Ser Mulher
Quem me conhece sabe que não atribuo
grande importância a certas datas convencionadas para se celebrar certas
efemérides. O Dia dos Namorados, por exemplo, não passa de um artifício
comercial. Mesmo as datas de significado profundo e simbólico da cultura
ocidental começam a ser banalizadas e transformadas em mera oportunidade de
negócio.
É o que fazem com o Natal. Se para os
crentes se celebra a data de nascimento de Jesus (ainda que ninguém saiba, na
verdade, o dia certo em que Ele terá nascido, mas como já se celebrava, de
forma pagã, o solstício, a Igreja acabaria por adotar esta data para fixar o
nascimento do Deus-Menino), para os não crentes deveria ser, no mínimo, a festa
da família. O Natal é a festividade mais bonita do ano, desde logo, porque se
celebra o nascimento e este é sempre símbolo de esperança e de renovação. Ver
esta simbologia adulterada por gastos exagerados e supérfluos, numa avidez de
consumo inexplicável, mata o espírito natalício. Natal é família, reunião, amor
e paz. Tudo o resto se dispensa.
Acontece o mesmo com o Dia da Mulher.
Não preciso que me felicitem nesse dia por ser mulher, porque não tive qualquer
responsabilidade no assunto, pelo que não tenho o hábito de sair para comemorar
a data. No entanto, o Dia da Mulher tem um significado importante. Lembra as
vítimas de incêndio, na sua maioria mulheres, que lutavam por melhores
condições laborais, numa fábrica. O Dia da Mulher serve para lembrar que
continua a ser necessário combater as desigualdades vigentes numa sociedade,
desde sempre, patriarcal. Todos reconhecem a importância fundamental do papel
da mulher. A maioria das famílias, talvez, assente num matriarcado forte e
esforçado. Eu sou oriunda de uma família de mulheres assinaláveis, mas que a
sociedade sempre remeteu para o anonimato. A minha tia Lavínia e a minha tia
Luzia (bela como uma atriz de cinema, na sua juventude) foram criadas de
servir, no Porto, para criar os filhos que lhes fizeram, tendo sido, depois
abandonadas. Ser mãe solteira era um sacrilégio e a sociedade, em vez de responsabilizar
o macho que abandonava a prole, culpava e abandonava a mulher que não soube ser
firme no propósito com que nasceu: manter a virgindade até ao dia do casamento.
Uma canalhice! Um reconhecimento do direito à sexualidade masculina e a proibição
de uma vivência plena da sexualidade feminina. Um abuso de poder para mero
controlo da mulher. Bem dizia Torga que, na sua viagem pela europa, quando
conheceu uma belga, esta lhe dizia que a mulher portuguesa guardava a honra num
sítio muito estranho! E tantas outras que mesmo casadas eram abandonadas e
maltratadas. Outras, escravas de trabalho, varonis, feitas da dureza vinda das
agruras da vida. Não havia tempo para fragilidades. Perdiam-se filhos como se
tem uma constipação e o papel da mulher, apesar de muitas vezes ser ela a
manter uma casa em pé, não era reconhecido. Ser doméstica e trabalhar na
lavoura ou ser criada de servir era o destino mais certo das pobres e eram analfabetas
ou quase, porque a escola não era necessária. A minha tia enviuvou cedo, aos
quarenta anos, e criou os quatro filhos sozinha. A minha avó Matilde, tecedeira,
serviço que acumulava com a casa e o cultivo do quintal, era também a parteira (não
remunerada, entenda-se) da freguesia. Mulher de poucos sorrisos como convém ou,
então, seriam as dificuldades da vida que não permitiam sorrir mais. Não me lembro
de qualquer ralhete que a minha avó me tivesse dado… Coitada, ela e o avô
António, comigo pela mão e a candeia na outra, pelo caminho afora, em direção à
casa de ambos, para que deixasse os pais dormir. Certamente, depois, tornou-se
hábito, porque tenho memória de mim, a acordar na cama deles, sozinha, chamar e
ninguém responder e eu a achar que tinha sido esquecida. Levantei-me e
vesti-me, mas a saia, nesse dia, apertava atrás e as mãozitas de cinco anos não
atinavam com os colchetes. Meti-me ao caminho, a segurar a saia atrás com uma
mão… Valeram-me as primas, já moçoilas. Não sei se foi a Nelita se a Rosa (que
partiu cedo, de ataque cardíaco) que me viram na triste figura e sozinha e me perguntaram
“ó Sónita! O que estás a fazer aqui sozinha?” Lá lhes expliquei a história… A
avó e o avô não responderam, já deviam ter ido para a casa da minha mãe… E uma
delas foi avisar a avó (que também era delas) para que ela não entrasse em
cuidados com o meu desaparecimento. Apertaram-me a saia, pois claro! Maldita saia!
Nunca gostei dela… Acastanhada de rosas miudinhas…
A minha mãe foi a única dos irmãos a
estudar. Era a mais nova e contou com a ajuda da família dos Ferreira Gomes
(sim, da família do bispo exilado por se opor ao Salazar), o Dr. Alberto, senhorio da minha avó, que na altura
fazia uma quinta em Bustelo, Penafiel. Mais tarde, com um dos irmãos dele, o Dr.
Joaquim, que era da Polícia Judiciária e que a alojou no Porto para ir de
comboio para Aveiro, onde fez o Magistério Primário. A minha mãe foi a primeira a quebrar o grilhão
da ignorância a que as mulheres eram votadas, com muito sacrifício dos pais que
eram pobres, dos irmãos mais velhos que apoiavam e da família Ferreira Gomes
que também o tornou possível. Queria ser professora. A minha madrinha, filha da
minha tia, que é (era) só tia, terá sido a segunda. Formou-se, já a trabalhar,
em educação de infância. De seguida, nas gerações seguintes, já os filhos que quiseram
estudar, puderam-no fazer sem grandes
dificuldades.
Olhar para o passado de Portugal e
para a minha história familiar é avaliar o quanto se mudou e o quanto se
evoluiu. Porém, saber que há ainda muito por cumprir. Lembro-me de o meu médico
me dizer, quando soube que ia frequentar um curso via ensino, já em 1993, que era
uma boa profissão para as mulheres. Não precisaria de fazer noites como as
enfermeiras ou até mesmo médicas, porque depois com filhos era uma chatice…
Nunca mais esqueci isto. Não porque estivesse de acordo. O curso surgiu porque
era o que me permitia a ligação à Literatura. Ainda nesse tempo se achava que
havia cursos mais ou menos apropriados às mulheres… Convinha que não a
impedisse de estar em casa, à mercê dos filhos e do marido.
Assinale-se o Dia da Mulher, mas que
a simpatia não se quede por aí. Reconheça-se o valor das mulheres que o têm,
deem-lhes as mesmas condições que são oferecidas aos homens, não as penalizem
por serem mães nem as diminuam porque são mulheres. Tratem-nas como seres
iguais em direitos e deveres. Quanto a elas, que nada as diminua nem ofenda a
sua dignidade, independentemente do trajeto que escolherem, desde que para elas
faça sentido.
Nina M.
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