Juntava-se uma multidão à
sua volta. Sons indistintos. Uma cegueira forçada pelos olhos cerrados que não
conseguia abrir. Porque lhos teriam fechado? Imóvel. Ainda que se esforçasse, o
corpo não lhe obedecia. As pálpebras, portas de ferro sem comando, por mais que
lhes gritasse para se abrirem, ignoravam o seu pedido. Tal como as pernas, as
mãos… Questionava se não lhas teriam amputado. Não sentia nada. Nem dor! Quase
lhe sentia a falta. Sabia existir pela dor incrustada no corpo. Obrigada a
permanecer de pé, imóvel, estátua, sentindo cada vergastada a cada movimento
involuntário que fizesse, até ser vencida pelo cansaço e, já no chão, por
faltarem as forças, a mesma recusa do corpo à voz autoritária e sarcástica que
a mandava erguer-se. As pernas que já não sabiam existir, acusavam-se sob a
violência do pau que as fustigavam. Depois, vinha a ausência, a leveza da
inconsciência até ao acordar dois dias após, noutra cela qualquer, enjoada, a
tremer, com o estômago colado às costas. Novo esforço hercúleo para se soerguer
perante os carrascos pedantes, insolentes, que sem escrutínio da parca
inteligência com que haviam sido dotados, lhe gritavam novamente que se
levantasse. Perscrutavam-na sadicamente. Tentavam violar-lhe a alma, o espaço
de recolhimento da sua dignidade. Inspirava profundamente e, num reunir de
forças, selava os lábios finos, magoados, num novo pacto de segredo e repetia,
no silêncio de si, o alento passado de boca em boca, de prisioneira em
prisioneira até que chegasse o dia de povoar a atmosfera: “coragem hoje,
abraços amanhã; coragem hoje, abraços amanhã”.
Queriam quebrá-la pela dor,
porque a sua dignidade era inviolável. Mesmo despida, perante os olhares
grotescos, nas primeiras horas da detenção, suportou-os de rosto levantado, com
um olhar glacial e digno. Deteve-se nos olhos de cada um, de mãos atrás das
costas e peito puxado à frente, como quem não teme a desonra da nudez, mas
antes a da alma. O corpo desnudo não tem do que se envergonhar, mesmo se o
enxovalham e o envolvem na sua concupiscência, rodeando-o, soprando-lhe um
hálito quente e pestilento, enquanto a protuberância máscula e inadvertida se
torna óbvia. A ira cresce e acompanha a turgidez adivinhada e, como um espasmo
vingativo do desejo que impuro se impõe, a mão desfere o primeiro golpe sobre o
rosto. De seguida, o escarro. Desfaz-se o cabelo e solta-se a interjeição sem
dono, espantada da agressão aflita.
- Sua puta! Sei o que
merecias! Tu e todas as meretrizes que te acompanham… Tudo tem o seu tempo!
Apagou-se o fogo que o
abrasava com o desferir do golpe e com uma ejaculação precoce.
Altiva, a conter severamente
o lago que lhe inundava os olhos, endureceu o rosto e contraiu cada músculo.
Não falaria. Não falaria. Não falaria, repetia para si. Para proteger-se
contava com a sua lucidez e a sua inteligência. Não escaparia aos maus tratos.
Sabia-o, mas não queria quebrar. Estava resoluta a não deixar que lhe roubassem
a dignidade e a alma. Recitava silenciosamente: “Dentro da noite que me rodeia/
Negra como um poço profundo e escura/ Agradeço aos deuses – se algum acaso
existe/ Pela minha alma inconquistável”. Tinha-o decorado propositadamente pela
força que transmite, pelo título Invictus
a lembrar-lhe as origens, pela salvação que a poesia é. Muitos anos mais tarde,
a humanidade conheceria a força do poema pela boca de Nelson Mandela. Ela nunca
o chegaria a saber…
Dizia-lhe o seu espírito que
o único caminho face à opressão seria a luta pela liberdade. Só os anódinos
poderiam resignar-se, poderiam abdicar de si em troca de uma falsa segurança. A
esperança seria possível enquanto houvesse um homem revoltado. Escolheu
conscientemente o seu lado: o da razão, o da liberdade e o da tolerância. Para
vencer a crueldade, apenas a inteligência e o conhecimento profundo do que é um
homem, a consciência de que não há felicidade na escravidão, na ausência do poder
das grandes escolhas. Queria o direito à decisão e sonhava a liberdade.
- Abra! Abra, já! – Gritavam
os carrascos da PIDE que lhe foram bater à porta naquela madrugada fria de
dezembro.
