Imbecilidades inaceitáveis
O mundo hodierno é estranho e
paradoxal. Vivemos na era onde o acesso à informação está à disposição de um
clique e, por mais estranho que nos pareça, a desinformação grassa. Saber é
poder e controlar o saber, mantendo outros na ignorância, perpetua-o. Não
admira, pois, que as notícias falsas proliferem.
Com o desenvolvimento da Inteligência
Artificial, o mundo que conhecemos tornar-se-nos-á mais estranho ainda. A
facilidade com que alguém conseguirá criar hologramas perfeitos para se fazer
passar por outrem é assustadora. Mais assustador é a aceleração com que
entramos nesse “admirável mundo novo” sem que haja tempo para que os
especialistas da área da ética pensem sobre uma série de questões, levantem os
problemas e ajudem na regulação para que não caiamos na possibilidade de
vivermos numa espécie de Matrix, onde a realidade virtual substitui aquela
em que vivemos. Hoje, com a rápida evolução da tecnologia, a criação de uma
realidade virtual paralela que se confunda com a verdadeira não é uma impossibilidade
e, por isso mesmo, é assustador.
As notícias falsas inundam as redes
sociais. Através delas, criam-se factos (falsos) e recria-se a realidade
existente. A humanidade ainda não aprendeu a discernir a verdade da mentira
propagandeada e já se caminha a largos passos para situações em que essa
distinção se tornará praticamente impossível.
Surge esta reflexão, após a leitura
de uma notícia que dava conta do alvoroço que aconteceu na Wikipédia, depois
de a famosa frase com que se inicia o livro O Segundo Sexo, de Simone de
Beauvoir, “Não se nasce mulher, torna-se mulher” ter sido usada numa prova de
acesso, no Brasil. O administrador do site viu-se na contingência de ter
de restringir a possibilidade de mexer na entrada Simone de Beauvoir, por estarem
a ser cometidos sucessivos atos de vandalismo. A filósofa foi acusada de nada
perceber de biologia, de ser pedófila e de ser nazi. Tudo mentiras, linguagem
falaciosa que subverte os factos e contamina a opinião pública. Ao que parece,
alguém com responsabilidade social, ligado à educação, terá ele mesmo condenado
a utilização das célebres palavras da autora na prova. Ora, ou a estupidez é
infinita ou a ignorância é muita! Seja qual for o motivo, alguém assim, não
deveria ocupar um cargo de tamanha responsabilidade. Espanta-me, ou melhor, já
não me espanta nada, que as pessoas não procurem confirmar a veracidade das
informações, mas melindra-me que não usem o pensamento para depurar a
informação e comam tudo o que lhes é servido ou para destilarem ódio ou com outros
fins encobertos e perniciosos. Acontece
que Simone sabia o que afirmava e tinha, sim, os mínimos conhecimentos de
biologia. Parvo é quem não é capaz de ultrapassar o sentido literal da frase.
Também não era nazi e foi crítica do regime, acontece que trabalhava numa rádio
que foi tomada pelos nazis, aquando da capitulação de Paris e ou cumpria o que
lhe ditavam ou sofreria, naturalmente, as consequências de quem tinha o
atrevimento de desobedecer às claras e acabaria ou morta ou num campo de
concentração e, por último, a acusação de pedofilia prende-se com o facto de
ter assinado uma petição, juntamente com muitos outros intelectuais franceses
para descriminalizar o relacionamento com menores, desde que consentido, a
partir dos treze anos, idade com que os jovens podiam ser responsabilizados
criminalmente, naquela altura, em França. O raciocínio seria de que se os
jovens eram suficientemente adultos para assumirem a responsabilidade por um
crime, também o seriam para escolher a sua vida sexual. Convém também lembrar
que, na época, o casamento com jovens meninas de quinze e dezasseis anos era vulgar
e permitido. Eu discordo absolutamente dessa posição de Simone e dos muitos
outros intelectuais, mas não é lícito acusá-la de ter defendido a pedofilia. Por
último, o envolvimento sexual de Simone com três alunas, incluindo também Sartre,
o seu companheiro, foi usado como arremesso. Na verdade, nenhuma delas era menor
de idade e ao que parece, uma delas terá acusado Simone de assédio, mais por
despeito do que qualquer outra coisa, pois o vínculo da mestre com Sartre era
inquebrável. Esta forma de vida, se ainda hoje é considerada promíscua pela sociedade
ocidental, que dizer na França dos anos quarenta do século passado, onde entrevistas
a mulheres revelam que mesmo as que estudavam na universidade, tudo o que
almejavam era casar-se e dedicar-se à casa. Quando lhes perguntavam sobre o
motivo de estudar, se essa era a perspetiva, respondiam que era para serem
cultas e, desta forma, não envergonharem o marido, mas que o seu papel deveria
ser o de donas de casa, de esposa e de mãe. Aceitavam esta premissa com total resignação
e sem questionamento.
Simone de Beauvoir revoluciona a
mentalidade patriarcal e vive como quer, rompendo, corajosamente, com os grilhões
de uma sociedade castradora da mulher.
Ao afirmar que “não se nasce mulher,
torna-se mulher”, a filósofa pretendia apresentar a tese que desenvolverá e
justificará ao longo do livro. Como existencialista, a existência precede a
essência, assim, o indivíduo (homem ou mulher) constrói-se ao longo da vida,
por meio das escolhas que faz. A mulher, ao nascer, não vem programada para ser
esposa, mãe ou doméstica. Todas as crenças em relação à mulher, vista, por exemplo,
como um ser sensível, atribuindo à sua natureza o impedimento para a execução
de determinadas tarefas e cargos, são fruto, na perspetiva de Beauvoir, da
socialização e de uma cultura fortemente assente no patriarcado, constituindo
uma forma de o homem perpetuar o seu poder e conseguir continuar a inferiorizar
ou a secundarizar as mulheres. Durante anos, apenas as meninas eram ensinadas a
fazer as tarefas domésticas, eram canalizadas apenas para certas profissões,
era-lhes vedado o acesso à vida pública e à política. Não tinham o poder de
intervir socialmente.
Não vejo nada de errado no pensamento
de Simone no que à secundarização do papel da mulher diz respeito e que foi e
ainda continua a ser perpetuada ao longo dos séculos. Se dúvidas houver, basta
olhar para outro tipo sociedades, como o Irão e o Afeganistão, por exemplo, para
as dissipar.
Mediante toda a informação disponível
e que está acessível a qualquer pessoa, resta questionar sobre a intenção dos que
subvertem falaciosamente a informação. Discordar da forma como Simone escolheu
viver não concede o direito à injúria. Ela deixou um legado importantíssimo
para as gerações futuras e quem não lhe reconhece a justiça do pensamento na
defesa dos direitos da mulher, só poderá estar de má-fé.
Nina M.
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