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sábado, 30 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 288

 

Consultas e rotinas

A crónica de hoje será mais feminina. Durante a semana, fiz a visita anual ao ginecologista. Tenho saído sempre feliz do consultório, porque até hoje é o único professor que, invariavelmente, me tem avaliado com vinte valores, após observação da ecografia mamária e mamografia e respetivo exame anual, tal como é necessário, na “sala das torturas”, como ele próprio designa. Obviamente, não é uma consulta que adoremos fazer, mas é imprescindível. Já estive para lhe dizer que tortura maior é o dentista. Na maca ginecológica, não se sente nada… Noutras circunstâncias, seria estranho e até indesejável, mas ali é o que se espera, não sentir absolutamente nada.

Tudo impecável aqui com a jovem senhora, como normalmente me trata, pelo que me diz categoricamente: “vinte valores, menina. Está tudo muito bem, o que é uma grande chatice, veja lá… Não tenho nenhum tratamento a fazer” - diz a sorrir, enquanto me dá uma palmadinha no rosto, antes de se dirigir novamente ao consultório, na sala contígua, aonde estamos ainda apresentáveis. Foi a primeira vez que o meu médico de sempre, que me acompanhou nas duas gravidezes, que preveniu e evitou que pudesse eventualmente passar por um aborto espontâneo, que me defendeu a Matilde, teve um gesto de carinho, um gesto absolutamente paternal. Ele, médico reputadíssimo, um dos melhores do país, com provas dadas e clínica para tratamento de infertilidade, sempre muito profissional e competente, mas também homem de poucas falas, reservado e distante. Às vezes, notava-lhe até uma certa irascibilidade para com as suas auxiliares e, neste momento, nada disso é visível.

Nota-se-lhe um cansaço e o desgosto pela sua perda. Os retratos da filha e do pai (também ele ginecologista) enfeitam-lhe a parede do consultório. Acompanham-no sempre, como faz questão de dizer. A morte da filha, há cerca de quatro anos, ainda uma mulher jovem, de 32 anos e que deixou duas crianças pequenas, uma delas, bebé que amamentava, matou parte do professor (assim o trato, porque é professor catedrático). Um cancro da mama fulminante, descoberto durante a amamentação, sem que houvesse nada a fazer. A vida pode ser muito cínica. O pai que trata, acompanha e zela pela saúde de tantas mulheres, nada pôde fazer pela própria filha. O luto e a tristeza acompanham-no e não gosto de o ver assim… Pesam-lhe os anos, envelheceu imenso e nota-se que precisa de recorrer muito mais à ficha de cada paciente, quando outrora, sabia todo o historial de cor. Sabia se já íamos com a mamografia que pede a cada dois anos, depois dos quarenta. Agora, precisa de consultar a ficha para saber se está na altura do exame… Lá me disse que para mim ia abrir uma nova, uma terceira ficha, que sobrepõe umas às outras, como páginas de livros escritos à mão. Respondi-lhe: "pudera, senhor professor, já são tantos anos!"

- Pois são! – diz-me a sorrir…

Antes do seu grande desgosto, raramente sorria. Era sempre muito profissional, mas mais austero e pouco paciente. Agora, noto-o mais humano, mais próximo e mais terno. Sou mais velha do que seria a sua filha, se fosse viva, mas não tenho dúvida de que cada “jovem senhora” que acompanha é, de certa forma, a filha que não perde. A palmadinha inusitada no rosto, de visível satisfação por poder dizer que estava tudo bem e que me dava vinte valores é disso prova. O professor já é capaz de sorrir. Desejo que lhe sobre a saudade boa, sob a forma de amor, que a dor que possa ainda sentir esteja mais mitigada e que os netos lhe possibilitem encontrar ainda razões para cá estar. É que já o ouvi dizer que estava só à espera do momento do encontro com a filha e com o pai. Espero que os outros filhos e todos os netos lhe permitam ter vontade de cá permanecer…

Quanto às “jovens senhoras” que me vão acompanhando, não descuidem a vossa saúde. A visita anual ao ginecologista, o exame citológico (vulgo papanicolau), a ecografia e mamografia são obrigatórios! Pela vosso bem-estar! Afinal, custa mais o dentista…

Esta será a última crónica antes do almejado descanso. O mês de agosto, por força das circunstâncias exige que se reponham energias, pelo que nos próximos tempos estarei a usufruir do merecido sossego, sem atender a compromissos laborais nem lúdicos, que apesar de me serem prazenteiros, não deixam de ser uma espécie de trabalho não remunerado. Já dizia o outro: faz o que gostas e não terás de trabalhar um único dia. E eu gosto efetivamente da rubrica criada há muito, mas preciso de uma desintoxicação, tal como aqueles que me vão acompanhando, suponho…

 Assim sendo, por motivo de férias, a “Crónica de Maus Costumes” ficará em pousio durante o mês de agosto. Dizem que o pousio torna o terreno mais fértil. Veremos... Boas férias!

 

Nina M.

 

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