Memórias
Um
destes dias relembrei vivências de outros tempos, em conversa com os amigos que
ficam. Tempos felizes, porque a inocência não havia sido quebrada, tempos
felizes porque o mundo parecia mais belo do que sinistro. Ele é belo, mas a
humanidade estraga-o. Felizmente, existem seres humanos que conseguem
equilibrar as coisas e fazer-nos sentir que, apesar dos pesares, apesar do
pessimismo, há esperança e luta e a crença de que é possível contribuir para um
mundo melhor…
Não
era preciso pensar sobre isto, naquele tempo… Nem a maturidade, ou melhor, a
falta dela o permitia nem a “nossa tribo” via a feiura. O nosso mundo era
dionisíaco, inocente e belo. Não cabia a maldade. É sobretudo por esta
inocência que guardo memórias tão preciosas.
Obviamente,
que havia coisas menos bonitas, mas não no grupo restrito dos elementos de
sempre. Havia cuidado, carinho, brincadeira, muita ternura recíproca e fui tão
feliz! Não me canso de o repetir e surge-me o verso do Álvaro de Campos “Raiva
de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”… Estranhamente, não desejo
propriamente um recuo temporal, voltar a ter vinte anos. Não quereria, se me
fosse oferecido. Há mais Sónia hoje do que antes… Mais mulher, mais
consciência, mais conhecimento, mais ser, mas não negaria a possibilidade do
eterno retorno… Uma cápsula do tempo e poder voltar a viver certos momentos.
Ser repetidamente eu, há vinte e muitos anos, nas mesmas circunstâncias, com as
mesmas pessoas…
Depois
de muito riso, motivado pela conversa e pelas recordações, surgiu a sombra, o
abalo, a pedra no charco. Vieste ter comigo, Nuno. Não me aparecias há muito e
surgiste-me a sorrir, puerilmente, como era hábito. Veio tudo à memória.
Subíamos a rua das traseiras de minha casa (eu e a Bela). Vínhamos de lá, em
direção ao cu (Café universidade) … Felizes… Ríamos… Quando fomos interpeladas
pelo Missas, de semblante carregado e atónito pela nossa alegria. “Estais-vos a
rir? Não sabeis o que aconteceu?! O Nuno morreu. O Nuno matou-se”.
Era
visível a sua consternação. Petrificamos. Ainda perguntamos se falava a sério…
Atirou-nos zangado que não iria brincar com tal assunto. Calámo-nos. Apressámos
o passo na esperança de que nos desfizessem o engano assim que nos sentássemos
na mesa habitual… Silêncio. Tristeza. Incredulidade. Foste de fim de semana e
não regressaste.
Porquê,
Nuno? Era a pergunta que os teus pais nos colocavam, a suplicar pela verdade,
mesmo que fosse dolorosa. Queriam uma explicação. Precisavam dela.
Perguntavam-nos se andarias na droga… Afirmávamos que não. Nunca nenhum de nós
te viu ou te soube metido nessas coisas. Pesou não ter resposta. Pesou ver-lhes
o desespero. Nenhum de nós sabia o motivo. Nenhum de nós era capaz de o
explicar. Nenhum de nós te soube mal… Ou fomos nós pouco perspicazes e pouco
observadores ou foste tu muito bom ator… Sempre me pareceste bem-disposto e
alegre como todos os outros… A pergunta ficará sempre por responder. Não
deixaste qualquer explicação e foste embora. Sei que não quis que mais alguém próximo
de mim partisse dessa forma. Mágoa é constatar que nenhum de nós foi suficiente
para ti. A nenhum confiaste a tua angústia e a tua dor. Talvez fôssemos
demasiado leves para o peso que transportavas contigo. Foram dias difíceis…
A
viagem para a Guarda, para as tuas exéquias… Trajados, solenes e contritos.
Choro e desespero. Tudo quanto guardo desse dia.
Prefiro
as outras memórias, as dos risos partilhados, das caminhadas até à cantina e à Metrópolis.
Pergunto-me quantas vezes estarias em dor sem que o soubéssemos, sem que o pudéssemos
adivinhar… Não sei porque tardei a prestar-te homenagem se tantas vezes me lembrei
de ti. Decidiste partir sem explicação. Sem olhar para trás, num voo sem retorno.
Não viste nada que a vida te pudesse oferecer, apesar da tua juventude. No entanto,
nunca te sentimos deprimido. Nem triste, sequer…
Porquê,
Nuno?!
Nina
M.
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