Consultas e rotinas
A
crónica de hoje será mais feminina. Durante a semana, fiz a visita anual ao
ginecologista. Tenho saído sempre feliz do consultório, porque até hoje é o
único professor que, invariavelmente, me tem avaliado com vinte valores, após
observação da ecografia mamária e mamografia e respetivo exame anual, tal como
é necessário, na “sala das torturas”, como ele próprio designa. Obviamente, não
é uma consulta que adoremos fazer, mas é imprescindível. Já estive para lhe
dizer que tortura maior é o dentista. Na maca ginecológica, não se sente nada…
Noutras circunstâncias, seria estranho e até indesejável, mas ali é o que se
espera, não sentir absolutamente nada.
Tudo
impecável aqui com a jovem senhora, como normalmente me trata, pelo que me diz
categoricamente: “vinte valores, menina. Está tudo muito bem, o que é uma
grande chatice, veja lá… Não tenho nenhum tratamento a fazer” - diz a sorrir,
enquanto me dá uma palmadinha no rosto, antes de se dirigir novamente ao
consultório, na sala contígua, aonde estamos ainda apresentáveis. Foi a
primeira vez que o meu médico de sempre, que me acompanhou nas duas gravidezes,
que preveniu e evitou que pudesse eventualmente passar por um aborto
espontâneo, que me defendeu a Matilde, teve um gesto de carinho, um gesto
absolutamente paternal. Ele, médico reputadíssimo, um dos melhores do país, com
provas dadas e clínica para tratamento de infertilidade, sempre muito
profissional e competente, mas também homem de poucas falas, reservado e
distante. Às vezes, notava-lhe até uma certa irascibilidade para com as suas
auxiliares e, neste momento, nada disso é visível.
Nota-se-lhe
um cansaço e o desgosto pela sua perda. Os retratos da filha e do pai (também
ele ginecologista) enfeitam-lhe a parede do consultório. Acompanham-no sempre,
como faz questão de dizer. A morte da filha, há cerca de quatro anos, ainda uma mulher jovem, de 32 anos
e que deixou duas crianças pequenas, uma delas, bebé que amamentava, matou
parte do professor (assim o trato, porque é professor catedrático). Um cancro
da mama fulminante, descoberto durante a amamentação, sem que houvesse nada a
fazer. A vida pode ser muito cínica. O pai que trata, acompanha e zela pela
saúde de tantas mulheres, nada pôde fazer pela própria filha. O luto e a
tristeza acompanham-no e não gosto de o ver assim… Pesam-lhe os anos,
envelheceu imenso e nota-se que precisa de recorrer muito mais à ficha de cada
paciente, quando outrora, sabia todo o historial de cor. Sabia se já íamos com
a mamografia que pede a cada dois anos, depois dos quarenta. Agora, precisa de
consultar a ficha para saber se está na altura do exame… Lá me disse que para mim
ia abrir uma nova, uma terceira ficha, que sobrepõe umas às outras, como
páginas de livros escritos à mão. Respondi-lhe: "pudera, senhor professor, já
são tantos anos!"
-
Pois são! – diz-me a sorrir…
Antes
do seu grande desgosto, raramente sorria. Era sempre muito profissional, mas
mais austero e pouco paciente. Agora, noto-o mais humano, mais próximo e mais
terno. Sou mais velha do que seria a sua filha, se fosse viva, mas não tenho
dúvida de que cada “jovem senhora” que acompanha é, de certa forma, a filha que
não perde. A palmadinha inusitada no rosto, de visível satisfação por poder
dizer que estava tudo bem e que me dava vinte valores é disso prova. O
professor já é capaz de sorrir. Desejo que lhe sobre a saudade boa, sob a forma
de amor, que a dor que possa ainda sentir esteja mais mitigada e que os netos
lhe possibilitem encontrar ainda razões para cá estar. É que já o ouvi dizer
que estava só à espera do momento do encontro com a filha e com o pai. Espero que
os outros filhos e todos os netos lhe permitam ter vontade de cá permanecer…
Quanto
às “jovens senhoras” que me vão acompanhando, não descuidem a vossa saúde. A visita
anual ao ginecologista, o exame citológico (vulgo papanicolau), a ecografia e mamografia
são obrigatórios! Pela vosso bem-estar! Afinal, custa mais o dentista…
Esta
será a última crónica antes do almejado descanso. O mês de agosto, por força das
circunstâncias exige que se reponham energias, pelo que nos próximos tempos
estarei a usufruir do merecido sossego, sem atender a compromissos laborais nem
lúdicos, que apesar de me serem prazenteiros, não deixam de ser uma espécie de
trabalho não remunerado. Já dizia o outro: faz o que gostas e não terás de
trabalhar um único dia. E eu gosto efetivamente da rubrica criada há muito, mas
preciso de uma desintoxicação, tal como aqueles que me vão acompanhando,
suponho…
Assim sendo, por motivo de férias, a “Crónica
de Maus Costumes” ficará em pousio durante o mês de agosto. Dizem que o pousio
torna o terreno mais fértil. Veremos... Boas férias!
Nina
M.
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