Incongruências e utopias
Surgiu-me e já não é a primeira vez,
no mural da minha página de facebook ou meta (a mudança do nome não colou…) um
vídeo de Eduardo Marinho, definido na wikipédia, que vale o que vale, como
artista plástico, escritor, ativista social e filósofo brasileiro. Já o ouvi
por uma ou duas ocasiões e, apesar de concordar com algumas das suas ideias não
estou de acordo com outras.
O Eduardo granjeia
simpatias alheias, porque é um homem de palavra fácil e de boa retórica,
defensor dos mais desfavorecidos, mas pelo meio do seu discurso ágil e,
nalgumas coisas, acertado, também é possível apanhar falhas na sua
argumentação, no caso de se manter o espírito crítico. O Eduardo é oriundo de
uma família brasileira de classe média que aos catorze anos foi trabalhar num
banco, para se despedir aos quinze, depois passou pelo exército, acabando por
sair por não se rever no papel das forças armadas. Cursou Direito, mas também
desistiu, chegou a ser uma espécie de morador de rua e, pelo meio, é ainda pai
de cinco filhos. Um percurso destes evidencia alguma inadaptação ao mundo que o
circunda, o que não é assim tão raro, tendo as suas peculiares convicções.
Referia
ele, a título de exemplo, que nunca teria empregada doméstica, porque seria uma
espécie de traição aos seus princípios. Segundo a sua tese, os trabalhadores
braçais menos qualificados são vítimas sociais, com quem o Estado
deliberadamente falha, para continuar a ter quem execute as tarefas “menos
nobres” a preços vergonhosos, explorando-os, fazendo-os acreditar que os estão
a ajudar, porque lhes pagam um salário e assim asseguram-lhes a sobrevivência.
Por isso, dizia ele, em consciência, não poderia ter mulher a dias. Se quer o
chão limpo, tem de o limpar e se quer comer, tem de cozinhar ou então comprar
qualquer coisa para comer na “lanchonete”. Foi precisamente esta última parte
que me deixou pensativa. O Eduardo não teria empregada para não ser cúmplice de
uma sociedade que explora e escraviza, mas se quiser comida e não lhe apetecer
cozinhar, compra-a! Ora, Eduardo, a comida comprada também é feita com o
trabalho remunerado de alguém e, muitas vezes, mal remunerado! É trabalho tão
escravo quanto o da prestadora de serviços domésticos! Para ficar
verdadeiramente tranquilo, o Eduardo tinha que plantar e colher os próprios
alimentos, confecioná-los e, depois, sim, comê-los. Portanto, a solução que
encontra para mitigar a consciência, na verdade, é falaciosa.
Eu dou-lhe razão na questão da
meritocracia subjacente nas suas palavras. Na maioria das vezes, é um engodo,
porque as assimetrias sociais profundas impedem a sua implementação. Alguém que
nasce no seio de uma família estruturada e com condições económicas favoráveis
está em vantagem em relação àquele que pouco ou nada tem. O dever do Estado
seria prover o país de condições para erradicação da pobreza, garantindo o
acesso dos que nada têm aos direitos fundamentais, numa tentativa de equilibrar
a balança e reduzir as desigualdades. Depreendo pelo seu discurso que a chave
para a resolução dos problemas está no acesso à educação de qualidade e que não
interessa aos poderosos. Estes querem a perpetuação da pobreza para terem
serviçais a baixo custo. Ou seja, só vai para lavrador, pedreiro, mecânico, trolha
ou eletricista aquele a quem não foram facultados todos os meios para poder
estudar. Caso o tivessem feito, não se sujeitariam ao cumprimento de tais
tarefas nada reconhecidas e mal pagas. Como solução, aponta uma espécie de
rebelião e de greve ao trabalho, porque os ricos precisam mais dos
trabalhadores do que o inverso, já que sem eles, as fábricas não funcionariam.
Os ricos são ricos, porque exploram os pobres.
