Recordar é viver
Ao ouvir os meus filhos falar dos
avós, vou sorrindo…
Acham o avô cómico quando se gaba da
carta que um dos netos (um dos primos) lhe escreveu pelo seu aniversário, onde
afiançava que o avô era um homem de trabalho e de valor, porque passou o tempo
da Segunda Guerra Mundial e duros sacrifícios. A avó discorda de imediato e
repreende o marido, que tem a mania, mas que não faz nada e é ela quem faz
tudo, incluindo o almoço para ele. Evidentemente, o avô responde com a tarefa
que fazia no momento, porque andavam a arrumar lenha, mas deve-se ter esquecido
que a esposa também lá andava. A verdade é que é a avó que trata das tarefas
domésticas e o netos sabem-no bem e riem-se como perdidos dos chistes entre os
dois! Disso e dos reparos do avô sobre o que a mãe deles deve ou não fazer! Como
se não constituísse uma delícia para os filhos verem os seus pais repreendidos
pelos seus próprios pais, independentemente, da idade que possam ter… Termina a
Matilde com um “o avô é muito engraçado”! Faltou a prima para acrescentar que o
avô, no outro dia, a vira com uma camisola larga e, muito sério a olhar para o
braço, achou que a miúda ocupava a manga toda e há que recomendar uma dieta,
porque ela estava com uns braços muitos gordos! Obviamente, não precisa de
dieta nenhuma, a vegetariana da família, porque é uma menina elegante e bonita!
Riem-se muito destas coisas! E eu lá lhes explico que o avô, aos 86 anos, já
não percebe nada de modas…
Vê-los a conversar alegremente,
faz-me recuar a mim no tempo e lembrar-me do maio quentíssimo em que a minha
avó Matilde me fez ir para a escola, ainda por cima de tarde, com uma camisola
de malhinha fina, mas de gola alta, debaixo de um sol e de um calor abrasador!
“Sonita, não tens calor?!” –
Perguntaram. Foi a avó que me disse que estava frio e que tinha de me agasalhar,
para vestir esta camisola… Ou então, a lembrar-me do ditado que a minha avó me
dizia, quando cismava que a queria ensinar a ler. A minha avó só tinha ido
meia-dúzia de meses à escola. Sabia escrever o seu nome: Matilde e copiar
letras, mas não sabia ler. Lembro-me de me questionar por que razão, sendo a
minha mãe professora primária (era essa a designação), nunca ensinara a mãe a
ler! A determinada altura, queria fazê-lo eu! A minha avó não foi na conversa e
respondia-me sempre que “burro velho não toma andadura, filha…” mas fazia-me as
perguntas para saber responder ao senhor padre e poder fazer a primeira comunhão.
Fi-la com seis anos. Quando me perguntaram se queria nesse ano ou no seguinte,
quis logo nesse. Na verdade, tenho a memória de querer saber o sabor da hóstia.
Eu queria prová-la e só havia uma forma de o poder fazer, de modo que quando me
puseram a questão, decidi que seria breve. Depois, andei uns tempos angustiada,
porque os miúdos que iam “provar a hóstia” insistiam que não se podia mastigar
e eu aflita a pensar que se aquilo me ficasse agarrado à garganta poderia abafar
ou algo do género… Não sei a quem confessei o meu medo… Talvez a minha mãe me
tenha dito que Jesus se desfazia com a saliva, para não me preocupar. Fiquei
mais tranquila. Vieram os ensaios, no Pinheiro Manso, no Porto, por motivos de
agravo entre os meus pais e o padre da
paróquia, na altura. Chique! Comunguei, pela primeira vez, no Porto. Um
ambiente estranho onde não conhecia ninguém. Certamente, todas as crianças me
foram apresentadas, mas eu não me lembro nem agora e também não me lembrava na
altura, porque distraída nos pensamentos, não ouvira nada do que fora dito.
Felizmente, há meninos muito atentos e, no dia, uma menina muito solícita,
vestida de branco, tal como eu, veio chamar-me (até sabia o meu nome! Mistério
para mim! Eu não sabia o dela…). Há que Deus que eu era o seu par… Certo. Se era
para ir, siga! Lá entrámos na igreja, de vela em punho (a que tinha sido já do
meu batismo, em filinha de dois a dois… Só me lembro de fazer playback nos
ensaios, porque se ainda hoje canto mal, na altura não era diferente e sempre
tive sentido do ridículo. De modo que decidi não espantar ninguém, mas para que
não me aborrecessem com a cantoria nem estragar a melodia aos outros, fazia
playback. Uma miúda denunciou-me e disse para a colega, espantada: “Olha, ela
não canta! Está a fazer playback!” Pensei de imediato que ela haveria de ter
muito a ver com isso! Homessa! Já uma pessoa não se pode poupar ao ridículo! E
continuei na minha santa atuação… Tive como prenda o famoso relógio de pulso, o
primeiro, oferta do meu padrinho e um boneco que imitava um bebé, oferta da
madrinha e que levava para todo o lado, porém, quando me cansava, a mãe lá o carregava
e chegou a enganar várias pessoas, porque ao longe parecia uma criança de
verdade. A minha tia deu-se ao trabalho de lhe fazer roupa e carapins e tinha
uma alcofa e tudo. Para o meu pai era o martelão! “Lá vai ela com o martelão”, dizia-me
invariavelmente…
Isto e do avó Chico do Marco (o meu
pai é natural do Marco de Canaveses), com o seu mata-ratos no canto dos lábios
amarelados, já calejados do cigarro que se me afigurava interminável e que se
alimentava, à noite, com duas petingas fritas e uma chávena de chá com bolacha maria.
Ria-se, de olhos pisqueiros, quando dava aos netos o copo de vinho tinto para
molhar os lábios e depois de perguntar: Então? E a resposta: é bom! Não me
lembro que o avô Chico falasse… Acho que não o ouvi falar, só a rir de boca
torcida para não deixar cair o seu Kentucky ou Definitivo, enquanto relembrava
com os filhos histórias passadas ou melhor, as partidas que pregava à
vizinhança, por ser pândego e malandro.
Talvez um dia, seja o Rodrigo ou a
Matilde a eternizarem as memórias dos avós. Por enquanto, divertem-se com eles
e aproveitam-lhes a companhia e os muitos mimos e vontades que lhes fazem!
Nina M.
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