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sábado, 5 de outubro de 2024

Crónica de Maus Costumes 389

 Autor e obra

 

               Alice Ann Munro foi uma contista canadiana que venceu o Nobel da Literatura, no ano 2013. A escritora faleceu este ano, em maio, com 92 anos de idade e vinha a padecer de demência há dez anos.

            Munro foi distinguida pela qualidade das suas narrativas, destacando-se a capacidade de criar grandes histórias com o quotidiano. As suas personagens não são heróis ou heroínas invulgares, mas seres humanos com a suas vulnerabilidades, as suas lutas e os seus segredos. As suas narrativas surpreendem pela falta de linearidade temporal, com analepses e prolepses (recuos e avanços temporais). Era, muitas vezes comparada ao escritor russo Anton Tchekhov. Pessoalmente, não gosto destas comparações… Ninguém é o outro além de si mesmo. Munro deve ser conhecida por si, pelo seu trabalho e não porque o seus estilo lembra, de acordo com algumas opiniões, este ou aquele escritor. Qualquer escritor será, certamente, uma amálgama de influência da escrita alheia, as suas experiências e circunstâncias, o seu pensamento e a sua originalidade criativa.

A vida é sempre trágica e nem sempre bela. Sobre a fama de Munro, abateu-se a tragédia, quando a sua filha denunciou que tinha sido vítima de abuso sexual, quando tinha apenas 9 anos e ao longo do tempo, por parte do padastro, Gerald Fremlin, com quem a mãe se casara em segundas núpcias. Andrea, a filha de Munro, decidiu revelar a verdade ao mundo, alegando que este facto não podia ser omitido na biografia da mãe, apresentando queixa do ocorrido, em 2004. Andrea terá contado ao pai biológico, mas este nada revelou a Munro. Foi a própria filha, que 16 anos mais tarde, escreveu uma carta à mãe, em que lhe contava ter sido vítima de abuso desde a infância até à sua adolescência. Quando Munro confrontou o marido, este admitiu o sucedido, responsabilizando Andrea. A escritora ter-se-á separado do marido, durante uns tempos, mas voltou para ele, alegando o amor que lhe tinha. O caso acabou por ser julgado em tribunal e o pederasta declarou-se culpado e foi condenado, aos oitenta anos, a dois anos, em liberdade condicional.

A filha não terá perdoado a mãe pelo facto de esta ter protegido o seu malfeitor, por se ter comportado, nas palavras dela, como uma mulher traída, concentrando-se na própria dor, em vez de se centrar na proteção da própria filha, cortando os laços entre ambas. Apesar da gravidade do caso, não houve grande repercussão e o próprio biógrafo de Munro decidiu ocultar esta informação.

Evidentemente, a reação de Munro ao sucedido causa estranheza e alguma incompreensão. Seria Munro, emocionalmente, tão dependente que não conseguisse afastar-se do malfeitor que acabou com a inocência da filha? Pelos vistos, ter-lhe-á servido de inspiração para a narrativa “Vandals”. A opinião pública centra-se no comportamento de Munro, que escolheu ficar com o perpetrador, mas eu também questiono o papel do pai biológico, que sabendo o que se passava, até mais cedo do que a mãe, não agiu em conformidade…

Obviamente, a história é arrepiante. É impossível ficar indiferente ao sofrimento Andrea e não condenar a inação dos seus pais, no entanto, o comportamento reprovável não altera a qualidade dos escritos de Alice Munro.

Assim, é importante saber separar o autor da obra. O autor é e, certamente, Alice foi, tal como as suas personagens, um ser humano vulnerável, com as suas loucuras e os seus segredos, com uma vida vulgar como tantas outras, com a tragédia a que condição humana sempre está exposta.

Poderá ser difícil compreender como a escritora conseguiu perdoar o marido (para mim é), porque uma vez pederasta, para sempre pederasta, como foi que ela não sucumbiu ao nojo moral em relação à figura de Fremlin, mas não me compete julgar e, muito menos, boicotar a leitura da sua obra pela sua fraqueza e loucura.

Eu também terei as minhas. Cada um com as suas. Um dia destes, pego em Munro.

 

Nina M.

           

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