Cheiro a bafio hipócrita
Alheada
que sou da televisão, metade da polémica em torno do livro que Passos Coelho
teve a infeliz ideia de publicitar e de apresentar passou-me ao lado. Ouvi apenas
meia-dúzia de palavras a uns comentadores, manifestamente, insuficientes para
formar qualquer opinião. Porém, hoje, sempre fui ler a notícia do JN em torno
da questão e que englobava algumas citações das pessoas que assinaram os
artigos de opinião reunidos no livro.
Devo
dizer de antemão, que apesar da minha total discórdia em relação ao teor do que
é apresentado, defendo totalmente o direito que essas pessoas têm de exprimir a
sua opinião. Têm direito a ela como eu tenho à minha e o direito de a exprimir.
Defendo a liberdade, acima de tudo e defendê-la implica defender o direito de
as pessoas declararem o que pensam, desde que isso não constitua uma instigação
ao ódio e à arruaça, mesmo que eu não as acompanhe no seu juízo de valor.
Não
foi o Passos Coelhos quem escreveu os artigos que integram o livro, mas ao
aceitar apresentá-lo, permite-nos concluir que subscreve se não todos, pelos
menos uma boa parte dos artigos. Estranho muito esse posicionamento e questiono
inclusive o que terá levado um liberal a assumir tal posicionamento. O Passos
Coelho pertencia à ala mais liberal do PSD, desvirtuando, inclusivamente, a
génese do partido, na minha opinião, uma vez que, a par de políticas económicas
mais liberais, sempre reservou um quinhão da sua preocupação para políticas
sociais. Este era o partido fundado por Francisco Sá-Carneiro, liberal na
economia e também nos valores, sem, no entanto, descurar a preocupação para com
uma política social. Passos Coelho, quando assumiu a liderança do partido, assumiu
uma posição liberal plena, o que prejudicou o partido, no meu entendimento. Ora,
questiono como um homem que não se enquadra na tipologia do conservador, pode
vir defender um conservadorismo rançoso e ultrapassado. Passos Coelho
divorciou-se e casou novamente, pelo que fica excluído da “família tradicional”
e defendeu a lei do aborto. O partido deu liberdade de voto nessa matéria (e
bem), portanto, como pode agora assumir este posicionamento? O Passos Coelho
terá mudado de opinião ou não passa de uma estratégia política para reunir o
maior número possível de votos à direita, a pensar numa eventual candidatura à
presidência da república? Se assim for, e basta aguardar para ver, o meu voto
não o terá. Não é possível ser-se um defensor da liberdade individual e o seu
contrário, em simultâneo. Perde a sua credibilidade e a confiança que poderiam
nele depositar. Até ao momento, poder-se-ia detestá-lo devido à sua teimosia em
ir para além da troika, em aconselhar os jovens à emigração, pela sua crueza e
insensibilidade perante o sofrimento de muitos. O funcionalismo público foi
absolutamente fustigado nesses anos. Tudo isso é matéria para que tantos o
desprezem, mas não me lembro de alguém alguma vez o ter apelidado de mentiroso.
Caso se verifique tratar-se de jogada política, Passos cairá na teia da
hipocrisia, daquele que não olha a meios para alcançar os fins e tornar-se-á no
político que desprezo. Se mudou mesmo de opinião e acredita no que apresenta, só me ocorre que não poderá estar
na posse de todas as suas faculdades, para efetuar tal viragem… Venha o diabo e
escolha, nenhuma das hipóteses lhe é favorável.
Eu não li o
livro e nem tenciono fazê-lo, mas o que escreverei de seguida baseia-se, essencialmente,
nas citações que o jornal apresenta, ou seja, em excertos do famigerado “Identidade
e família”. Acreditam os autores que a família tradicional é a “única sociedade
natural, universal e intemporal” e contestam as iniciativas legislativas que
entendem condicionar e lesar essa instituição, como por exemplo, a eutanásia, o
aborto, a ideologia de género e o casamento entre casais homossexuais.
