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sábado, 17 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 291

 

Incongruências e utopias

                Surgiu-me e já não é a primeira vez, no mural da minha página de facebook ou meta (a mudança do nome não colou…) um vídeo de Eduardo Marinho, definido na wikipédia, que vale o que vale, como artista plástico, escritor, ativista social e filósofo brasileiro. Já o ouvi por uma ou duas ocasiões e, apesar de concordar com algumas das suas ideias não estou de acordo com outras.

O Eduardo granjeia simpatias alheias, porque é um homem de palavra fácil e de boa retórica, defensor dos mais desfavorecidos, mas pelo meio do seu discurso ágil e, nalgumas coisas, acertado, também é possível apanhar falhas na sua argumentação, no caso de se manter o espírito crítico. O Eduardo é oriundo de uma família brasileira de classe média que aos catorze anos foi trabalhar num banco, para se despedir aos quinze, depois passou pelo exército, acabando por sair por não se rever no papel das forças armadas. Cursou Direito, mas também desistiu, chegou a ser uma espécie de morador de rua e, pelo meio, é ainda pai de cinco filhos. Um percurso destes evidencia alguma inadaptação ao mundo que o circunda, o que não é assim tão raro, tendo as suas peculiares convicções.

Referia ele, a título de exemplo, que nunca teria empregada doméstica, porque seria uma espécie de traição aos seus princípios. Segundo a sua tese, os trabalhadores braçais menos qualificados são vítimas sociais, com quem o Estado deliberadamente falha, para continuar a ter quem execute as tarefas “menos nobres” a preços vergonhosos, explorando-os, fazendo-os acreditar que os estão a ajudar, porque lhes pagam um salário e assim asseguram-lhes a sobrevivência. Por isso, dizia ele, em consciência, não poderia ter mulher a dias. Se quer o chão limpo, tem de o limpar e se quer comer, tem de cozinhar ou então comprar qualquer coisa para comer na “lanchonete”. Foi precisamente esta última parte que me deixou pensativa. O Eduardo não teria empregada para não ser cúmplice de uma sociedade que explora e escraviza, mas se quiser comida e não lhe apetecer cozinhar, compra-a! Ora, Eduardo, a comida comprada também é feita com o trabalho remunerado de alguém e, muitas vezes, mal remunerado! É trabalho tão escravo quanto o da prestadora de serviços domésticos! Para ficar verdadeiramente tranquilo, o Eduardo tinha que plantar e colher os próprios alimentos, confecioná-los e, depois, sim, comê-los. Portanto, a solução que encontra para mitigar a consciência, na verdade, é falaciosa.

            Eu dou-lhe razão na questão da meritocracia subjacente nas suas palavras. Na maioria das vezes, é um engodo, porque as assimetrias sociais profundas impedem a sua implementação. Alguém que nasce no seio de uma família estruturada e com condições económicas favoráveis está em vantagem em relação àquele que pouco ou nada tem. O dever do Estado seria prover o país de condições para erradicação da pobreza, garantindo o acesso dos que nada têm aos direitos fundamentais, numa tentativa de equilibrar a balança e reduzir as desigualdades. Depreendo pelo seu discurso que a chave para a resolução dos problemas está no acesso à educação de qualidade e que não interessa aos poderosos. Estes querem a perpetuação da pobreza para terem serviçais a baixo custo. Ou seja, só vai para lavrador, pedreiro, mecânico, trolha ou eletricista aquele a quem não foram facultados todos os meios para poder estudar. Caso o tivessem feito, não se sujeitariam ao cumprimento de tais tarefas nada reconhecidas e mal pagas. Como solução, aponta uma espécie de rebelião e de greve ao trabalho, porque os ricos precisam mais dos trabalhadores do que o inverso, já que sem eles, as fábricas não funcionariam. Os ricos são ricos, porque exploram os pobres.

