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sábado, 11 de maio de 2024

Crónica de Maus Costumes 373

 

Lanzarote e o universo saramaguiano

            Tive o prazer superior de ir com um grupo de colegas de português, que lecionam secundário, tal como eu, visitar Lanzarote, num intercâmbio cultural e pedagógico com um grupo de canários que também já estiveram por cá.

            A ilha oferece várias atrações. Será um ponto de interesse para quem se interessar por geologia, mas não se atrevam a trazer uma pedrinha vulcânica convosco, porque será confiscada no aeroporto. Assistimos a caso destes. Os lanzarotenhos têm um especial cuidado com a preservação da sua ilha, um legado que um dos mais internacionais artistas canários, César Manrique lhes deixou. Lanzarote é um destino bastante eclético e que agradará quer aos amantes de praia, quer àqueles que procuram cultura, outro tanto de arquitetura e uma pitada de caminhadas. Tanto agrada ao que gosta de Literatura e artes como ao que gosta de natureza e de biologia e geologia. Quem gostar de aliar diferentes aspetos tem, em Lanzarote, um bom destino.

            Os seus habitantes são muito acolhedores, simpáticos e, como todos os ilhéus, revelam um enorme orgulho nas sua cultura, nos seus artistas e nas suas raízes. Poderia estar aqui a perorar sobre a beleza inóspita da ilha, a fazer lembrar a nossa ilha do Pico, com a sua paisagem enegrecida e a sua vinha, mas Lanzarote não tem verde. É um mar de pedra enegrecida e de paisagem acastanhada cor de terra. Mesmo a Montanha Branca, à qual Saramago subiu para sentir o vento (a ilha é bastante ventosa) não é exatamente branca. Os olhos pousam sobre um contraste entre a pedra negra e um céu e um mar de azul infinito. Belo. Não admira que Saramago se tivesse apaixonado por ela: “Lanzarote no es mi tierra, pero es terra mía”, dizia.

A ilha não é boa para a agricultura, tal como não é o Pico e, por isso, os habitantes da nossa voltaram-se para a caça ao cachalote, hoje desmantelada, os de Lanzarote plantam batata-doce no “jable”, palavra oriunda do francês (“sable”) e que significa areia.

Poderia estar a descrever as belezas naturais, as praias e as joias da arquitetura paisagística de Manrique, mas o que mais me comoveu e penetrou fundo na alma foi a casa de Saramago. Quase um santuário, com todos os relógios parados nas quatro da tarde, a hora em que conheceu Pílar del Rio. Uma casa pequena (um hall de entrada com um tapete feito em pedra vulcânica, no chão. Um tapete de pedra. Quadros nas paredes, um escritório, com vários livros, quadros, obras de arte oferecidas ou adquiridas. Escritores portugueses lembrados… Pessoa, claro, Garrett também, entre outros… A sua coleção de Montblanc, um computador obsoleto, um quarto, uma sala com obras de valor pecuniário e com valor sentimental para Saramago, uma cozinha onde se sentaram nomes ilustres da literatura mundial e académicos, uma biblioteca gigante, que foi feita mais tarde e que reúne um espólio maravilhoso. Uma sala só para escritores latino-americanos, mais pequena, e uma sala enorme para todos os outros. Uma estante só de mulheres escritoras para que não sejam esquecidas no meio dos homens. Já foi nesta biblioteca que Saramago escreveu “A viagem do elefante”, ao som de Bach… Um jardim grande, preto, com catos, uma oliveira e uma alfarrobeira, piscina coberta onde Saramago nadava ao final da tarde e uma cadeira no centro, virada ao mar, onde ouvia o silvar do vento. O infinito azul ao fundo, a trazer paz à alma. Este português pôs Lanzarote nas bocas do mundo, tal como Pílar o pôs a ele, José, no panorama literário mundial. Uma ligação Baltasar-Blimunda… Estar na casa, foi sentir Saramago vivo.

A par disso, para quem possa pensar que foi mero passeio recreativo, houve reuniões para partilhas pedagógicas, partilhas literárias e também rotas literárias para dar a conhecer autores portugueses e autores canários. Assim, conhecemos quem foi Ángel Guerra e a importância que teve para Lanzarote e também Ignacio Romero, com a sua novela “Ana Viciosa – A senhora de Tinajo”, em tradução livre. Aqui, falámos com o autor que também foi o guia na rota. Visitamos a fundação César Manrique, vimos a suas obras espalhadas pela ilha e visitamos vulcões. Uma mobilidade cheia de cultura, que nos enriqueceu pessoalmente, aliada a uma natureza exuberante. Os dias cheios não impediram a boa disposição e a camaradem com os pares. Estreitámos laços e se já éramos um grupo que trabalhávamos muito bem juntos, creio que depois da experiência, trabalharemos melhor. Temos todos as nossas especificidades, as nossas diferenças, mas quando nos juntamos em trabalho, criamos uma boa sinergia. Todos nos orgulhamos das capacidades e das competências que reconhecemos nos outros e ficamos contentes com o excelente trabalho que apresentam. Tão simples e tão bom. Trabalhámos, conhecemos coisas novas, aprendemos, divertimo-nos e rimo-nos muito com parvoíces. Houve tempo para tudo, porque dormimos pouco. Não cabe aqui contar, porque “lo que passa en Lanzarote se queda en Lanzarote”, mas valeu a pena e, como diz Pessoa, “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.

Todos os professores deveriam passar pela experiência. Ganhar conhecimento, partilhar realidades, alargar horizontes e aproveitar para conhecer um pouco melhor os colegas fora do contexto profissional. Enfim, humaniza-nos, torna-nos mais tolerantes e não faz mal a ninguém.

Um agradecimento especial ao grupo Erasmus da escola que tornou a experiência possível e que foram incansáveis para nos proporcionarem as melhores condições. Fazem um trabalho extraordinário e muito desgastante, que eu sei, e sei também que este agradecimento representa os colegas que me acompanharam ( a essas peças, digo que descansem o possível amanhã, porque o trabalho espera-nos, sem remissão).

Gratidão. É tudo.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

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