Vivendo e aprendendo
Gosto sempre de aprender e de saber mais,
no que às áreas do meu interesse diz respeito e aprendo com outros, com o que
estes também já aprenderam e agora replicam, com a marca do seu olhar,
naturalmente. Pensando nisto, percebe-se que a aprendizagem não é um ato solitário,
mesmo quando feita autonomamente, porque sempre nos baseamos no que outros já
disseram sobre o assunto. Esta consciência é a base da humildade, porque nos
permite reconhecer e validar o outro como essencial para a nossa evolução.
Depois que
me fizeram descobrir o programa radiofónico Quinta Essência, apresentado
por João de Almeida e que pode ser recuperado na RTP play, adquiri o hábito de
o procurar sempre que passo a ferro. A tarefa torna-se menos aborrecida, porque
enquanto a executo em modo piloto automático, concentro-me no que estou a
ouvir. Os episódios sobre imensas personalidades estão à disposição de quem
quiser aprender. Muitos deles são baseados em livros. Já acompanhei, por
exemplo, a biografia de Pessoa, tendo por base o livro de Pedro George, Super
Camões, ao longo de dez programas; de Salazar, que foi tratado por Sua
Eternidade pelo Papa, em resposta ao cumprimento de Salazar: sua Santidade, ao
longo de três episódios. Neste momento, acompanho a vida do Santo Condestável,
Nun’Álvares Pereira, com muita informação sobre a dinastia de Avis, a Ínclita
Geração, naturalmente. Sei que de seguida irei em busca de Fernão Magalhães,
que também lá está entre os contemplados. Os autores dos livros são convidados
e o João de Almeida guia a conversa com muita mestria com o seu homónimo,
professor universitário e historiador, João Gouveia Monteiro. A improvável vida
de quem foi um guerreiro exímio e a quem D. João I ficou a dever o trono e se
dedicou, mais tarde, à vida monástica, despojando-se de todos os seus bens, no
convento que ele próprio mandou construir, em Lisboa, o convento do Carmo. Nuno
Álvares Pereira era o homem mais rico do reino, depois do rei. Foram-lhe sendo
dadas terras como recompensa das suas vitórias. O Condestável era uma figura
notável, senhor de si, enfrentando o rei e contrariando-o, quando assim
entendesse. Certo é que D. João I, após a consolidação do trono e já depois de
Aljubarrota e Valverde, começou a recuperar os territórios que havia doado aos
nobres que tinham lutado a seu lado. Tal atitude gerou desconforto e revolta e
alguns nobres passaram para o lado de Castela. O próprio Nun’ Álvares Pereira
ponderou fazê-lo. Porém, o rei chegou a um consenso. Deixou-lhe as terras e
apenas lhe retirou a possibilidade de ter vassalos. Só o rei os tinha e os que prestavam
serviço ao Condestável passaram a estar sob a alçada do Mestre de Avis, então
rei de Portugal. As relações entre ambos esmoreceram, mas o Santo, ainda iria
pelejar ao lado do rei na tomada de Ceuta, em 1415, apesar de contar já com 55
anos. Vale a pena ouvir.
O que fui
ouvindo, obriga-me a perspetivar o que vamos lecionando, a propósito da crónica
de D. João I, objeto de estudo no décimo ano. Fala-se da consciência coletiva e
da afirmação da identidade nacional, da união popular em prol da independência
e ocorre-me de memória a frase: “com talente de o vingar numa só vontade e num
só coração”, quando o povo acorre aos paços da rainha Leonor Teles por julgar
que mantavam o Mestre. Na verdade, o Mestre matava o Conde Andeiro. Ao que
parece, a estocada final não foi perpetrada por ele, mas por um dos seus nobres.
O povo teve um papel importante no cerco de Lisboa, indiscutivelmente, e cabe
ao povo a maior genuinidade: lutou e aguentou a fome. A refrega só correu bem
aos portugueses, porque a peste foi providencial e obrigou os castelhanos a
desmobilizar. A nobreza portuguesa estava dividida e era interesseira. Álvaro
Pais terá aconselhado o Mestre, nos dois anos da crise, a prometer e a dar o
que não possuía e mais tarde recuperar. Rei que é rei dá e tira quando lhe
apraz! Ou seja, os nobres escolhiam o lado que mais benefícios lhes
garantissem, podendo num dado momento estar ao lado de D. João I, como no
momento seguinte fazerem-se aliados de Castela e lá se exilarem. Não havia
neles sentimento de pertença nem de consciência coletiva. Lucraram e enriqueceram
com as campanhas. A arraia miúda, apesar do papel preponderante durante o
cerco, ficou como estava, pobre como Jó.
Gosto de
descobrir estes tesouros para falar aos alunos com outra propriedade. É
importante que saibam que apesar da defesa cerrada da cidade e da coragem
inegável do povo, os portugueses contaram com a sorte, caso contrário, teria
sido uma carnificina, pois morreriam à míngua de mantimentos. Fernando Pessoa
não usou o facto, mas poderia, para mais uma vez provar a sua tese de que
Portugal estaria predestinado à construção do Quinto Império.
Depois de ouvir um dos episódios, compreendi
melhor a referência à espada do Condestável, no poema em sua memória, que
podemos ler em Mensagem, de Fernando Pessoa: “É Excalibur, a ungida, /Que
o Rei Artur te deu”. Para além do significado óbvio da Excalibur, sobejamente
conhecido, a pureza de alma de quem a erguesse, referindo-se simbolicamente à
santidade de Nun’Álvares Pereira, fiquei a saber que o Condestável apreciava os
romances de Cavalaria. As histórias do Rei Artur e os Cavaleiros da Távola
Redonda não lhe seriam desconhecidas. Teria Fernando Pessoa esta informação?
Eis o que me interrogo. E partilharei estas questões com os alunos, certamente,
que quando me ouvem falar entusiasticamente destes pequenos pormenores, noto um
certo esgar e um arregalar de olhos de quem pensa que a professora é um
bocadinho maluca, porque não lhe basta o português e ainda gosta de escavar outros
caminhos. É-me inevitável. Normalmente, ficam entristecidos e admirados quando
sabem que o Mestre é filho de D. Pedro I, mas não de Inês de Castro. Lá lhes
digo que dois anos depois da morte de Inês, D. Pedro foi pai uma vez mais,
agora de uma ligação com Dona Teresa, uma das aias de Inês de Castro, relação
da qual nasceu D. João I. Os Castro foram também das famílias expropriadas pelo
Rei D. João I, por se terem aliado a Castela e os seus bens reverterem a favor
de Nun’Álvares Pereira.
Não sei o que lhes fica, mas ensinar
também é partilhar o que vamos aprendendo.
Nina M.
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