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sábado, 15 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 295

 

A imbecilidade do século

            Hoje, num documentário sobre a Ucrânia filmado em Odessa, dizia um dos homens que dava o seu testemunho que, depois do que os russos faziam ao seu povo, ele considerava-os inimigos.

O sujeito era bilingue. Falava russo e tinha familiares na Rússia. Afirmava que tinha ligado para os seus primos e tios a alertá-los de que se entrassem em solo ucraniano, não duvidaria um segundo e matá-los-ia para defender a Ucrânia, se fosse necessário. A mãe, que se encontrava noutra cidade, era russa. Mantinha o contacto com as irmãs, que lhe garantiam lamentar a situação, afirmando que a sua dor era também a dor delas. O homem colocou-a em segurança para poder combater tranquilamente.

Um escritor ucraniano bastante publicado e que se exprime em russo dedica-se ao que sabe fazer melhor: escrever. Tem como missão fazer chegar a informação das ações desenvolvidas pela Rússia no seu território. Todas as investidas do agressor aparecem subvertidas pela comunicação social russa. Segundo esta, transformada em aparelho da propaganda do Estado, os russos não atacam alvos civis. A mensagem de que a Rússia liberta os irmãos do nazismo é veiculada diariamente e quando o cidadão russo comum é questionado sobre a ofensiva, apoia convictamente, esclarecendo que esses ucranianos têm de ser eliminados. A jornalista questiona se teriam de os matar a todos, já que seria muita gente. Responde que não. Poderiam ser deportados e enviados para campos de trabalho, mas que naquele país, só deveriam poder ficar os “ucranianos normais”. Entendi que se referiria àqueles que aceitam a Rússia como país invasor e superior. Segundo o escritor, como para Putin a Rússia se estende até onde a língua russa é falada, não sobrará alternativa senão a de deixarem de se exprimir completamente em Russo, reforçando o que designa de identidade ucraniana. Sente-se-lhe o desencanto, tal como a muitos outros, pois sempre se considerou ucraniano, mas também russo. No entanto, após a ofensiva invasora de 24 de janeiro, essa ligação afetiva à pátria vizinha terminou. Não é o único. Ouvi uma criança de nove anos, que já tinha fugido do Donbass e que também era bilingue, mas que desde esse dia se recusa a pronunciar uma palavra em russo. São apenas dois testemunhos que refletem o sentimento de muitos outros, alguns deles, antigos admiradores da pátria vizinha, mas que agora se desiludem. Outro homem afirmava sentir orgulho de ter feito parte do exército russo em tempos, mas não agora, porque um país que se diz irmão não ataca a família numa luta fratricida.

As palavras de Putin, que marcam os seus discursos em que fala da união dos povos eslavos (Rússia, Bielorússia e Ucrânia), ainda que subliminarmente, denunciam o sonho imperialista e a vontade de anexar esses territórios, como já fez com a Crimeia. Os ucranianos, por sua vez, querem um percurso individual, a sua autodeterminação e a sua soberania. Querem aproximar-se dos europeus, reconhecem-se nos valores ocidentais, afastando-se da “terra mãe”. E isto Putin não lhes perdoa. Contudo, a Rússia vai ficando cada vez mais isolada e a guerra contra a Ucrânia será a destruição do País, tal como afirma um casal de jornalistas russos que viram o seu canal de televisão fechado e que para manterem a sua independência jornalística e a sua vida, tiveram de abandonar a capital e refugiar-se. Vivem num apartamento que pertencia aos avós de um deles, na Geórgia. De lá, denunciam os crimes de guerra perpetrados pelo exército russo e os desmandos do Putin, na esperança de que a sua voz se faça ouvir.

Pelo meio, uma Igreja Ortodoxa que funciona por quintais e onde cada um escolhe o patriarca que ouve. Como não há coincidências, o patriarca de Moscovo é um antigo agente KGB. Instiga ao ódio, afirmando que a Ucrânia se afasta dos verdadeiros valores, acusa-a de se querer ligar ao mundo ocidental, de pretender aderir à ideologia das amplas liberdades, da exploração e da decadência. Um discurso cheio de ranço e de falácias, legitimando as ações de Putin, como se de uma guerra entre o bem e o mal se tratasse. Também ele acredita e deseja a unificação territorial. O imperialismo do tempo do Czar nunca lhes saiu das veias.

Pelo meio, fica um país destruído, arrasado, que precisará de anos para se reerguer e que deverá enfrentar dificuldades económicas agrestes. Se a Ucrânia já era um país com uma economia débil, após esta insanidade, a recuperação adivinha-se difícil. Por seu turno, a Rússia sairá derrotada. O apoio massivo dos países europeus e dos Estados-Unidos da América à Ucrânia deixam-na praticamente só, como deve ser, com um exército e meios obsoletos. Houvesse maior discernimento e os russos já teriam compreendido que não há forma de sair disto com lisura. O mal já foi perpetrado, houvesse agora honradez para o reconhecer.

Anseio pela capitulação russa. Aguardo o suicídio da besta, se entretanto a conjuntura política e económica não fizer com que os seus atuais parceiros lhe puxem o tapete.

O futuro é uma incógnita. Depois da guerra, o restabelecimento da confiança entre a Rússia e os países europeus levará tempo e tudo dependerá do líder daquele país, que terá de ser outro. É minha convicção de que esta tomada de posição por parte da europa já deveria ter acontecido em 2014, após a anexação da Crimeia. Espero que a União Europeia compreenda que é preciso determinar linhas vermelhas e fixar o intolerável para que a tolerância e o respeito pelos outros seja possível. Já agora, valerá a pena acompanhar atentamente os movimentos fascistas na Europa. A situação italiana deve preocupar, assim como a Hungria. Urge que os políticos europeus saibam estimar e preservar a democracia, o que só é possível com boa governação em prol das populações. A corrupção e o capitalismo selvagem, onde não se vislumbra a honradez, mas a defesa de um feudo, são o passaporte para o populismo fascista que tanto custou a extirpar.

 

Nina M.

 

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