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sábado, 2 de julho de 2022

Crónica de Maus Costumes 284

 

Leituras e escrita

                Por estes dias, fui ouvir o João Tordo que promove o seu último livro, “Naufrágio”. Gostei do rapaz. Simples, de conversa fácil, sai-lhe como as cerejas e às tantas já não se lembra a razão que o levou até àquele ponto da reflexão e questiona o público: “mas isto foi a propósito de quê? Já me perdi.” Não se perdeu nada. Fez foi uns tantos desvios pelo caminho, mas todos eles relacionados com a linha de raciocínio que seguia.

            Estou em dívida com o João, porque ainda não li nada dele e a cada escolha que se faz, há uma infinidade de outras opções que ficam à porta. Ainda não tinha chegado a altura do João. Será durante este verão. Fica a promessa. Depois, direi se me agradou. Não comprei o seu último, mas aquele que foi o seu terceiro livro e que lhe garantiu um prémio Saramago. À partida, a atribuição desta distinção é garantia de qualidade, mas nisto dos livros, às vezes compra-se num ato de fé, que logo se desvanece para passarmos logo a ser como o São Tomé e a precisar de ler para crer.

            Gostei de ouvir o João Tordo, já que durante a sua preleção, constatei que havia algumas referências literárias comuns. Assim, quando fala do papel que a Literatura pode ter para o desenvolvimento da empatia e da tolerância e cita o exemplo de “Lolita”, de Vladimir Nabokov, para explicar que ao ler a narrativa terrível sobre o pederasta que se aproveita da fragilidade da criança de onze ou doze anos que perdeu a sua mãe e que abusa dela ao longo de anos, impedindo-a de viver uma adolescência dentro da normalidade, o leitor, apesar de condenar e de repudiar veementemente o comportamento asqueroso de Humbert Humbert, não deixa de sentir empatia, palavra sobre a qual o escritor soube pegar no étimo grego “pathos” – sofrimento - para a esmiuçar e bem. Tordo expôs, fruto da sua experiência como leitor, exatamente o que eu senti quando li a obra referenciada. Dei comigo a pensar sobre como podia estar a sentir compaixão pelo pedófilo que acabou preso por homicídio e não por abuso sexual, sabendo que é o crime que mais me horroriza, desde logo porque sou mãe de dois, um dos quais uma menina, precisamente na faixa etária dos onze. Não gosto sequer de imaginar poder conhecer alguém capaz de tamanho horror. Não sei do que seria capaz, mas até as entranhas se me revoltam só de o pensar. No entanto, perante a narrativa, perante a fragilidade, a fraqueza, a consciência da personagem que sabia estar a agir mal, mas que não era capaz de controlar o impulso, senti comiseração. Fui capaz de desejar justiça, mas não vingança. O mesmo aconteceu com o Raskolnikov, de Dostoiévsky, que comete dois homicídios perfeitos, mas vê-se corroído pela culpa, encontrando a redenção pelo amor e pela fé, junto de Sonja. Ele próprio acaba por confessar o crime e a partir de então, começa a sua reconstrução, a sua regeneração moral e espiritual. Na verdade, Raskolnikov não passa de um homicida que planeou cuidadosamente o assassinato da velha senhoria e que com a chegada inesperada da irmã, se vê obrigado a matar esta também. Também aqui, ao longo da ação, sentimos empatia e comiseração pelo homicida descarado, por um lado subjugado pelo remorso e, por outro, vaidoso pela prática do crime perfeito. Acompanhamo-lo ao longo da narração e sentimos o seu arrependimento, chegamos a desejar que não seja efetivamente apanhado, porque a sua consciência já o condena o suficiente…

            Com estes dois exemplos, João Tordo agarrou-me. Ainda falou de “Ulisses”, de Joyce, mas não apreciou vivamente, apesar de reconhecer (como todos os críticos) a mestria do autor, revelando, sem pudor, que não estava a perceber nada daquilo (todos os que conheço e que o leram apresentam o mesmo queixume), mas que a leitura lhe valeu por uma determinada passagem que apreciou. Não segurei a minha curiosidade e perguntei-lhe com que idade tinha lido “Ulisses”. Respondeu-me que com cerca de trinta. Franzi a testa e disse-lhe que tinha sido avisada para não o ler antes dos quarenta e que até ao momento ainda não tinha tido o atrevimento de o fazer… Arranquei uma gargalhada à plateia, mas não sei se saberiam exatamente da dificuldade de que falamos. Desconfio, inclusive, que muitos dos presentes nem o “Lolita” nem o “Crime e Castigo” terão lido e é uma pena, porque sem essa leitura, não podem compreender com exatidão o alcance das palavras do escritor. Sei que terei de o fazer (ler “Ulisses”), algum dia, mas sei que não vai ser fácil… Depois de tudo isto e a propósito de Saramago, porque esta geração de autores, que são da minha idade ou próximos, são “filhos” do nosso génio literário, Tordo fala da Bíblia e do facto de gostar das narrativas, das histórias que ela contém, mesmo não sendo ele propriamente crente. Volta a uma referência que também conheço, mas que não possuo, que é a Bíblia traduzida pelo professor Frederico Lourenço, um enorme académico da Universidade de Coimbra, que nos contempla com as suas traduções de Homero e de Virgílio e nos encanta com as suas notas de explicação linguística. Dele tenho a “Odisseia”, de Homero. Fiquei, naturalmente, a salivar pela Bíblia, como o cão de Pavlov…

            Gostei de ouvir o João Tordo. Tive pena de só ter tido espaço para lhe fazer uma pergunta, uma vez que já se fazia tarde e o rapaz tinha autógrafos para assinar, mas soube-me a pouco, porque senti que poderia estar à conversa bem mais tempo. Muito gentilmente, pela altura do autógrafo, ainda me agradeceu a pergunta colocada, no fim da palestra. Quase me apeteceu dizer-lhe: Ó homem, perguntas é comigo! Teria mais algumas para lhe fazer…

 

Nina M.

 

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