melhor do que alguém. A única competição em que participo é comigo mesma e o meu trajeto. Os outros não são e nunca foram para aqui convocados. Viver assim traz uma paz de espírito imensa.

            A vontade de querer ser, forçosamente, o primeiro sem se reconhecer os méritos alheios geram invejas e vaidades ocas. É necessário compreender que cada ser tem as suas singularidades apreciáveis e que se cada um for capaz de as colocar ao serviço de um coletivo, a comunidade avança equilibrada e bem-estruturada. Sabê-lo não é querer tornar todos iguais ou impedir o crescimento individual. Pelo contrário, estimular esse crescimento, mas que cada um saiba que todos somos responsáveis por todos. Não se pode olhar uma criança faminta, um velhinho abandonado, as vítimas que perecem numa guerra, como acontecimentos distantes que nos são alheios. Se cada um assumisse o compromisso para com o outro, o mundo seria mais equitativo e cordial. Se encarássemos a cooperação como um dever e uma obrigação moral quer na pequenas quer nas grandes coisas,  seríamos, talvez, mais felizes…

            Talvez por isto me seja penoso ver meninos demasiadamente competitivos. Essa competição fá-los querer ser melhores e evoluir, dirão alguns. Pode ser, mas assenta no princípio errado. A motivação para ser melhor deve ser intrínseca, a competição consigo mesmo e não com o outro, porque isso não é vontade de melhorar, trata-se, apenas, da satisfação do seu ego e de vaidade vã.

O mesmo acontece com os pais que parecem exigir aos filhos aquilo que eles mesmos não foram capazes de fazer : atingir a excelência em todas as áreas, obrigando-os a uma competição destruidora, submetendo-os a uma pressão insidiosa e contraproducente. Estes pais ensinam os filhos que o seu valor enquanto ser humano depende da quantidade de cincos ou de dezoitos que a pauta apresente. Já poucos perguntam se o filho é capaz de ser gentil, de ser educado e de ser disponível para os seus colegas. Se é capaz de trabalhar e de colaborar em grupo, se é honesto nas suas apreciações, se apresenta competências socioemocionais… Ignoram estas virtudes, trocando-as pelo número que possa encher o ego (mais dos pais do que dos filhos) na pauta, sendo capazes das maiores artimanhas para alcançarem o pleno.

Seria bom que os filhos tivessem a liberdade para falhar, que não sentissem a obrigatoriedade de serem excelentes a tudo, porque ninguém atinge a excelência todos os dias, nem os maiores génios e se formos capazes de nos olhar no espelho sem máscaras, perceberemos que por detrás de uma pequena vitória haverá imensas derrotas. A nossa vida é feita de fracassos, de tropeços, de quedas e de alguma superação. Reerguer exige força e coragem, ferramenta que se aprende na derrota. É na dificuldade e na sua aceitação que o homem se faz. Quando surge, porventura, uma conquista, será um pequeno prazer, corolário de muitas frustrações.

É bom que os pequenos tenham espaço para as suas lutas e superações, que cresçam com saúde mental e seria bom que compreendessem que aprendem mais com a cooperação do que com a competição, para o respeito do outro sem a crença da superioridade. Eduquemos e eduquemo-nos para a paz.

Nina M.

 

sábado, 3 de maio de 2025

Crónica de Maus Costumes 419

 

Exílio e nostalgia

               Dei-me conta de que a vida de qualquer ser humano é feita de pequenos exílios. Uns são voluntários, outros, forçados e fruto das circunstâncias.

               Se procurarmos no dicionário pela palavra exílio, no sentido literal, significa expulsão da pátria, deportação, degredo. Não é a esse sentido literal a que me refiro. Vivemos pequenos ou grandes exílios, mesmo sem sair do território onde nascemos.

               O tipo de exílio a que me refiro está associado ao termo nostalgia. Qualquer português diria saudade, mas entre um e outro termo há nuances que os distinguem e particularizam. Nostalgia vem do grego “nostos”, que significa retorno ao lar, associado a “algia”, de “algos”, que significa dor, tristeza, angústia. Nostalgia é, portanto, à letra, a dor do regresso a casa. O termo foi fixado, inicialmente, pelos suíços para se referirem à tristeza motivada pela saudade de casa e que lhes seria fatal. A saudade de casa afetava-os de forma peculiar. Mais tarde, passou a referir-se a qualquer saudade intensa de casa: a de marinheiros, condenados, escravos africanos… Foi também considerada uma doença grave durante a Guerra Civil Americana, causando mesmo a morte aos soldados. A partir da segunda década do século XX, o termo passa a ser usado no sentido de saudade do passado, talvez por influência da literatura francesa, que recorre à palavra “nostalgie”.

               Gostei, particularmente, do tratamento que Kundera fez da palavra no seu livro “Ignorância”, associando a palavra aos emigrantes ou exilados, como ele mesmo, no sentido em que havia essa saudade, esse profundo desejo do regresso a casa, mas a constatação de que quando o regresso acontecia, não vinha sem dor e o significado literal de nostalgia (a dor do regresso) ganha um profundo sentido. A casa já não é a que ficou guardada na memória e o sujeito também já não é o mesmo que se exilou. Entre um e o outro há uma estranheza com a qual não se contava. Eis que o sujeito deixa de se sentir em casa por não mais a reconhecer, por não lhe servir. De modo que o exilado, seja voluntário seja forçado, sem se aperceber bem de como terá acontecido, transforma-se num apátrida, que já não pertence verdadeiramente a um lugar.

               Eu gosto de expandir a palavra. O exilado não é apenas o que perdeu a terra natal, mas também aquele que perdeu pessoas que faziam a sua casa. Nenhum ser humano é poupado a esta experiência, pelo que, ao longo da vida, andaremos várias vezes exilados de pessoas que, por razões várias, partiram. De alguns exílios, jamais recuperaremos. Sobra um vazio, uma orfandade impossível de colmatar. Nestes casos, talvez o único placebo seja a memória, a recuperação mental de um passado que não volta, logo sem futuro. No entanto, poderemos colocar a mesma questão de Camus em “A Peste”: Que fazer com uma memória que não serve para nada?

A memória pode ser uma evocação que não cria nem projeta, apenas remete à clarividência do irrecuperavelmente perdido, a uma consciência mais profunda do exílio em que se vive. Paradoxalmente, ainda assim, são essas memórias que permitem transformar as desgraças ou esse exílio de alma num lugar mais habitável.  

               Toda a perda é um exílio que exige um luto e o ser humano anda, assim, uma vida de luto em luto até ao seu exílio final, fora deste tempo, deste espaço e desta dimensão. Em última instância, o homem pode inclusivamente viver exilado de si mesmo, quando se vê em exílio do outro. Este será, talvez, o pior dos lutos, a pior das perdas e a maior ineficácia da memória.

 

Nina M.