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sábado, 8 de outubro de 2022

Crónica de Maus Costumes 294

 

O sentido para a existência

Venho de uma experiência imersiva de luz e de som. Fui aos Clérigos, à Igreja, entenda-se, não às Galerias, para assistir ao espetáculo “Spiritus”, que decorre desde abril e terminará a dezasseis de outubro.

Venho desapontada. Responsabilidade minha, que criei expetativa. A publicidade foi boa e falava-se de uma aliança entre arte multimédia e Fernando Pessoa, concretamente, o heterónimo Álvaro de Campos. Acontece que imaginei um espetáculo mais interativo com jogos de luz, de cor e de voz à mistura, que nos traria Pessoa. Dececionei-me. Houve luz e cor, mas pouco Pessoa. Um segmento a abrir, para nos dizer que “a melhor forma de viajar é sentir/sentir tudo de todas as maneiras/sentir excessivamente”… Poucos portugueses desconhecerão os versos (quero acreditar nisto) e um segmento para fechar o espetáculo e foi tudo quanto houve de Pessoa… Tive pena, porque não senti tudo de todas as maneiras, o que significa que aquilo que nos marca se incrusta na alma pela emoção sentida. Houve alguma beleza, admito, mas não capaz de me agarrar a alma.

E este facto leva-me à pergunta e constatações que me são feitas por pessoas que me são próximas relativamente ao facto de escrever e de continuar semanalmente com esta rubrica. “Não sei como tens pachorra”, dizem-me. Penso que estará relacionado com a explicação que ouvi de uma psiquiatra, nuns vídeos que vou assistindo, por ser curiosa. As ciências sociais, basicamente, a condição humana e tudo o que lhe diga respeito interessa-me. A Literatura explora, tenta compreender, analisa, ilustra e reflete sobre aspetos da condição humana. Por isso é perene e se perpetuará enquanto houver humanidade, porque as mesmas dúvidas com que o Homem se depara repetem-se em épocas diferentes. Ando a ler o Guerra e Paz (já estou no final do primeiro volume). Uma obra-prima do século XIX que reúne as grandes questões: o mistério da vida e da morte; a fé; a descoberta do sentido para a vida; o amor; a hipocrisia e a desigualdade social… Enfim, sempre questões às quais voltamos sem cessar e para as quais não há uma resposta exata ou que sirva a todos, por conseguinte, esta obra foi tão válida no seu tempo quanto é agora, porque permanece atual, pois trata da natureza do ser humano. Porém, dizia eu, que a Dra. Ana Beatriz Barbosa explicava que à medida que o Homem foi evoluindo, o seu cérebro aumentou. O homem ficou mais inteligente, no entanto, esse “upgrade” trouxe como consequência não saber que uso lhe dar, porque se antes, recuando aos primórdios, a única preocupação seria a sobrevivência, neste momento, isso não se coloca. Então, há uma falta de orientação cerebral. O órgão pensante precisa de descobrir o que lhe é vital ou, dito de outra forma, cada um de nós, aparentemente com a sobrevivência garantida, precisa de saber o que fazer com a sua existência e isso passa pela descoberta dos sentidos e do propósito. O sentido remete-nos para os nossos talentos e paixões e o propósito para a forma como os usamos e partilhamos com os outros. A ausência da descoberta de sentido será o “mal du siècle” e o que justificará muitos dos quadros depressivos. Ora que a minha escrita seja talento não estou certa, mas será paixão, certamente. De alguma forma, a escrita traz-me também um sentido à existência. Não o único, mas um sentido. Quanto ao propósito… Não sei propriamente que contributo ou utilidade terá… Vou partilhando convosco, na secreta esperança de não ser abusiva. Porém, o problema também seria de fácil resolução… Basta que não percais tempo com a leitura do que vos possa maçar.

Assim, hoje, aconselhava ao adolescente da casa tentar descobrir-se e descobrir o sentido da sua existência (tarefa demasiado árdua, para já, mas sobre a qual deve ir pensando) para não andar à deriva.

Infalivelmente, a ausência de sentido atira-nos ou para a indiferença dos dias ou para uma leveza alegre que tudo abarca, mas nada agarra, daquelas que não se inscreve na alma, tal como a experiência imersiva que vivi. O que não se funde escoa-se pelas frinchas do ser.

 

Nina M.

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