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domingo, 11 de setembro de 2022

O Segredo

 


                                                           Nina M.

Juntava-se uma multidão à sua volta. Sons indistintos. Uma cegueira forçada pelos olhos cerrados que não conseguia abrir. Porque lhos teriam fechado? Imóvel. Ainda que se esforçasse, o corpo não lhe obedecia. As pálpebras, portas de ferro sem comando, por mais que lhes gritasse para se abrirem, ignoravam o seu pedido. Tal como as pernas, as mãos… Questionava se não lhas teriam amputado. Não sentia nada. Nem dor! Quase lhe sentia a falta. Sabia existir pela dor incrustada no corpo. Obrigada a permanecer de pé, imóvel, estátua, sentindo cada vergastada a cada movimento involuntário que fizesse, até ser vencida pelo cansaço e, já no chão, por faltarem as forças, a mesma recusa do corpo à voz autoritária e sarcástica que a mandava erguer-se. As pernas que já não sabiam existir, acusavam-se sob a violência do pau que as fustigavam. Depois, vinha a ausência, a leveza da inconsciência até ao acordar dois dias após, noutra cela qualquer, enjoada, a tremer, com o estômago colado às costas. Novo esforço hercúleo para se soerguer perante os carrascos pedantes, insolentes, que sem escrutínio da parca inteligência com que haviam sido dotados, lhe gritavam novamente que se levantasse. Perscrutavam-na sadicamente. Tentavam violar-lhe a alma, o espaço de recolhimento da sua dignidade. Inspirava profundamente e, num reunir de forças, selava os lábios finos, magoados, num novo pacto de segredo e repetia, no silêncio de si, o alento passado de boca em boca, de prisioneira em prisioneira até que chegasse o dia de povoar a atmosfera: “coragem hoje, abraços amanhã; coragem hoje, abraços amanhã”.

Queriam quebrá-la pela dor, porque a sua dignidade era inviolável. Mesmo despida, perante os olhares grotescos, nas primeiras horas da detenção, suportou-os de rosto levantado, com um olhar glacial e digno. Deteve-se nos olhos de cada um, de mãos atrás das costas e peito puxado à frente, como quem não teme a desonra da nudez, mas antes a da alma. O corpo desnudo não tem do que se envergonhar, mesmo se o enxovalham e o envolvem na sua concupiscência, rodeando-o, soprando-lhe um hálito quente e pestilento, enquanto a protuberância máscula e inadvertida se torna óbvia. A ira cresce e acompanha a turgidez adivinhada e, como um espasmo vingativo do desejo que impuro se impõe, a mão desfere o primeiro golpe sobre o rosto. De seguida, o escarro. Desfaz-se o cabelo e solta-se a interjeição sem dono, espantada da agressão aflita.

- Sua puta! Sei o que merecias! Tu e todas as meretrizes que te acompanham… Tudo tem o seu tempo!

Apagou-se o fogo que o abrasava com o desferir do golpe e com uma ejaculação precoce.

Altiva, a conter severamente o lago que lhe inundava os olhos, endureceu o rosto e contraiu cada músculo. Não falaria. Não falaria. Não falaria, repetia para si. Para proteger-se contava com a sua lucidez e a sua inteligência. Não escaparia aos maus tratos. Sabia-o, mas não queria quebrar. Estava resoluta a não deixar que lhe roubassem a dignidade e a alma. Recitava silenciosamente: “Dentro da noite que me rodeia/ Negra como um poço profundo e escura/ Agradeço aos deuses – se algum acaso existe/ Pela minha alma inconquistável”. Tinha-o decorado propositadamente pela força que transmite, pelo título Invictus a lembrar-lhe as origens, pela salvação que a poesia é. Muitos anos mais tarde, a humanidade conheceria a força do poema pela boca de Nelson Mandela. Ela nunca o chegaria a saber…

Dizia-lhe o seu espírito que o único caminho face à opressão seria a luta pela liberdade. Só os anódinos poderiam resignar-se, poderiam abdicar de si em troca de uma falsa segurança. A esperança seria possível enquanto houvesse um homem revoltado. Escolheu conscientemente o seu lado: o da razão, o da liberdade e o da tolerância. Para vencer a crueldade, apenas a inteligência e o conhecimento profundo do que é um homem, a consciência de que não há felicidade na escravidão, na ausência do poder das grandes escolhas. Queria o direito à decisão e sonhava a liberdade.

- Abra! Abra, já! – Gritavam os carrascos da PIDE que lhe foram bater à porta naquela madrugada fria de dezembro.

