Lanzarote e o universo saramaguiano
Tive o prazer
superior de ir com um grupo de colegas de português, que lecionam secundário,
tal como eu, visitar Lanzarote, num intercâmbio cultural e pedagógico com um
grupo de canários que também já estiveram por cá.
A ilha
oferece várias atrações. Será um ponto de interesse para quem se interessar por
geologia, mas não se atrevam a trazer uma pedrinha vulcânica convosco, porque
será confiscada no aeroporto. Assistimos a caso destes. Os lanzarotenhos têm um
especial cuidado com a preservação da sua ilha, um legado que um dos mais
internacionais artistas canários, César Manrique lhes deixou. Lanzarote é um
destino bastante eclético e que agradará quer aos amantes de praia, quer àqueles
que procuram cultura, outro tanto de arquitetura e uma pitada de caminhadas.
Tanto agrada ao que gosta de Literatura e artes como ao que gosta de natureza e
de biologia e geologia. Quem gostar de aliar diferentes aspetos tem, em Lanzarote,
um bom destino.
Os seus
habitantes são muito acolhedores, simpáticos e, como todos os ilhéus, revelam
um enorme orgulho nas sua cultura, nos seus artistas e nas suas raízes. Poderia
estar aqui a perorar sobre a beleza inóspita da ilha, a fazer lembrar a nossa
ilha do Pico, com a sua paisagem enegrecida e a sua vinha, mas Lanzarote não
tem verde. É um mar de pedra enegrecida e de paisagem acastanhada cor de terra.
Mesmo a Montanha Branca, à qual Saramago subiu para sentir o vento (a ilha é
bastante ventosa) não é exatamente branca. Os olhos pousam sobre um contraste
entre a pedra negra e um céu e um mar de azul infinito. Belo. Não admira que Saramago
se tivesse apaixonado por ela: “Lanzarote no es mi tierra, pero es terra mía”,
dizia.
A ilha não é boa para a agricultura,
tal como não é o Pico e, por isso, os habitantes da nossa voltaram-se para a
caça ao cachalote, hoje desmantelada, os de Lanzarote plantam batata-doce no “jable”,
palavra oriunda do francês (“sable”) e que significa areia.
Poderia estar a descrever as belezas
naturais, as praias e as joias da arquitetura paisagística de Manrique, mas o
que mais me comoveu e penetrou fundo na alma foi a casa de Saramago. Quase um
santuário, com todos os relógios parados nas quatro da tarde, a hora em que
conheceu Pílar del Rio. Uma casa pequena (um hall de entrada com um tapete
feito em pedra vulcânica, no chão. Um tapete de pedra. Quadros nas paredes, um
escritório, com vários livros, quadros, obras de arte oferecidas ou adquiridas.
Escritores portugueses lembrados… Pessoa, claro, Garrett também, entre outros… A
sua coleção de Montblanc, um computador obsoleto, um quarto, uma sala com obras
de valor pecuniário e com valor sentimental para Saramago, uma cozinha onde se
sentaram nomes ilustres da literatura mundial e académicos, uma biblioteca
gigante, que foi feita mais tarde e que reúne um espólio maravilhoso. Uma sala
só para escritores latino-americanos, mais pequena, e uma sala enorme para
todos os outros. Uma estante só de mulheres escritoras para que não sejam
esquecidas no meio dos homens. Já foi nesta biblioteca que Saramago escreveu “A
viagem do elefante”, ao som de Bach… Um jardim grande, preto, com catos, uma
oliveira e uma alfarrobeira, piscina coberta onde Saramago nadava ao final da
tarde e uma cadeira no centro, virada ao mar, onde ouvia o silvar do vento. O
infinito azul ao fundo, a trazer paz à alma. Este português pôs Lanzarote nas
bocas do mundo, tal como Pílar o pôs a ele, José, no panorama literário
mundial. Uma ligação Baltasar-Blimunda… Estar na casa, foi sentir Saramago vivo.
A par disso, para quem possa pensar
que foi mero passeio recreativo, houve reuniões para partilhas pedagógicas,
partilhas literárias e também rotas literárias para dar a conhecer autores
portugueses e autores canários. Assim, conhecemos quem foi Ángel Guerra e a importância
que teve para Lanzarote e também Ignacio Romero, com a sua novela “Ana Viciosa –
A senhora de Tinajo”, em tradução livre. Aqui, falámos com o autor que também
foi o guia na rota. Visitamos a fundação César Manrique, vimos a suas obras
espalhadas pela ilha e visitamos vulcões. Uma mobilidade cheia de cultura, que
nos enriqueceu pessoalmente, aliada a uma natureza exuberante. Os dias cheios
não impediram a boa disposição e a camaradem com os pares. Estreitámos laços e
se já éramos um grupo que trabalhávamos muito bem juntos, creio que depois da
experiência, trabalharemos melhor. Temos todos as nossas especificidades, as
nossas diferenças, mas quando nos juntamos em trabalho, criamos uma boa
sinergia. Todos nos orgulhamos das capacidades e das competências que
reconhecemos nos outros e ficamos contentes com o excelente trabalho que
apresentam. Tão simples e tão bom. Trabalhámos, conhecemos coisas novas,
aprendemos, divertimo-nos e rimo-nos muito com parvoíces. Houve tempo para
tudo, porque dormimos pouco. Não cabe aqui contar, porque “lo que passa en
Lanzarote se queda en Lanzarote”, mas valeu a pena e, como diz Pessoa, “Tudo
vale a pena se a alma não é pequena”.
Todos os professores deveriam passar
pela experiência. Ganhar conhecimento, partilhar realidades, alargar horizontes
e aproveitar para conhecer um pouco melhor os colegas fora do contexto
profissional. Enfim, humaniza-nos, torna-nos mais tolerantes e não faz mal a
ninguém.
Um agradecimento especial ao grupo Erasmus
da escola que tornou a experiência possível e que foram incansáveis para nos proporcionarem
as melhores condições. Fazem um trabalho extraordinário e muito desgastante,
que eu sei, e sei também que este agradecimento representa os colegas que me
acompanharam ( a essas peças, digo que descansem o possível amanhã, porque o
trabalho espera-nos, sem remissão).
Gratidão. É tudo.
Nina M.
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