Leituras e escrita
Por estes dias, fui ouvir o João
Tordo que promove o seu último livro, “Naufrágio”. Gostei do rapaz. Simples, de
conversa fácil, sai-lhe como as cerejas e às tantas já não se lembra a razão
que o levou até àquele ponto da reflexão e questiona o público: “mas isto foi a
propósito de quê? Já me perdi.” Não se perdeu nada. Fez foi uns tantos desvios
pelo caminho, mas todos eles relacionados com a linha de raciocínio que seguia.
Estou em dívida com o João, porque
ainda não li nada dele e a cada escolha que se faz, há uma infinidade de outras
opções que ficam à porta. Ainda não tinha chegado a altura do João. Será
durante este verão. Fica a promessa. Depois, direi se me agradou. Não comprei o
seu último, mas aquele que foi o seu terceiro livro e que lhe garantiu um
prémio Saramago. À partida, a atribuição desta distinção é garantia de
qualidade, mas nisto dos livros, às vezes compra-se num ato de fé, que logo se
desvanece para passarmos logo a ser como o São Tomé e a precisar de ler para
crer.
Gostei de ouvir o João Tordo, já que
durante a sua preleção, constatei que havia algumas referências literárias
comuns. Assim, quando fala do papel que a Literatura pode ter para o
desenvolvimento da empatia e da tolerância e cita o exemplo de “Lolita”, de
Vladimir Nabokov, para explicar que ao ler a narrativa terrível sobre o
pederasta que se aproveita da fragilidade da criança de onze ou doze anos que
perdeu a sua mãe e que abusa dela ao longo de anos, impedindo-a de viver uma
adolescência dentro da normalidade, o leitor, apesar de condenar e de repudiar
veementemente o comportamento asqueroso de Humbert Humbert, não deixa de sentir
empatia, palavra sobre a qual o escritor soube pegar no étimo grego “pathos” –
sofrimento - para a esmiuçar e bem. Tordo expôs, fruto da sua experiência como
leitor, exatamente o que eu senti quando li a obra referenciada. Dei comigo a
pensar sobre como podia estar a sentir compaixão pelo pedófilo que acabou preso
por homicídio e não por abuso sexual, sabendo que é o crime que mais me
horroriza, desde logo porque sou mãe de dois, um dos quais uma menina,
precisamente na faixa etária dos onze. Não gosto sequer de imaginar poder
conhecer alguém capaz de tamanho horror. Não sei do que seria capaz, mas até as
entranhas se me revoltam só de o pensar. No entanto, perante a narrativa,
perante a fragilidade, a fraqueza, a consciência da personagem que sabia estar
a agir mal, mas que não era capaz de controlar o impulso, senti comiseração.
Fui capaz de desejar justiça, mas não vingança. O mesmo aconteceu com o Raskolnikov,
de Dostoiévsky, que comete dois homicídios perfeitos, mas vê-se corroído pela
culpa, encontrando a redenção pelo amor e pela fé, junto de Sonja. Ele próprio
acaba por confessar o crime e a partir de então, começa a sua reconstrução, a
sua regeneração moral e espiritual. Na verdade, Raskolnikov não passa de um
homicida que planeou cuidadosamente o assassinato da velha senhoria e que com a
chegada inesperada da irmã, se vê obrigado a matar esta também. Também aqui, ao
longo da ação, sentimos empatia e comiseração pelo homicida descarado, por um
lado subjugado pelo remorso e, por outro, vaidoso pela prática do crime
perfeito. Acompanhamo-lo ao longo da narração e sentimos o seu arrependimento,
chegamos a desejar que não seja efetivamente apanhado, porque a sua consciência
já o condena o suficiente…
Com estes dois exemplos, João Tordo
agarrou-me. Ainda falou de “Ulisses”, de Joyce, mas não apreciou vivamente,
apesar de reconhecer (como todos os críticos) a mestria do autor, revelando,
sem pudor, que não estava a perceber nada daquilo (todos os que conheço e que o
leram apresentam o mesmo queixume), mas que a leitura lhe valeu por uma
determinada passagem que apreciou. Não segurei a minha curiosidade e
perguntei-lhe com que idade tinha lido “Ulisses”. Respondeu-me que com cerca de
trinta. Franzi a testa e disse-lhe que tinha sido avisada para não o ler antes
dos quarenta e que até ao momento ainda não tinha tido o atrevimento de o
fazer… Arranquei uma gargalhada à plateia, mas não sei se saberiam exatamente
da dificuldade de que falamos. Desconfio, inclusive, que muitos dos presentes
nem o “Lolita” nem o “Crime e Castigo” terão lido e é uma pena, porque sem essa
leitura, não podem compreender com exatidão o alcance das palavras do escritor.
Sei que terei de o fazer (ler “Ulisses”), algum dia, mas sei que não vai ser
fácil… Depois de tudo isto e a propósito de Saramago, porque esta geração de
autores, que são da minha idade ou próximos, são “filhos” do nosso génio literário,
Tordo fala da Bíblia e do facto de gostar das narrativas, das histórias que ela
contém, mesmo não sendo ele propriamente crente. Volta a uma referência que
também conheço, mas que não possuo, que é a Bíblia traduzida pelo professor
Frederico Lourenço, um enorme académico da Universidade de Coimbra, que nos
contempla com as suas traduções de Homero e de Virgílio e nos encanta com as
suas notas de explicação linguística. Dele tenho a “Odisseia”, de Homero.
Fiquei, naturalmente, a salivar pela Bíblia, como o cão de Pavlov…
Gostei de ouvir o João Tordo. Tive
pena de só ter tido espaço para lhe fazer uma pergunta, uma vez que já se fazia
tarde e o rapaz tinha autógrafos para assinar, mas soube-me a pouco, porque
senti que poderia estar à conversa bem mais tempo. Muito gentilmente, pela altura
do autógrafo, ainda me agradeceu a pergunta colocada, no fim da palestra. Quase
me apeteceu dizer-lhe: Ó homem, perguntas é comigo! Teria mais algumas para lhe
fazer…
Nina M.
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