Relato de viagem
Voltei a
fazer o que dizia que não voltaria a cumprir: ir com alunos a Paris de
autocarro. Dezasseis intermináveis horas quase sempre sentados, com curtas e
poucas paragens, garantem dores nos joelhos e nas costas, o rabo calcinado e
uma enxurrada de insultos a nós mesmos… Não cumpri, é certo, mas aguentei-me
uma data de anos sem repetir. O Rodrigo tinha 20 meses quando cometi esta
insanidade que agora repeti, e, neste momento, o meu filho tem dezasseis.
Cá em casa
riem-se e erguem as mãos à cabeça, quando não meneiam três vezes a cabeça, qual
Velho do Restelo! Dizem-me incapaz de resistir a uma viagem, mesmo que me saia
do pelo e que para me verem feliz é meterem-me num autocarro!… Exageram,
evidentemente, porque ser obrigado a pernoitar em transportes é horrível! Bem…
à ida, não preguei olho, mas à vinda já dormi. Significa que já evoluí. Quem
sabe se à terceira sou capaz de dormir à ida e à vinda!... Brinco… Não desejo
propriamente uma terceira vez, desta maneira. Nem de avião gosto de muitas
horas! Um massacre! Se a viagem for de autocarro, mas implicar paragens amiúde
para visitar as cidades com que nos vamos deparando e estadia para dormir,
ainda vai, mas andar horas a fio para se chegar o mais rapidamente possível ao destino,
quando este fica longe, é muito duro.
Apesar
destes constrangimentos, não deixa de ser uma experiência enriquecedora.
Tivemos alunas que choravam emocionadas quando se depararam, pela primeira vez,
em frente à Torre Eiffel. Cumpriram um sonho de infância e observavam atentamente
a cidade que veem nos desenhos animados “Lady Bug e o gato Noir”, admiradas com
o realismo dos bonecos. Afirmavam querer morar ali e os olhos brilharam quer na
Champs Elysées quer no mundo mágico da Disney. Outra agradecia o facto de ser
filha única, porque se tivesse irmãos, teriam idade aproximada à dela e não
haveria dinheiro para todos, por isso, o mais certo seria ficar em casa. “Se
tivesse irmãos – dizia ela- não estava neste paraíso!” No entanto, a frase que
me marcou foi a de um aluno aflito com a possibilidade de fecho do restaurante
onde iríamos jantar… Desatou aos gritos aos colegas para que se despachassem e
a mim, preocupado, afirmava: “professora, eu tenho de comer… E se o restaurante
está fechado? Na minha opinião, comer é mais importante do que ver monumento…”
Tranquilizei-o a rir-me perdidamente com o seu receio de passar fome em Paris…
Que se lixe a Torre Eiffel! Rapar fome é que não!
A beleza
consola o meu olhar e Paris é um museu a céu aberto, uma cidade sumptuosa e
altiva, vigiada por Montmartre e o Sacré-Coeur, do alto da colina. Os telhados
de xisto preto com a suas belas mansardas de janelas abertas sobre o Sena… Prédios
simétricos e alvos, enfeitados pelas varandinhas de ferro forjado, cheias de
rebiques e berloques. Paris é uma mulher altiva e bela, dona de si, requintada e
que se sabe admirada, olhando com certo desdém os que não a sabem apreciar.
Apesar de ser a minha terceira vez, sei
que terei de voltar a Paris a título particular para cumprir o que lá me falta
fazer ainda… e tenho ainda tanto para descobrir e lugares onde me perder! Quero
a Paris menos turística e mais íntima, a Paris dos poetas, dos escritores, dos
artistas e dos filósofos… A mulher misteriosa que guarda segredos… Só tive um
bocadinho de Quartier Latin… e quase nada de Montmartre (infelizmente, o bairro
está vendido ao comércio… Sinais dos tempos…). Precisarei de tempo no Louvre e no
Orsay, precisarei de visitar a Madeleine e a Sainte Chapelle, de visitar o
museu Rodin e o museu Picasso, talvez voltar a Notre Dame, depois das obras,
antes de rumar a Versailles… Paris é uma cidade à qual se volta sempre. Não
admira, portanto, a comoção de quem com ela sonhava.
Ter o privilégio de proporcionar esta
comoção aos miúdos e vê-los absolutamente felizes compensa as malogradas
dezasseis horas de viagem! Para além disso, conheci novas colegas, pessoas agradáveis,
afáveis, e boa companhia. Conheci novas facetas de colegas. Na escola, conhecemos
tão pouco… Todos somos mais do que o que mostramos e entristece-me que, por
vezes, a distinção não passe do que é mais ou menos profissional. Certo é que
não há bom profissional sem haver boa pessoa, no entanto, há, vezes além da
conta, juízos de valor apressados e injustos, como se nunca falhássemos, como
se fôssemos sempre a perfeição, quando todos nós estamos longe dela. Tento
sempre não o fazer precipitadamente e ser cautelosa em relação às certezas. Desprezo
a mesquinhez. Prefiro a boa vontade e a melhor versão de cada um. Venham lá
mais horas de autocarro para as descobrirmos!
Nina M.
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