Analisemos, então, o discurso… Defender a família tradicional não significa,
portanto, promover valores de tolerância, de respeito, de equidade entre o
casal que se pressupõe de sexos opostos, mas antes impedir outros de usarem da
sua liberdade individual como quiserem, uma vez que em nada atentam contra a
sociedade! Este raciocínio perverso e faccioso deixa-me perplexa. Ó meus caros
senhores, defender a família tradicional, seria promover uma organização social
em que as mulheres pudessem ser mães sempre que quisessem sem que fossem
prejudicadas na sua carreira. Seria haver uma qualquer compensação para as
empresas que criassem creches para onde as mães pudessem levar os filhos, por
exemplo. Seria admitir que pudesse ser o pai o cuidador da criança e não a mãe
e atribuir-lhe os mesmos benefícios. Seria prolongar a possibilidade de os
cuidadores ficarem mais tempo em casa com os filhos, sem penalização monetária excessiva,
por exemplo. Seria educar e promover a igualdade de género, saber que a
mulher tem tanto direito a uma carreira profissional quanto o homem, se assim
desejar, e que trabalho igual pede salário igual; saber que a violência
doméstica é crime e que não deve ser calado nem admitido e que as vítimas devem
ser verdadeiramente protegidas; saber que a mulher é um indivíduo com pensamento
próprio e capacidade crítica para formar as suas opiniões, apenas não tem a
mesma força física que o homem, mas possui a mesma inteligência. É um ser com
direito à sua liberdade plena, tal como o homem. Se estas bandeiras forem
defendidas, então, estarão a trabalhar em prol da família tradicional
harmoniosa, com capacidade para educar as suas crianças num ambiente seguro e
saudável. Quem trabalha no setor da educação sabe que a maioria das crianças
negligenciadas vivem no seio de famílias tradicionais que as maltratam! São
muitos os casos, mais do que o desejável, o que prova que a família tradicional
não garante nada! A maioria dos abusos vem precisamente dela. Ocultar este
facto ou fingir não o saber é pura desonestidade intelectual e moral. Assiste-se
apenas à vontade de impor uma visão de mundo aos outros. Pode-se defender o que
se pensa, mas não se tem o direito de impor a sua crença ao outro. Desta forma,
não se pode impor a heterossexualidade a quem tem natureza diferente, apenas
porque se acredita que este é o caminho. Poderá ser para a maioria, mas não
para todos e aqueles que não se identificam com esta via estão no seu pleno
direito de viverem a vida em conformidade com a sua natureza, sem serem
discriminados por isso. O mesmo é válido para o aborto e para a eutanásia. O
facto de existir essa possibilidade não obriga ninguém a praticá-los. A isto
chama-se respeito pela liberdade alheia. Não temos o direito de proibir aquilo
que é do foro da liberdade de cada um. Quanto ao argumento de que a vida é um
valor inviolável, resta perguntar aos olhos de quem. Se me responderem que é
aos olhos de Deus, então, esse é um argumento meramente religioso e aqueles que
não o são têm o direito de escolher o que querem. Cada um tem o direito de
achar que ficar preso a uma cama não é vida e o direito de pôr fim a esse
tomento, assim como quem acredita que a vida vale por si mesma tem o direito de
a preservar, independentemente, das circunstâncias. É uma questão de liberdade
individual e de uma tomada de decisão pessoal e consciente, devidamente
acompanhada por uma equipa médica multidisciplinar, naturalmente.
Querer proibir
o que só a cada um diz respeito é ser ditador e impor pelo meio da força
legislativa o que não lhe compete. Quando um dos autores do manifesto usa o
humanismo cristão como forma de combater tudo quanto lhe parece ser uma ameaça
à família, só me apraz dizer que Jesus foi o maior progressista: defendeu as
mulheres (os tais seres que um dos autores nega serem oprimidos, pois nunca se
queixaram! Se não fosse um assunto tão sério causaria gargalhadas, pela estupidez!),
os pobres, os leprosos, os samaritanos, enfim, as minorias ostracizadas! Este é
o verdadeiro Evangelho: o amor, a aceitação e a tolerância. Qualquer outra
coisa é uma subversão de vendilhões do templo e estes foram expulsos, pelo próprio
Jesus, mediante a hipocrisia manifesta nas suas ações.
Nina M.
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