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sábado, 16 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 286

 

Despedida

O tema da crónica de hoje não é feliz. No domingo passado, partiu o senhor Domingos Barreiro, pai da minha irmã de coração, com quem partilhei um passado, com quem estudei, com quem estagiei, com quem cresci, por quem nasceu uma empatia e um carinho súbitos. Fomos o apoio uma da outra em diversas circunstâncias. Continuamos assim… Com uma amizade pura, desprovida de interesse a não ser o bem-estar da outra. O oceano que nos separa é o mesmo que nos une. Tem sido duas vezes por ano e este não será exceção. É um momento de tristeza e não te emociones agora, amiga, quando me leres…

Quero deixar umas palavras em memória do teu pai, um senhor com quem tive o privilégio de privar. Antes de mais, agradecer a cordialidade, a simpatia, a disponibilidade com que sempre me recebeu, primeiro a mim e depois à minha família. Agradecer o respeito que tinha pela nossa amizade. Agradecer-lhe a mulher que te tornou com a sua proteção e a sua ajuda, apesar de todas as dificuldades que foste forçada a superar (sabemos bem do que falo). Venceste. Melhor, tu e o teu pai venceram. Era muito bonito observar (para quem tem olhos sensíveis) quer o profundo amor e a atenção e cuidado que lhe dedicavas quer o orgulho que ele sentia e que lhe explodia no olhar, quando te tinha perto.

A imagem que guardo do senhor Domingos é a do homem alto, forte, com as suas cãs e bigode branco. O patriarca que zela por todos (cumpriu bem a sua missão) e que recebia como ninguém. O senhor que à chegada das visitas, diligentemente, se preocupava para que os estômagos não quedassem vazios. Lá vinha o presunto, o queijo e o bom vinho, enquanto solicitava à sua Alice o pão para acompanhar. Obviamente, não é pelo presunto ou pelo queijo (ainda que fossem bons e soubessem pela vida), mas pelo prazer que víamos que sentia em bem acolher os seus amigos ou os dos filhos. Herdaste-lhe o gosto…

Recordo com especial carinho uma conversa que tive com ele à beira-mar, na prainha do costume. Eram os nossos filhos bem pequenos. A Matilde ainda nem era nascida! Talvez tenha sido, penso que foi mesmo a última viagem do teu pai a tua casa.

Perguntei-lhe sobre os tempos de Angola, a descolonização atabalhoada, a dificuldade que foi recomeçar do zero, reconstruir tudo novamente com muito sacrifício, poupança e trabalho. Apesar de todas as provações que o teu pai teve de ultrapassar, apesar de todos os sacrifícios, não era um homem amargurado nem curvado perante as vicissitudes, pelo contrário. Era de sorriso fácil, de trato agradável, de quem sabe que a vida não existe para nos facilitar a tarefa de a viver, mas que parecia de bem com ela, como quem sabe que se cumpriu.

Impossível não recordar o encontro que não foi lá do seu agrado, mas manteve sempre a compostura. Só o soubemos no dia seguinte, quando confessou a inveja pela carne de porco à alentejana requentada… O que nos rimos! Ou então quando ainda nenhum de nós tinha visto uma nota de 500 euros e ele lança a mão à carteira, à boa moda dos comerciantes, sempre habituados a andar com muito dinheiro e puxa da nota ainda imaculada. Lembro-me de pensar que, naquela altura, o meu salário resumia-se a duas notas daquelas…

Sabes, via o teu pai e lembro-me do meu. Parecia adivinhar, o ano passado, pelo verão, quando quis visitar o teu… Dá-lhe para estas coisas, agora… E eu sei o que é, porque o farejo. Caminha como quem se prepara para a sua despedida do alto dos seus oitenta quatro anos. Nenhum de nós está imune à perda. É a lei da vida. Eles, os velhinhos que partem, aceitam com mais tranquilidade e mais naturalidade que nós. Teremos de aprender a viver com isso… Teremos de saber que a morte faz parte da vida e que enquanto não vem, ela não existe e, quando chega, dormimos o sono longo dos justos.

Um dia, depois de todo o choro e da dor que cobre estes instantes, sobrará a saudade boa, aquela que nos faz sorrir à lembrança das peripécias.

Até sempre, senhor Domingos!

 

Nina M.

 

 

 

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