Evitar a falência da democracia é imperioso
Tenho vindo a observar com crescente
preocupação a adesão de jovens a discursos autoritários e populistas. O
crescente gosto por discursos que hipervalorizam o individualismo e a
meritocracia que exclui o contexto social e familiar do indivíduo, centrando-a
apenas no esforço da pessoa, fazendo-a olhar o outro que não obtém os mesmos
resultados com desdém, é preocupante.
Ouço-os e
reconheço os síndromas autoritários: a agressão verbal contra aqueles que são
diferentes do que eles consideram a norma, a aceitação acrítica dos valores
convencionais, a admiração por autoridades morais idealizadas, a incapacidade
para fazer introspeção. Desconstruir-lhes os preconceitos e fazê-los entender
que o outro tem o pleno direito de ser diferente, desde que essa diferença não
ofereça qualquer perigo para a sociedade, é difícil. Normalmente, quando os ouço
a apontar o dedo às escolhas dos outros, seja no que diz respeito à orientação sexual,
à identificação de género, à indumentária, à crença religiosa ou não crença, começo
por lhes perguntar no que é que essa diferença os prejudica a eles e à
sociedade. Tento sempre explicar-lhes que tentar impor as suas crenças a outrem
é uma falta de respeito e “uma tentativa de colonização do outro”, como diria
Saramago. Fazer com que entendam que a democracia foi a melhor conquista da
sociedade portuguesa e que houve quem tivesse de dar a vida por ela nem sempre é
fácil e é muito desconcertante. Sabemos que estudam História e as ditaduras de Salazar,
de Franco, de Mussolini, de Hitler e de Estaline. Em português, são estudadas
obras em que a crítica social às desigualdades, às injustiças e a imposição
acrítica das convenções são uma constante. Em Filosofia, estudam Sandel, Rawls
e Nozick, o comunitarista para quem o indivíduo quase não existe fora da
comunidade e com quem tem obrigações e os libertaristas, ainda que os dois
últimos, apesar de liberais, sejam diferentes. Rawls preocupa-se com a justiça
social, com a equidade, a liberdade e a diferença e com o papel que o Estado
deve ter para que isto seja uma realidade; já Nozick é o ultraliberal do Estado
mínimo, cuja função deve ser a preocupação com a segurança e a justiça e ter
apenas sob a sua alçada a polícia, as forças armadas e os tribunais. Invoco as
matérias escolares apenas para mostrar que a escola fornece as ferramentas e os
conhecimentos necessários para que pudessem processar a informação de outra
forma.
A escola está a falhar, dirão muitos.
No entanto, discordo. À escola, imputa-se mais do que se deveria. A preocupação
com a democracia deveria ser transversal à sociedade e um valor a ser
trabalhado, em primeira instância, pela família. Muito facilmente se aponta o
dedo às estruturas políticas, atribuindo-lhes a responsabilidade do que nos
parece uma falência democrática. É inegável que o sistema político também tem a
responsabilidade de zelar pelos valores democráticos, mas essa preocupação deveria
ser, antes de mais, a de todos os cidadãos. A democracia, na verdade, depende
mais do cidadão comum do que de qualquer outra estrutura. Depende da capacidade
que ele revela para absorver os valores democráticos e tolerar aqueles que se
movem em contextos culturais, ideológicos, sociais, religiosos e étnicos
diferentes. Para isso, é preciso prestar muita atenção aos discursos e aos
apelos afeitos. A escolha de um ou dois grupos sociais, a quem se imputa a
responsabilidade de todos os males sociais e a quem se dirigem todos os ataques,
por exemplo, os imigrantes, os ciganos, entre outros, é prática comum dos que chegados
ao poder instauram práticas autoritárias, como por exemplo, mandar prender
jornalistas, intelectuais, manifestantes, opositores políticos e todos os que
ousem falar ou ter um pensamento contrário ao seu.
A única forma de preservar a
democracia é estar atento aos sinais de intolerância e evitar que essa gente se
instale no poder. Para isso, é necessária uma cidadania ativa que não compete
apenas à escola, e a formação de cidadãos atentos, cultos e tolerantes. Há que
contar também com a ajuda biológica, porque segundo um estudo feito aos cérebros
de um grupo de universitários britânicos conservadores e liberais concluiu-se
que a estrutura física de uns e de outros era distinta. Os liberais possuíam
mais massa cinzenta na região cerebral conhecida por resolver conflitos
cognitivos. Já os conservadores mostravam mais massa cinzenta na amígdala, região
responsável pelo processamento das emoções, incluindo o medo e a recompensa.
Talvez por isso, a estratégia de incutir o medo resulte muito bem (o medo dos
que vêm retirar os empregos e usufruir de subsídios, o medo de que a nossa
cultura e os nossos valores ocidentais se percam), apontando-se o dedo a um ou
vários “inimigos” a abater, fomentando-se o ódio e a polarização extremada. Só
os populistas ganham com isso. Quem perde é a democracia e sem ela, aí, sim, perdemos
o valor ocidental da liberdade que tanto custou a alcançar.
A sociedade não pode divorciar-se da
política nem deixar de exercer o seu direito ao voto. Esta é a melhor forma de
combater os autoritarismos e as autocracias e todo aquele que deixa de o fazer,
contribui ativamente para uma democracia moribunda.
Democracia, sempre!
Nina M.
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