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sábado, 7 de janeiro de 2023

Crónica de Maus Costumes 307

 Crónica Literária

Terminei, há sensivelmente uma semana o Guerra e Paz, de Tolstói. Uma empreitada que me acompanhou ao longo de cerca de três meses. Um romance histórico e filosófico de mais de 1300 páginas, em que descreve as guerras promovidas por Napoleão Bonaparte contra as principais monarquias europeias, entre 1805 e 1820. Um monumento da literatura universal!

Ler o Guerra e Paz é, em simultâneo, maravilhoso e aterrador! O espanto advém da força narrativa, das reflexões filosóficas sobre as causas e as consequências dos conflitos, sobre o sentido da vida e a sua procura, sobre a preocupação em criar uma sociedade mais justa e mais fraterna; o terror, do facto de que, depois do Guerra e Paz, não haverá muito mais que se possa escrever. Digo muito mais porque há um Dostoiévsky, que explora as personalidades desviantes, detentoras de uma atração fatal pelo abismo. Ninguém o faz melhor do que ele.

Neste grandioso romance, o escritor traça um retrato realista da Rússia, onde a aristocracia hipócrita contrasta com a miséria dos soldados e servos. Estes são meras peças de um tabuleiro de xadrez, de que se dispõe e organiza para se alcançar uma vitória que satisfaz mais o orgulho e a vaidade dos que mandam e esperam promoções vãs do que a responsabilidade pelo zelo das vidas que se tem nas mãos. Enquanto os soldados se galvanizam e dão a vida pelo que consideram justo, em defesa da pátria-mãe e do profundamente amado imperador Alexandre, os estrategas generais ficam confortavelmente instalados, em casas que ocupam, continuando a frequentar os serões e os bailes, afastados do terreno porque, obviamente, o general deve ser protegido para que a guerra não se perca. Kutuzov é o eleito, não por vontade genuína de Alexandre, mas porque tinha mostrado competência. O mal-amado que soube ter a paciência de ver Napoleão retirar com o seu exército esfomeado e em frangalhos.  Quando todos consideravam oportuno atacar os franceses, ele interrogava-se sobre o motivo de causar mais mortes a ambas as partes, se bastava fazer sentir aos franceses que eram perseguidos, com a devida distância, para que estes acelerassem a fuga. Kutuzov não era compreendido, porque impunha a si mesmo o dever de pensar sobre a moralidade de uma guerra.

A aristocracia fútil, hipócrita e falida organiza faustos serões, onde se falava francês, o que constitui uma denúncia da perda dos valores russos, mesmo em tempo de guerra, havendo os que se endividavam para manter as aparências e um nível de vida a que se tinham habituado, mas já não podiam suportar. Assim viveu o conde Rostov. Destacam-se André Bolkonski e Pierre Bezukhov a quem a futilidade e a hipocrisia desconcertam e aborrecem. Personagens de uma densidade psicológica avassaladora, através das quais tólstoi expõe angústias e inquietações. A questão do sentido da vida e do significado da morte; a discordância em relação à pena de morte evidenciada no horror de Pierre quando observa a angústia dos soldados franceses quando eram obrigados a executar os prisioneiros de guerra russos.

As personagens femininas desfiam pelos salões: das mais frívolas cortesãs, às mais piedosas ou simplesmente às senhoras que conheciam bem o seu papel e dominavam a arte de entreter os convidados na mais perfeita harmonia. O destaque vai para a princesa Maria, mulher piíssima e de pensamento puro, de fé inabalável e também para a estouvada, alegre e inconsequente Natacha, que sofrerá uma revolução de alma, transformando-se numa esposa e mãe amorosa e devota à família.

Há ainda uma preocupação com os dados históricos. Tolstói leu quer documentos russos quer de outros países da Europa sobre as campanhas de Napoleão, numa tentativa de demonstrar os erros dos dados históricos, apresentando a sua versão, tão plausível e credível quanto outras. Assim, a parte final do romance é um ensaio que se dedica a debater o significado da História enquanto disciplina e como esta influencia a nossa interpretação da jornada do Homem.

Como nem as melhores obras estão imunes à deturpação, também Guerra e Paz foi usado como propaganda por Estaline, durante a segunda guerra Mundial, promovendo a defesa patriótica da terra-mãe.

Ler Guerra e Paz é compreender melhor o espírito russo, é saber que os ucranianos terão aprendido com Kutuzov que os maiores aliados para vencer uma guerra são o tempo e a paciência. Tal como os franceses, também os russos já tiveram de retirar em debandada um exército esfrangalhado e esfomeado e tal como Napoleão sabia da capacidade de resistência dos russos, também Putin a reconhece nos ucranianos.

 Tempo e paciência, dizia Kutuzov, aguardemos…

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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