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segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Tento com olhar aguçado

Tento com olhar aguçado
Olhar e ver a vida
Compreendê-la e vislumbrar-lhe
Os sentidos
Viro-a do avesso e examino
Olho as esquinas quebradas
As marcas nas paredes
Os grelados e as humidades
Marcas ligeiras
Nunca conheci fome nem guerra
Nem orfandade
A morte que me chegou cedo
Foi a da velhice
Um coração que no ocaso do dia
E da vida esgotou os batimentos
Assim partiu o avô António
Como quem deu o último suspiro
No final de um dia de trabalho
No fim da poda, depois de passar
O dia a amarrar vides, de acordo
Com uma ordem que nunca fui capaz
De entender. As fiteiras desfiadas
A servirem-lhe de cordas
Enfiadas nas presilhas
Enquanto conversava alegremente
Podara-se, nesse instante, a vida dele.
[...]
O choro, o corpo depositado numa caixa
Via-o inerte, ao de leve, à entrada da porta
Sem me atrever a entrar
Os adultos a enxotar as crianças
Que não percebem estas ausências
A atmosfera triste, pesada e
Sem preparo
Fui dormir à vizinha, com as filhas
As cachopas dividiam-se na mesma cama.
Três em cima e três em baixo
Uma confusão de pés.
Era um final de Dezembro frio
A passagem de ano que o avô não fez.
Morrer era assim um desaparecimento
Longínquo.
Não sei mais. O avô Tónio morreu e era tudo o que os cinco anos se permitiam saber.
Não vi mais o avô chegar de balde na mão
Para pensar as galinhas
Nem lhe pus mais a minha perna esquerda sobre a sua direita
A dizer-lhe que essa perna era dele
E a outra, a direita, da avó
Enquanto dormia de permeio entre ambos
Na casa velha de pedra, com pedra de lar na cozinha. O ferrolho na porta. Pequeníssima e de um quarto só.
E o Lino das toiras a chamar-me,
à porta de casa e à espera...
"Já vens minha papagaia!"
Todos os dias... Conhecia-me a voz...
Vejo o rosto do avô António, ainda nítido. Só o conheci velho e calvo já.
O Lino das toiras é difuso...
Dava uma personagem de conto.
Queimado do álcool  e do cigarro
"Já lá vem a minha papagaia..."
Todas as noites com a candeia a iluminar
O caminho.
Gosto de pensar que o avô Tónio entrou no céu de candeia na mão como quem regressa a casa sem se perder no caminho




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