Não abriu. Por precaução,
antes de se deitar, encostava o velho louceiro da avó à porta de entrada. Não
tinha pressa de receber as visitas. Célere, agarrou nos papéis comprometedores
e queimou-os. Obrigava-se a um ritual diário de juntar todos os documentos, de
fazer pequenas trouxas a que pudesse facilmente atear fogo em caso de
emergência. A porta cedeu ao pé de cabra e o louceiro aos ombros dos dois
polícias. Permitiram que se vestisse e foi detida para interrogatório, depois
de lhe virarem a casa do avesso. Vivia clandestinamente, num casebre arranjado,
afastada da família que desconhecia a sua atividade. Não seriam aqueles os seus
torturadores. Apenas lhes suportou os risinhos escarninhos e os comentários de quem,
de repente, se sente insultado pelo feminino. Uma mulher deveria dar-se ao
respeito e não se meter em coisas de política. Viver assim… Sozinha…
Desconfiaram. Nas suas muitas detenções, costumavam, não raras vezes, apanhar
também os seus companheiros, mas desta vez não havia registo de que outra
vivalma ali tivesse guarida. Ainda assim, conforme era de usança, esperaram o
amanhecer e como não viesse homem com o romper da aurora, agarraram bruscamente
na fêmea, algemaram-na, mais por gozo do que por medo de uma possível fuga, e
dirigiram-se ao Aljube. Durante o caminho, afavelmente lhe contavam as sortes
de outras mulheres que também se julgavam valentes e juravam nada lhe acontecer
caso ela colaborasse. Mais tarde, viria a saber da Olga, a camarada que lhes
vomitara o seu nome. Nunca lhe ganhou rancor, porque as circunstâncias
abriram-lhe o caminho largo da compreensão.
Os médicos cercavam-na.
Monitorizavam-lhe o sono do qual parecia não despertar. Pensavam que talvez
tivesse encontrado a ansiada liberdade…
Ela regressava ao primeiro
interrogatório, aquele em que sobreviveu à exposição vexatória da sua nudez e à
bofetada que a deixara surda. Apenas confirmou a sua identidade. Não a fizeram
falar. Arrastaram-na para uma cela. Quando chamou o guarda para alívio do
corpo, ordenaram que o fizesse ali mesmo e usasse os trapos que vestia caso
quisesse limpar-se. Não se retirou de imediato, a impor a sua presença ao
momento que exigia recolhimento. Perante o espanto da mulher, sabia que a
crueldade era imaginativa, mas não lhe antecipara a dimensão, e a sua
incredulidade, o carcereiro soltou uma gargalhada ríspida, seca como a pancada
de um ferro. Ela esperou. Como se não fosse embora, escolheu o melhor canto, o
que se lhe assemelhava mais protegido ao olhar indiscreto e pôs-se de cócoras.
Então, o guarda retirou-se e na sua solidão escura, ela pôde chorar sem que
ninguém visse. Compreendeu-lhes a sanha e o método. Recebeu o medo e
enfrentou-o.
No segundo interrogatório,
estendiam-lhe uma confissão. Não assinou. Veio a tortura da estátua e o
desmaio. A dor insuportável, mas não falou. Os malvados não podiam deixar de
lhe admirar a resistência. Escutavam-lhe os versos quase impercetíveis: “Dentro
da noite que me rodeia/ Negra como um poço profundo e escura…” e
consideravam-nos insultuosos. Não tinham à sua frente a mera companheira de um
preso político, mas antes um guerreiro no feminino, que fazia o mesmo trabalho
que um homem. Vivia na clandestinidade, era acusada de organizar reuniões, de
distribuir panfletos, de desenvolver atividades criminosas à segurança do
Estado. A coragem e a rebelião femininas eram insuportáveis num país cinzento,
retrógrado e misógino. Redobrava-se o castigo para acompanhar a dupla
desfaçatez da mulher. Olhavam-na e não viam fragilidade, mas uma ameaça latente
que quer desempenhar o seu papel na sociedade. Esta ousadia não era perdoável.
Arrastavam-na novamente
febril à cela fétida e dela se esqueciam por dias. Exaurida, não conseguia
mover-se. Deitou-se no catre e dormiu. Acordou com umas batidas ritmadas na
parede, entrecortadas por silêncios. Vindas ora da sua direita ora da sua
esquerda. Era código morse que teria de desvendar com astúcia. Não estava só e
isso dava-lhe alento. Aprendeu-o. Quem és? Falaste? Eram as perguntas
habituais… Aprendeu que o silêncio era a única arma de arremesso contra os
torturadores, mas que lhes custava a saúde física e mental. As investidas não
paravam. Veio a tortura do sono e os famigerados curros de isolamento. Estoica
e admiravelmente, ela não capitulava. No retângulo escuro e estreito, de gatas
para encontrar a latrina, inventava versos, declamava os que a sua memória
decorara e gritava-os para que os guardas soubessem que não a venciam.
É para ti que colho a flor
da liberdade/Da laranjeira plantada no meu jardim… E a mesma poesia que a
salvara haveria de a condenar…
Dias mais tarde, saberia da
sua transferência para Caxias e da prisão de Alfredo Laranjeira. Não
capitulara, mas entregara-o num verso, por incúria. O remorso trouxe-lhe a
febre e a inconsciência.
- Não falaste – diziam-lhe –
suportaste todas as dores. Somos testemunhas, mas as lágrimas escorriam-lhe e a
vitória tinha sabor a derrota. Perdoou Olga, com a consciência de que o único
que pode julgar o que capitulou é aquele que foi torturado sem falar.
Não chegou a Caxias. Os
médicos vigiam-lhe a vida. Ela sente-se no segredo. Assim eram designados os curros.
Nunca ouvirá Mandela declamar o seu poema.
Nina M.
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