Seguidores

sábado, 6 de abril de 2024

Crónica de Maus Costumes 368

 

Relato de viagem

            Voltei a fazer o que dizia que não voltaria a cumprir: ir com alunos a Paris de autocarro. Dezasseis intermináveis horas quase sempre sentados, com curtas e poucas paragens, garantem dores nos joelhos e nas costas, o rabo calcinado e uma enxurrada de insultos a nós mesmos… Não cumpri, é certo, mas aguentei-me uma data de anos sem repetir. O Rodrigo tinha 20 meses quando cometi esta insanidade que agora repeti, e, neste momento, o meu filho tem dezasseis.

            Cá em casa riem-se e erguem as mãos à cabeça, quando não meneiam três vezes a cabeça, qual Velho do Restelo! Dizem-me incapaz de resistir a uma viagem, mesmo que me saia do pelo e que para me verem feliz é meterem-me num autocarro!… Exageram, evidentemente, porque ser obrigado a pernoitar em transportes é horrível! Bem… à ida, não preguei olho, mas à vinda já dormi. Significa que já evoluí. Quem sabe se à terceira sou capaz de dormir à ida e à vinda!... Brinco… Não desejo propriamente uma terceira vez, desta maneira. Nem de avião gosto de muitas horas! Um massacre! Se a viagem for de autocarro, mas implicar paragens amiúde para visitar as cidades com que nos vamos deparando e estadia para dormir, ainda vai, mas andar horas a fio para se chegar o mais rapidamente possível ao destino, quando este fica longe, é muito duro.

            Apesar destes constrangimentos, não deixa de ser uma experiência enriquecedora. Tivemos alunas que choravam emocionadas quando se depararam, pela primeira vez, em frente à Torre Eiffel. Cumpriram um sonho de infância e observavam atentamente a cidade que veem nos desenhos animados “Lady Bug e o gato Noir”, admiradas com o realismo dos bonecos. Afirmavam querer morar ali e os olhos brilharam quer na Champs Elysées quer no mundo mágico da Disney. Outra agradecia o facto de ser filha única, porque se tivesse irmãos, teriam idade aproximada à dela e não haveria dinheiro para todos, por isso, o mais certo seria ficar em casa. “Se tivesse irmãos – dizia ela- não estava neste paraíso!” No entanto, a frase que me marcou foi a de um aluno aflito com a possibilidade de fecho do restaurante onde iríamos jantar… Desatou aos gritos aos colegas para que se despachassem e a mim, preocupado, afirmava: “professora, eu tenho de comer… E se o restaurante está fechado? Na minha opinião, comer é mais importante do que ver monumento…” Tranquilizei-o a rir-me perdidamente com o seu receio de passar fome em Paris… Que se lixe a Torre Eiffel! Rapar fome é que não!

            A beleza consola o meu olhar e Paris é um museu a céu aberto, uma cidade sumptuosa e altiva, vigiada por Montmartre e o Sacré-Coeur, do alto da colina. Os telhados de xisto preto com a suas belas mansardas de janelas abertas sobre o Sena… Prédios simétricos e alvos, enfeitados pelas varandinhas de ferro forjado, cheias de rebiques e berloques. Paris é uma mulher altiva e bela, dona de si, requintada e que se sabe admirada, olhando com certo desdém os que não a sabem apreciar.

Apesar de ser a minha terceira vez, sei que terei de voltar a Paris a título particular para cumprir o que lá me falta fazer ainda… e tenho ainda tanto para descobrir e lugares onde me perder! Quero a Paris menos turística e mais íntima, a Paris dos poetas, dos escritores, dos artistas e dos filósofos… A mulher misteriosa que guarda segredos… Só tive um bocadinho de Quartier Latin… e quase nada de Montmartre (infelizmente, o bairro está vendido ao comércio… Sinais dos tempos…). Precisarei de tempo no Louvre e no Orsay, precisarei de visitar a Madeleine e a Sainte Chapelle, de visitar o museu Rodin e o museu Picasso, talvez voltar a Notre Dame, depois das obras, antes de rumar a Versailles… Paris é uma cidade à qual se volta sempre. Não admira, portanto, a comoção de quem com ela sonhava.

Ter o privilégio de proporcionar esta comoção aos miúdos e vê-los absolutamente felizes compensa as malogradas dezasseis horas de viagem! Para além disso, conheci novas colegas, pessoas agradáveis, afáveis, e boa companhia. Conheci novas facetas de colegas. Na escola, conhecemos tão pouco… Todos somos mais do que o que mostramos e entristece-me que, por vezes, a distinção não passe do que é mais ou menos profissional. Certo é que não há bom profissional sem haver boa pessoa, no entanto, há, vezes além da conta, juízos de valor apressados e injustos, como se nunca falhássemos, como se fôssemos sempre a perfeição, quando todos nós estamos longe dela. Tento sempre não o fazer precipitadamente e ser cautelosa em relação às certezas. Desprezo a mesquinhez. Prefiro a boa vontade e a melhor versão de cada um. Venham lá mais horas de autocarro para as descobrirmos!

 

Nina M.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário