Essência de viajante
Tenho essência de viajante. Não de
turista. Procuro o primeiro olhar sobre algo e, com sorte, conto com a comoção
do espanto. É-me, literalmente, tão essencial quanto o ar que respiro, porque
representa, precisamente, um novo sorvo num mundo esquizofrénico, feito de
rotinas obrigatórias e que nos roubam tempo de qualidade.
É também
nesse sorvo de novidade, que permite a comoção, que a alma é, se encanta, se
renova e fortifica para não ceder ao cinismo perante um mundo doentio. Esse encontro
com a beleza, seja ela natural seja resultado da criação humana, renova. Há
quem não compreenda bem esta necessidade premente de ir, de ver e de ouvir.
Talvez considerem capricho esta inquietude desconcertante, que na realização de
uma etapa começa a pensar na outra. Ainda assim, faço-o menos do que gostaria.
Nunca desejei joias ou outros bens
valiosos, mas desejo uma volta ao mundo. Fá-lo-ia por etapas, porque nos
intervalos precisaria do regresso a casa, ao meu território.
Nunca te
sacias, atiram. Se pudesses, ninguém te apanhava. Nem tanto, mas riem-se da
minha predisposição para andar. Literalmente. Gosto de percorrer a pé os
lugares por onde passo. Chegar ao final do dia com os pés maçados das
caminhadas. Descalçar as sapatilhas e pô-las a arejar, para as preparar para o
dia seguinte. Repousar o corpo debaixo da água quente para, de seguida,
deixá-lo ao abandono, prostrado de cansaço na cama que lhe há de dar o descanso
para que volte a funcionar. Gosto de alugar casa em vez de hotéis. É como se
durante aqueles dias pertencesse àquele lugar. Entro em museus, mas também em
supermercados. Ando de metro e procuro as vielas, os lugares mais pitorescos e
antigos que sussurram histórias.
Tanto gosto da cidade e da sua
componente cultural quanto da natureza. Gosto é de ir! A comoção chega, seja a
olhar a Pietà, de Michelangelo, seja, a Manta de Retalhos, na Serra do Cume,
depois de subir a pé 545 metros, ao longo de oito quilómetros. O prémio é a
vista de inúmeros tons de verde retalhados que culminam com a vista sobre um
atlântico azul que se confunde com o céu, em dia limpo. No fim das caminhadas,
a terapia do mergulho em água salgada, no oceano calmo e tépido é o melhor
prémio.
Gosto de ir. Nem que seja ao bosque
encantado da minha pequena cidade, onde encontro sempre novidade, porque a
natureza é renovação.
Creio que nasci com um olho virado
para dentro e outro para um terraço que dá acesso ao mundo que contém em si a
manifestação divina, nas suas paisagens e a beleza que o génio humano também é
capaz de criar, talvez a maior prova da beleza da alma humana.
Gosto de ir. Em pequena, fui embalada
ao som das batidas do tear manual da minha avó Matilde, que era tecedeira. Os
mais novos nem imaginam que pudesse existir tal profissão… Talvez o sibilar da
lançadeira que levava os fios de uma ponta a outra me parecesse o vento, porque
a lançadeira, para mim, já mais crescida, era uma espécie de barquinho que
levava o fio a passear, movendo-se com leveza e velozmente no mar de um tear.
No verão, nos anos em que os meus
pais alugaram casa em Mindelo, durante uma quinzena, os meus irmãos desejavam
vir a casa. Sentiam saudade. Para mim, durante quinze dias, a minha casa era
Mindelo.
Eu gosto de ir, porque me é imperioso
e não compreender esta necessidade é passar um bocadinho ao lado da minha
essência. Estar em palcos de outras
civilizações, ver as obras de arte que povoam o nosso imaginário, apreciar a
beleza que outros antes de nós nos deixaram é um privilégio indescritível.
Quando não vou com o corpo, voo com a
alma. Vou com os livros e voo com a imaginação.
Sempre gostei de ir e não sei ser
diferente.
Nina M.
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