Os nossos mortos
O senhor Francisco
partiu para a sua última viagem. O senhor Francisco é o senhor meu sogro. Uso o
presente porque deveria ser desta forma que deveríamos falar dos nossos mortos.
Vi partir o meu
avô António, quando apenas tinha cinco anos e ainda não havia capelas
mortuárias. Os mortos eram velados em casa. Lembro-me do avô António na sala. O
meu primeiro morto. Cinco anos depois, foi a avó Matilde. Não a vi sem vida,
mas vi-a muito doente, acamada, já a definhar e a soro. Depois, seguiram-se os
avós paternos, tios e a matriarca que ficou a cumprir o papel que já havia sido
da sua mãe. A morte anda de mãos dadas com a vida. É olhada com desconfiança e
desagrado e, no entanto, há situações em que é o melhor que poderia acontecer
ao ser humano. Ler “Intermitências da Morte”, de Saramago, é compreender que a
passagem é fundamental e que a ideia de imortalidade, afinal, talvez não seja
assim tão boa.
Não pretendo um
texto triste nem tecer grandes considerações sobre o absurdo que pode ser a
existência humana se não lhe encontramos sentido e, mesmo encontrando, vá-se lá
saber…
Quero fixar o
senhor Francisco no tempo, conferindo-lhe a eternidade possível, através de
algumas palavras…
Homem calado e
circunspeto, sempre nos recebia com um sorriso no olhar, acompanhado da
pergunta: “Então, hoje viestes por cá? Está bem…”
Creio que das
vezes que o presenciei mais falador foi num dia em que lhe comecei a fazer
perguntas sobre o serviço militar. Como tantos outros, tinha estado em Angola,
mas dizia, com satisfação, que não passou muito mal, visto que era cozinheiro.
Lembro que me contou algumas peripécias para poder arranjar determinados
produtos, mas que fome não tinha passado. A cozinha era um bom lugar para se
sobreviver.
Gostava da barba desfeita, do cabelo aparado, tinha
boa memória e sentido de humor.
Certo dia, o
filho decidiu dar-lhe a máquina elétrica de barbear que não usava, por não
gostar. Explicava que lhe deixava a pele queimada, de modo que se o pai se
desse bem, poderia ficar com o aparelho. O senhor Francisco perscrutou-o por
segundos e não respondeu se gostava ou não de se barbear com máquina. Olhou
para o filho que trazia barba de dias e apenas respondeu, tranquilamente, e com
alguma ironia: “E de gilete também não…”. Rimos do chiste, obviamente.
Com fama de
teimoso, para não ouvir as imprecações da esposa, porque era fraco de coração e
de pulmões, refugiava-se… Na verdade, escondia-se para fumar o seu cigarrito e
beber o seu copito, sem ter de ouvir a mulher a resmungar (com toda a razão) que
lhe fazia mal e que ele não tinha juízo nenhum e que dava cabo da saúde.
Evidentemente, não conseguia enganar ninguém, mas fazia ouvidos de mercador.
Creio que era um pouco assim… Deixava que falassem, poucas vezes responderia,
mas fazia sempre como lhe apetecia. Foi teimoso também na hora da partida…
Creio que a morte se viu obrigada a negociar com ele. Já tinha tentado levá-lo
uma vez, há oito anos, através de uma infeção hospitalar, mas não foi capaz,
porque ele resistiu. Baixo e magrinho, mas com uma resistência assinalável…
Desta vez, o senhor Francisco não conseguiu ficar por cá mais tempo, mas obrigou-a
a uma negociação dura. Talvez como fazia com os outros… Sem grandes palavras,
mas sempre à sua maneira.
Descanse em paz,
senhor Francisco, e talvez um dia, volte a perguntar “Viestes por cá, hoje? Então,
está bem…”
Nina M.
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