Crónica Literária
Terminei,
há sensivelmente uma semana o Guerra e
Paz, de Tolstói. Uma empreitada que me acompanhou ao longo de cerca de três
meses. Um romance histórico e filosófico de mais de 1300 páginas, em que
descreve as guerras promovidas por Napoleão Bonaparte contra as principais
monarquias europeias, entre 1805 e 1820. Um monumento da literatura universal!
Ler
o Guerra e Paz é, em simultâneo,
maravilhoso e aterrador! O espanto advém da força narrativa, das reflexões
filosóficas sobre as causas e as consequências dos conflitos, sobre o sentido
da vida e a sua procura, sobre a preocupação em criar uma sociedade mais justa
e mais fraterna; o terror, do facto de que, depois do Guerra e Paz, não haverá muito mais que se possa escrever. Digo
muito mais porque há um Dostoiévsky, que explora as personalidades desviantes,
detentoras de uma atração fatal pelo abismo. Ninguém o faz melhor do que ele.
Neste
grandioso romance, o escritor traça um retrato realista da Rússia, onde a
aristocracia hipócrita contrasta com a miséria dos soldados e servos. Estes são
meras peças de um tabuleiro de xadrez, de que se dispõe e organiza para se
alcançar uma vitória que satisfaz mais o orgulho e a vaidade dos que mandam e
esperam promoções vãs do que a responsabilidade pelo zelo das vidas que se tem
nas mãos. Enquanto os soldados se galvanizam e dão a vida pelo que consideram
justo, em defesa da pátria-mãe e do profundamente amado imperador Alexandre, os
estrategas generais ficam confortavelmente instalados, em casas que ocupam,
continuando a frequentar os serões e os bailes, afastados do terreno porque,
obviamente, o general deve ser protegido para que a guerra não se perca.
Kutuzov é o eleito, não por vontade genuína de Alexandre, mas porque tinha
mostrado competência. O mal-amado que soube ter a paciência de ver Napoleão
retirar com o seu exército esfomeado e em frangalhos. Quando todos consideravam oportuno atacar os
franceses, ele interrogava-se sobre o motivo de causar mais mortes a ambas as
partes, se bastava fazer sentir aos franceses que eram perseguidos, com a
devida distância, para que estes acelerassem a fuga. Kutuzov não era compreendido,
porque impunha a si mesmo o dever de pensar sobre a moralidade de uma guerra.
A
aristocracia fútil, hipócrita e falida organiza faustos serões, onde se falava
francês, o que constitui uma denúncia da perda dos valores russos, mesmo em
tempo de guerra, havendo os que se endividavam para manter as aparências e um
nível de vida a que se tinham habituado, mas já não podiam suportar. Assim
viveu o conde Rostov. Destacam-se André Bolkonski e Pierre Bezukhov a quem a
futilidade e a hipocrisia desconcertam e aborrecem. Personagens de uma
densidade psicológica avassaladora, através das quais tólstoi expõe angústias e
inquietações. A questão do sentido da vida e do significado da morte; a
discordância em relação à pena de morte evidenciada no horror de Pierre quando
observa a angústia dos soldados franceses quando eram obrigados a executar os
prisioneiros de guerra russos.
As
personagens femininas desfiam pelos salões: das mais frívolas cortesãs, às mais
piedosas ou simplesmente às senhoras que conheciam bem o seu papel e dominavam
a arte de entreter os convidados na mais perfeita harmonia. O destaque vai para
a princesa Maria, mulher piíssima e de pensamento puro, de fé inabalável e também
para a estouvada, alegre e inconsequente Natacha, que sofrerá uma revolução de alma,
transformando-se numa esposa e mãe amorosa e devota à família.
Há
ainda uma preocupação com os dados históricos. Tolstói leu quer documentos russos
quer de outros países da Europa sobre as campanhas de Napoleão, numa tentativa
de demonstrar os erros dos dados históricos, apresentando a sua versão, tão
plausível e credível quanto outras. Assim, a parte final do romance é um ensaio
que se dedica a debater o significado da História enquanto disciplina e como
esta influencia a nossa interpretação da jornada do Homem.
Como
nem as melhores obras estão imunes à deturpação, também Guerra e Paz foi usado como propaganda por Estaline, durante a
segunda guerra Mundial, promovendo a defesa patriótica da terra-mãe.
Ler
Guerra e Paz é compreender melhor o
espírito russo, é saber que os ucranianos terão aprendido com Kutuzov que os
maiores aliados para vencer uma guerra são o tempo e a paciência. Tal como os
franceses, também os russos já tiveram de retirar em debandada um exército
esfrangalhado e esfomeado e tal como Napoleão sabia da capacidade de
resistência dos russos, também Putin a reconhece nos ucranianos.
Tempo e paciência, dizia Kutuzov, aguardemos…
Nina M.
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