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sábado, 10 de setembro de 2022

Crónica de Maus Costumes 290

 Valter e a infância

            Eu gosto muito de Valter Hugo Mãe. Já gostava antes de ter sabido que partilhámos os mesmos cheiros, as mesmas ruas, o mesmo espaço e tempo. Talvez nos tenhamos cruzado sem que o soubéssemos. O Valter viveu em Paços até aos dez anos de idade. Ele é da idade do meu irmão mais velho, o que significa que coincidiram no quinto ano, pois era a única “escola preparatória” do conselho, como então se designava. Eu sou quatro anos mais nova, mas invariavelmente, aos domingos, o meu pai deixava o carro estacionado na rua, muitas vezes, mesmo em frente da casa onde ele morava.

            Curiosamente, foi através do seu livro “Contra mim”, a sua autobiografia dos tempos infantis, que saciei a minha curiosidade relativa à casa onde o Valter morava. O casarão pertencia a uma velhinha conhecida por Dona Alicinha Baptista. Era uma casa grande, pintada de um rosa velho forte. Ela morava no andar debaixo e o Valter e a sua família no piso de cima. Era rodeada por um muro imenso (ou pelo menos parecia-me imenso, na altura) que impedia a visão para dentro. Além desta barreira física, havia a barreira natural das árvores, havia japoneiras, também elas cor-de-rosa e, por entre a verdura frondosa e fresca, espreitava a habitação. Sempre me despertou curiosidade, porque aquele jardim verde, fresco, de onde os pássaros chilreavam, mas em simultâneo algo escuro, carregava uma espécie de melancolia que transtornava a alma da minha criança. Lembro-me de, sempre que ali passava, me questionar sobre como seria aquele espaço, mas a minha curiosidade nunca foi saciada. Nunca vi ninguém sair ou entrar de lá e mais misteriosa e incrível me parecia a casa! Quando o Valter lança o seu livro, desvendou-se o mistério, porque ele descreve a habitação e o espaço que a rodeia, o jardim grande onde enterrava as bolachas que a senhoria lhe dava, quando ia a sua casa pagar-lhe a renda, a mando dos pais. Ele ficava um pouco assustado, porque a sala da senhora poderia servir de igreja, dada a quantidade de santos que por ali habitavam. Entretanto, após a saída do escritor e a morte da velhinha, a bela casa foi vendida e deu lugar a um prédio alto, moderno, com inúmeras habitações e uma praça de condomínio, mas perdeu-se a casa cor-de-rosa, que me levava a imaginar mil aventuras que poderiam acontecer naquele jardim belo, mas algo sorumbático, apesar do canto das aves. Se fosse hoje, aquela casa, com aquele espaço, em pleno centro da cidade, quanto não valeria! E como continuaria a ser belo aquele jardim… O Valter lastima a sua ausência, tal como a ausência dos peixinhos vermelhos no lago do jardim, em frente à igreja matriz. Dizia ele que tinha ido ver a ponte, que hoje é parolinha, mas que faz parte das suas memórias. Não acho a ponte parola e até gosto bem dela, porque depois do café, ao domingo, subir ao jardim e ir ver os peixinhos que vinham comer as migalhas que a criançada lhes dava, era obrigatório. Por isso, concordo com o

Valter. Senhor vereador, é preciso pôr peixinhos vermelhos no lago!

Eu, o Valter e muitos outros pacenses temos memórias semelhantes da terra, que na altura era uma pequeníssima vila, a trinta quilómetros do Porto, mas ainda assim, demasiado distante, naquele tempo, onde só se ia ao Porto por motivo de força maior, principalmente, os que não tinham carro próprio. Transporte público não havia e ainda hoje não existe. Se Paços, hoje, está perto de tudo, porque quase todos possuem veículo próprio, há quarenta anos estava longe de tudo, estávamos condenados a que o mundo chegasse até nós pela televisão. Houve quem discordasse, mas essa é também a minha perceção, ainda que mais tarde fôssemos, a cada quinze dias ao Porto, a casa do meu tio, a Ramalde. Interrogo-me por que razão os adultos não nos levavam a Serralves, por exemplo, ali tão perto… Lá íamos passear até ao Inatel, a pé, se o tempo o permitisse, e regressávamos a casa do meu tio, para ouvir os gritos do senhor Diamantino, que morava no segundo esquerdo, em caso de derrota do Benfica. Uma vez, com a frustração, atirou com a televisão abaixo da janela! Antes isso do que bater na mulher! E quando uma vez fomos, na passagem de ano, para a ponte móvel, isso é que foi uma alegria e um espanto! Ver a ponte partir-se ao meio! Por isso, Valter, sim, éramos uns pasmados e quiséramos nós ser capazes de preservar o espanto da inocência pelas coisas simples!

A sala encheu-se para ouvir o Valter. O espaço escolhido era bonito e digno, mas muito pequeno. Normalmente, este tipo de atividades não convence muita gente, mas o pacense emprestado tinha a casa cheia e ficou gente de pé. Eu fiquei felicíssima com a sua vinda, não tanto pelo facto de o autor ter vivido cá e haver memórias semelhantes, o que lhe confere maior simpatia por parte dos habitantes (alguns ainda são seus amigos), mas também porque ele conserva a simplicidade e a humildade dos que foram tocados pelo pasmo, conseguindo criar uma ligação emocional com a plateia. Quem lê Valter, adivinha-lhe a sensibilidade e o humanismo. A sua obra é atravessada pela angústia do amor, tratado nas mais variadas vertentes: o amor romântico heterossexual, homossexual, o amor maternal e paternal, o amor filial, fraternal e o amor e respeito pelo outro, tão necessário na nossa sociedade. O Valter põe a nu a fragilidade do Homem sedento de amor, mas que simultaneamente, não sabe como lidar com ele. Baltasar espanca violentamente a mulher, Ermesinda, não por falta de amor, mas por obsessão e ciúme doentio e talvez porque seguisse o exemplo paterno. A mãe de Halla maltratava-a como se ela tivesse culpa de não ter morrido juntamente com a irmã. Como se a sua existência fosse uma afronta à gémea morta, de quem todos gostavam. Vemos esta criança ligar-se a Einar, um homem feito, uma relação de pedofilia, na verdade, mas o único que a sabe amar… Há o homem que procura desesperadamente um filho que nunca teve, uma mãe que queria ser capaz de desprezar o filho homossexual, mas não deixa de sentir amor e não o consegue matar, como lhe sugeriram as vizinhas, um pai consciente, autónomo e capaz, enviado para um asilo, após a morte da esposa… 

As suas narrativas são socos que nos são atirados e que aparamos como podemos. Têm a capacidade de nos retirar do nosso conforto, de nos fazer pensar na maldade e na bondade humana e na busca pelo amor, que é, segundo o próprio autor, tal como me confirmou na questão que lhe coloquei, uma busca pelo sentido, que não existe fora dele. Uma tentativa de humanização num mundo desumanizado. Valter é, por isso, um escritor engajado com o seu tempo que procura espicaçar consciências. Pertence à estirpe dos maiores e assim será recordado um dia mais tarde. Sobre isso, não me restam dúvidas. Quiseram os deuses que tivesse vivido uma fase importantíssima da sua vida em Paços de Ferreira e é desta terra, como o próprio afirma, a partir do jardim, em frente à igreja, que traça todas as distâncias para outros destinos!

Bem-haja, Valter! Volte sempre.

 

Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

 

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