Ora, a mim soa-me a
tese típica antiburguesa, mas na verdade, querer ser burguês, no sentido de
querer ter uma vida confortável e com acesso a alguns prazeres, não tem mal
nenhum! O problema está na pobreza e não na burguesia! O Eduardo deixou-me a
pensar, porque considerando errado as profundas desigualdades sociais, não é
acabando com estes serviços que se resolve o problema! Parece-me que, por um
lado, atribui dignidade à pessoa conforme o nível académico que ela apresenta,
por outro lado, parte do princípio que todos esses trabalhadores gostariam de
estudar! Se tivessem tido essa real oportunidade, não andariam a varrer ruas ou
a trabalhar em cafés ou na construção civil! Obviamente, as coisas não são tão
lineares! Há pessoas a quem foi dada a oportunidade de estudar, apesar de um razoável
ambiente socioeconómico e não quiseram, porque não gostavam. Nem toda a gente
mostra interesse pelo trabalho intelectual e isto não as torna menos dignas do
que os que estudaram. Há muitos, na verdade, que sem grande instrução,
conseguem um nível de vida bastante acima da média e até melhor do que muitos
instruídos. Ser empregada doméstica não desmerece ninguém. É um trabalho como
qualquer outro. O que está errado é a falta de reconhecimento e os baixos
salários destes trabalhadores. São a base da pirâmide e são importantíssimos!
Neste ponto, sem concessões: devem ser condignamente pagos e reconhecidos. No
entanto, não partilho da visão da proletarização de salários. Um trabalho
qualificado tem de ser também justamente valorizado. Ser varredor de rua não é
fácil, mas eu ou qualquer outra pessoa poderia fazê-lo, mas já não poderia ser
médico ou engenheiro! Estes últimos investiram largo tempo na sua formação e os
seus pais dispensaram avultadas somas para que eles se instruíssem, mesmo que
tenham frequentado o ensino público! Se um médico ou engenheiro ganhassem o
mesmo que o varredor, que razões teriam eles para se dedicarem tanto tempo ao
estudo? O espírito de missão não aparece em muita gente! Em vez de estudarem em
média dezassete ou dezoito anos, entrariam no mercado de trabalho mais cedo,
auferindo o mesmo valor! Dentro de pouco tempo deixaria de haver médicos ou
engenheiros!
A dignidade do ser humano não lhe é
atribuída pela profissão que exerce, mas pelo seu caráter. Todas as profissões
são dignas e devem ser valorizadas e justamente recompensadas. Não temos de
erradicar a burguesia; Temos de erradicar a pobreza! O Estado de um país deve
esforçar-se por terminar com as assimetrias obscenas, proporcionar aos mais
desfavorecidos todas as condições de acesso a uma boa educação e cuidados de
saúde. Proporcionar a oportunidade de estudar, independentemente da condição
social a quem o queira fazer e ajudar a que consigam alcançar os seus objetivos,
reduzir a carga fiscal das empresas sobre os funcionários, fazendo com que esse
dinheiro seja revertido em melhores salários para os trabalhadores, por exemplo.
O caminho só pode ser o da economia saudável e justa, numa sociedade composta
por elementos diferentes, que gostam de coisas diferentes, que têm direito à
diferença e onde o facto de se escolher ser lavrador ou marceneiro não seja nem
motivo de estigma social nem motivo de pobreza, nem o médico repudiado pelo bom
salário que possa auferir. Uma sociedade, porém, onde todos compreendam que não
se devem deixar explorar, mas também onde todos saibam que têm de contribuir para
o seu bom funcionamento. Uma sociedade onde caibam os direitos, mas também os deveres
de todos! Para evitar vergonhas humanas, compete ao Estado fazer o papel de regulador
nas suas empresas. Não me incomoda que se pague um salário de cem mil euros a um
gestor, se este o justificar, se fizer a empresa evoluir com lucros sustentados.
Incomoda-me esse salário no erário público quando os restantes assalariados recebem
pouco e a empresa dá prejuízo ao estado, ou seja, a todos nós!
Conferir dignidade não é querer igualdade
absoluta! Isso seria um desrespeito pelas escolhas e pela individualidade do cidadão!
Reconhecimento, sim! Proletarização de salários, não! Infelizmente é ao que assisto
neste país.
Nina M.
Sem comentários:
Enviar um comentário