A imbecilidade do século
Hoje, num documentário sobre a
Ucrânia filmado em Odessa, dizia um dos homens que dava o seu testemunho que,
depois do que os russos faziam ao seu povo, ele considerava-os inimigos.
O
sujeito era bilingue. Falava russo e tinha familiares na Rússia. Afirmava que
tinha ligado para os seus primos e tios a alertá-los de que se entrassem em
solo ucraniano, não duvidaria um segundo e matá-los-ia para defender a Ucrânia,
se fosse necessário. A mãe, que se encontrava noutra cidade, era russa.
Mantinha o contacto com as irmãs, que lhe garantiam lamentar a situação,
afirmando que a sua dor era também a dor delas. O homem colocou-a em segurança para poder combater tranquilamente.
Um
escritor ucraniano bastante publicado e que se exprime em russo dedica-se ao
que sabe fazer melhor: escrever. Tem como missão fazer chegar a informação das
ações desenvolvidas pela Rússia no seu território. Todas as investidas do
agressor aparecem subvertidas pela comunicação social russa. Segundo esta,
transformada em aparelho da propaganda do Estado, os russos não atacam alvos
civis. A mensagem de que a Rússia liberta os irmãos do nazismo é veiculada
diariamente e quando o cidadão russo comum é questionado sobre a ofensiva,
apoia convictamente, esclarecendo que esses ucranianos têm de ser eliminados. A
jornalista questiona se teriam de os matar a todos, já que seria muita gente.
Responde que não. Poderiam ser deportados e enviados para campos de trabalho,
mas que naquele país, só deveriam poder ficar os “ucranianos normais”. Entendi
que se referiria àqueles que aceitam a Rússia como país invasor e superior.
Segundo o escritor, como para Putin a Rússia se estende até onde a língua russa
é falada, não sobrará alternativa senão a de deixarem de se exprimir completamente
em Russo, reforçando o que designa de identidade ucraniana. Sente-se-lhe o
desencanto, tal como a muitos outros, pois sempre se considerou ucraniano, mas
também russo. No entanto, após a ofensiva invasora de 24 de janeiro, essa
ligação afetiva à pátria vizinha terminou. Não é o único. Ouvi uma criança de
nove anos, que já tinha fugido do Donbass e que também era bilingue, mas que
desde esse dia se recusa a pronunciar uma palavra em russo. São apenas dois
testemunhos que refletem o sentimento de muitos outros, alguns deles, antigos
admiradores da pátria vizinha, mas que agora se desiludem. Outro homem afirmava
sentir orgulho de ter feito parte do exército russo em tempos, mas não agora,
porque um país que se diz irmão não ataca a família numa luta fratricida.
As
palavras de Putin, que marcam os seus discursos em que fala da união dos povos
eslavos (Rússia, Bielorússia e Ucrânia), ainda que subliminarmente, denunciam o
sonho imperialista e a vontade de anexar esses territórios, como já fez com a
Crimeia. Os ucranianos, por sua vez, querem um percurso individual, a sua autodeterminação
e a sua soberania. Querem aproximar-se dos europeus, reconhecem-se nos valores
ocidentais, afastando-se da “terra mãe”. E isto Putin não lhes perdoa. Contudo,
a Rússia vai ficando cada vez mais isolada e a guerra contra a Ucrânia será a
destruição do País, tal como afirma um casal de jornalistas russos que viram o
seu canal de televisão fechado e que para manterem a sua independência
jornalística e a sua vida, tiveram de abandonar a capital e refugiar-se. Vivem
num apartamento que pertencia aos avós de um deles, na Geórgia. De lá,
denunciam os crimes de guerra perpetrados pelo exército russo e os desmandos do
Putin, na esperança de que a sua voz se faça ouvir.
Pelo
meio, uma Igreja Ortodoxa que funciona por quintais e onde cada um escolhe o
patriarca que ouve. Como não há coincidências, o patriarca de Moscovo é um
antigo agente KGB. Instiga ao ódio, afirmando que a Ucrânia se afasta dos
verdadeiros valores, acusa-a de se querer ligar ao mundo ocidental, de
pretender aderir à ideologia das amplas liberdades, da exploração e da
decadência. Um discurso cheio de ranço e de falácias, legitimando as ações de
Putin, como se de uma guerra entre o bem e o mal se tratasse. Também ele
acredita e deseja a unificação territorial. O imperialismo do tempo do Czar
nunca lhes saiu das veias.
Pelo
meio, fica um país destruído, arrasado, que precisará de anos para se reerguer
e que deverá enfrentar dificuldades económicas agrestes. Se a Ucrânia já era um
país com uma economia débil, após esta insanidade, a recuperação adivinha-se
difícil. Por seu turno, a Rússia sairá derrotada. O apoio massivo dos países
europeus e dos Estados-Unidos da América à Ucrânia deixam-na praticamente só,
como deve ser, com um exército e meios obsoletos. Houvesse maior discernimento
e os russos já teriam compreendido que não há forma de sair disto com lisura. O
mal já foi perpetrado, houvesse agora honradez para o reconhecer.
Anseio
pela capitulação russa. Aguardo o suicídio da besta, se entretanto a conjuntura
política e económica não fizer com que os seus atuais parceiros lhe puxem o
tapete.
O
futuro é uma incógnita. Depois da guerra, o restabelecimento da confiança entre
a Rússia e os países europeus levará tempo e tudo dependerá do líder daquele
país, que terá de ser outro. É minha convicção de que esta tomada de posição
por parte da europa já deveria ter acontecido em 2014, após a anexação da Crimeia.
Espero que a União Europeia compreenda que é preciso determinar linhas vermelhas
e fixar o intolerável para que a tolerância e o respeito pelos outros seja possível.
Já agora, valerá a pena acompanhar atentamente os movimentos fascistas na Europa.
A situação italiana deve preocupar, assim como a Hungria. Urge que os políticos
europeus saibam estimar e preservar a democracia, o que só é possível com boa governação
em prol das populações. A corrupção e o capitalismo selvagem, onde não se vislumbra
a honradez, mas a defesa de um feudo, são o passaporte para o populismo fascista
que tanto custou a extirpar.
Nina
M.
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