Não abriu. Por precaução, antes de se deitar, encostava o velho louceiro da avó à porta de entrada. Não tinha pressa de receber as visitas. Célere, agarrou nos papéis comprometedores e queimou-os. Obrigava-se a um ritual diário de juntar todos os documentos, de fazer pequenas trouxas a que pudesse facilmente atear fogo em caso de emergência. A porta cedeu ao pé de cabra e o louceiro aos ombros dos dois polícias. Permitiram que se vestisse e foi detida para interrogatório, depois de lhe virarem a casa do avesso. Vivia clandestinamente, num casebre arranjado, afastada da família que desconhecia a sua atividade. Não seriam aqueles os seus torturadores. Apenas lhes suportou os risinhos escarninhos e os comentários de quem, de repente, se sente insultado pelo feminino. Uma mulher deveria dar-se ao respeito e não se meter em coisas de política. Viver assim… Sozinha… Desconfiaram. Nas suas muitas detenções, costumavam, não raras vezes, apanhar também os seus companheiros, mas desta vez não havia registo de que outra vivalma ali tivesse guarida. Ainda assim, conforme era de usança, esperaram o amanhecer e como não viesse homem com o romper da aurora, agarraram bruscamente na fêmea, algemaram-na, mais por gozo do que por medo de uma possível fuga, e dirigiram-se ao Aljube. Durante o caminho, afavelmente lhe contavam as sortes de outras mulheres que também se julgavam valentes e juravam nada lhe acontecer caso ela colaborasse. Mais tarde, viria a saber da Olga, a camarada que lhes vomitara o seu nome. Nunca lhe ganhou rancor, porque as circunstâncias abriram-lhe o caminho largo da compreensão.

Os médicos cercavam-na. Monitorizavam-lhe o sono do qual parecia não despertar. Pensavam que talvez tivesse encontrado a ansiada liberdade…

Ela regressava ao primeiro interrogatório, aquele em que sobreviveu à exposição vexatória da sua nudez e à bofetada que a deixara surda. Apenas confirmou a sua identidade. Não a fizeram falar. Arrastaram-na para uma cela. Quando chamou o guarda para alívio do corpo, ordenaram que o fizesse ali mesmo e usasse os trapos que vestia caso quisesse limpar-se. Não se retirou de imediato, a impor a sua presença ao momento que exigia recolhimento. Perante o espanto da mulher, sabia que a crueldade era imaginativa, mas não lhe antecipara a dimensão, e a sua incredulidade, o carcereiro soltou uma gargalhada ríspida, seca como a pancada de um ferro. Ela esperou. Como se não fosse embora, escolheu o melhor canto, o que se lhe assemelhava mais protegido ao olhar indiscreto e pôs-se de cócoras. Então, o guarda retirou-se e na sua solidão escura, ela pôde chorar sem que ninguém visse. Compreendeu-lhes a sanha e o método. Recebeu o medo e enfrentou-o.

No segundo interrogatório, estendiam-lhe uma confissão. Não assinou. Veio a tortura da estátua e o desmaio. A dor insuportável, mas não falou. Os malvados não podiam deixar de lhe admirar a resistência. Escutavam-lhe os versos quase impercetíveis: “Dentro da noite que me rodeia/ Negra como um poço profundo e escura…” e consideravam-nos insultuosos. Não tinham à sua frente a mera companheira de um preso político, mas antes um guerreiro no feminino, que fazia o mesmo trabalho que um homem. Vivia na clandestinidade, era acusada de organizar reuniões, de distribuir panfletos, de desenvolver atividades criminosas à segurança do Estado. A coragem e a rebelião femininas eram insuportáveis num país cinzento, retrógrado e misógino. Redobrava-se o castigo para acompanhar a dupla desfaçatez da mulher. Olhavam-na e não viam fragilidade, mas uma ameaça latente que quer desempenhar o seu papel na sociedade. Esta ousadia não era perdoável.

Arrastavam-na novamente febril à cela fétida e dela se esqueciam por dias. Exaurida, não conseguia mover-se. Deitou-se no catre e dormiu. Acordou com umas batidas ritmadas na parede, entrecortadas por silêncios. Vindas ora da sua direita ora da sua esquerda. Era código morse que teria de desvendar com astúcia. Não estava só e isso dava-lhe alento. Aprendeu-o. Quem és? Falaste? Eram as perguntas habituais… Aprendeu que o silêncio era a única arma de arremesso contra os torturadores, mas que lhes custava a saúde física e mental. As investidas não paravam. Veio a tortura do sono e os famigerados curros de isolamento. Estoica e admiravelmente, ela não capitulava. No retângulo escuro e estreito, de gatas para encontrar a latrina, inventava versos, declamava os que a sua memória decorara e gritava-os para que os guardas soubessem que não a venciam.

É para ti que colho a flor da liberdade/Da laranjeira plantada no meu jardim… E a mesma poesia que a salvara haveria de a condenar…

Dias mais tarde, saberia da sua transferência para Caxias e da prisão de Alfredo Laranjeira. Não capitulara, mas entregara-o num verso, por incúria. O remorso trouxe-lhe a febre e a inconsciência.

- Não falaste – diziam-lhe – suportaste todas as dores. Somos testemunhas, mas as lágrimas escorriam-lhe e a vitória tinha sabor a derrota. Perdoou Olga, com a consciência de que o único que pode julgar o que capitulou é aquele que foi torturado sem falar.

Não chegou a Caxias. Os médicos vigiam-lhe a vida. Ela sente-se no segredo. Assim eram designados os curros. Nunca ouvirá Mandela declamar o seu poema.

Nina M. 

 

 

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