Ora, a mim soa-me a tese típica antiburguesa, mas na verdade, querer ser burguês, no sentido de querer ter uma vida confortável e com acesso a alguns prazeres, não tem mal nenhum! O problema está na pobreza e não na burguesia! O Eduardo deixou-me a pensar, porque considerando errado as profundas desigualdades sociais, não é acabando com estes serviços que se resolve o problema! Parece-me que, por um lado, atribui dignidade à pessoa conforme o nível académico que ela apresenta, por outro lado, parte do princípio que todos esses trabalhadores gostariam de estudar! Se tivessem tido essa real oportunidade, não andariam a varrer ruas ou a trabalhar em cafés ou na construção civil! Obviamente, as coisas não são tão lineares! Há pessoas a quem foi dada a oportunidade de estudar, apesar de um razoável ambiente socioeconómico e não quiseram, porque não gostavam. Nem toda a gente mostra interesse pelo trabalho intelectual e isto não as torna menos dignas do que os que estudaram. Há muitos, na verdade, que sem grande instrução, conseguem um nível de vida bastante acima da média e até melhor do que muitos instruídos. Ser empregada doméstica não desmerece ninguém. É um trabalho como qualquer outro. O que está errado é a falta de reconhecimento e os baixos salários destes trabalhadores. São a base da pirâmide e são importantíssimos! Neste ponto, sem concessões: devem ser condignamente pagos e reconhecidos. No entanto, não partilho da visão da proletarização de salários. Um trabalho qualificado tem de ser também justamente valorizado. Ser varredor de rua não é fácil, mas eu ou qualquer outra pessoa poderia fazê-lo, mas já não poderia ser médico ou engenheiro! Estes últimos investiram largo tempo na sua formação e os seus pais dispensaram avultadas somas para que eles se instruíssem, mesmo que tenham frequentado o ensino público! Se um médico ou engenheiro ganhassem o mesmo que o varredor, que razões teriam eles para se dedicarem tanto tempo ao estudo? O espírito de missão não aparece em muita gente! Em vez de estudarem em média dezassete ou dezoito anos, entrariam no mercado de trabalho mais cedo, auferindo o mesmo valor! Dentro de pouco tempo deixaria de haver médicos ou engenheiros!

            A dignidade do ser humano não lhe é atribuída pela profissão que exerce, mas pelo seu caráter. Todas as profissões são dignas e devem ser valorizadas e justamente recompensadas. Não temos de erradicar a burguesia; Temos de erradicar a pobreza! O Estado de um país deve esforçar-se por terminar com as assimetrias obscenas, proporcionar aos mais desfavorecidos todas as condições de acesso a uma boa educação e cuidados de saúde. Proporcionar a oportunidade de estudar, independentemente da condição social a quem o queira fazer e ajudar a que consigam alcançar os seus objetivos, reduzir a carga fiscal das empresas sobre os funcionários, fazendo com que esse dinheiro seja revertido em melhores salários para os trabalhadores, por exemplo. O caminho só pode ser o da economia saudável e justa, numa sociedade composta por elementos diferentes, que gostam de coisas diferentes, que têm direito à diferença e onde o facto de se escolher ser lavrador ou marceneiro não seja nem motivo de estigma social nem motivo de pobreza, nem o médico repudiado pelo bom salário que possa auferir. Uma sociedade, porém, onde todos compreendam que não se devem deixar explorar, mas também onde todos saibam que têm de contribuir para o seu bom funcionamento. Uma sociedade onde caibam os direitos, mas também os deveres de todos! Para evitar vergonhas humanas, compete ao Estado fazer o papel de regulador nas suas empresas. Não me incomoda que se pague um salário de cem mil euros a um gestor, se este o justificar, se fizer a empresa evoluir com lucros sustentados. Incomoda-me esse salário no erário público quando os restantes assalariados recebem pouco e a empresa dá prejuízo ao estado, ou seja, a todos nós!

            Conferir dignidade não é querer igualdade absoluta! Isso seria um desrespeito pelas escolhas e pela individualidade do cidadão! Reconhecimento, sim! Proletarização de salários, não! Infelizmente é ao que assisto neste país.

 

Nina M.

 

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