Os artistas e a lei do mercado
No
outro dia ouvia a artista Zélia Duncan a recitar a poesia “Vida em Branco”e
considerei tão interessante e verdadeiro que partilhei, nesta mesma rede
social.
O poema é uma provocação a quem
julga que o artista nada faz e ganha muito. Reproduzo-o na íntegra, por ser tão
bom.
Então me devolve os momentos bons./ Os versos roubados de nós./As cores
do seu caminho./ Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som./ Joga
fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim
como a sua cabeça./Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio./ Armas para
dormir, nenhuma canção de ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora
incerta para mandar ou receber rajadas/ Você não precisa de artistas?/ Então
fecha os olhos, mora no breu./ Esquece o que a arte te deu, finge que não te
deu nada./ Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa./ Nem Van Gogh,
nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim/ Você vai rimar com números./ Vai
dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada./ E esse vazio no seu peito
não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar/ Você não precisa de
artistas?/ Então nos perca de vista./ Nos deixe de fora desse seu mundo
perverso, sem graça, sem alma./ Bom dia para quem tem alma.
Infelizmente, há quem não compreenda
a importância da arte e do artista para a alma humana, no entanto, todos
andamos com versos roubados que não nos pertencem, mas que abrigamos em nós.
Todos contemos melodias alheias que trauteamos como nossas e que deturpamos com
acréscimos ou cortes de partes de que não recordamos. Todos nos rimos com as
rábulas inventadas por outros e aqueles que têm mais jeito para a representação
vão fazendo imitações caseiras do que viram para se poderem rir até às
lágrimas. Todos já retivemos uma imagem que não foi desenhada nem pintada e nem
esculpida por nós, mas que não largamos da retina. Todos já rimos ou chorámos
com um filme ou um bom livro! Vivemos plenos das recriações alheias, mas há
quem julgue poder viver sem elas! Como?! Se depois do amor, a arte é a única
coisa que nos pode preencher e dar cor?!Fazer com que os nossos dias ganhem
sentido! Duncan tem razão. Sem as mais variadas expressões artísticas, a vida
do Homem seria em branco. Assim, o artista é um tratador de almas! Como lhes
sou grata pelo seu trabalho!
Há algumas semanas, houve muita
gente incomodada pelo salário que o Ricardo Araújo Pereira vai ganhar para o
novo canal que o contratou. O argumento usado era o de que num país pobre,
haver um salário de cinquenta mil euros mensais seria uma ofensa! Ganhar tanto
para dizer meia-dúzia de parvoíces, alegava-se. Naturalmente, não faltou gente
a aplaudir. Ora, interrogo-me se o Ricardo será o único a auferir um salário milionário
num canal privado, logo, à partida, não financiado pelos contribuintes? Há
outros comunicadores que ganham bem mais com um trabalho menos meritório, na
minha opinião. Fico perplexa com a inveja mesquinha dirigida ao Ricardo e
interrogo-me o motivo que leva a não haver tal agastamento com os jogadores de
futebol, por exemplo!
Se o canal televisivo está disposto
a investir no talento do humorista é porque sabe que vai ter retorno com as
audiências! Significa que o artista desempenha bem o papel para o qual foi
contratado! Estamos numa economia de mercado, logo, se lhe surge esta
oportunidade, é legítimo que não a desperdice!
No
mundo ideal, as diferenças entre o salário deste artista e o vulgar cidadão não
seriam tão desagradavelmente acentuadas e todos viveriam melhor, no entanto, o
mundo é feito de assimetrias injustas e, certamente, não será o Ricardo que
deverá pagar a fatura!
Sou, como já se deve ter percebido,
apreciadora do trabalho do humorista. É um homem inteligente, bastante culto,
capaz de produzir um humor assertivo, sagaz e absolutamente brilhante! O
Ricardo tem piada sem cair na brejeirice. Apresenta um trabalho que o obriga a
devorar livros, a estar sempre a aprender, a manter-se sempre atento à
atualidade e ainda precisa de saber refletir, pensar bem e ser capaz de falar
de coisas sérias com graça! O Ricardo é um artista completo e, certamente, as
rábulas de cinco ou dez minutos apresentadas ter-lhe-ão custado imenso
trabalho!
Quando se vai aprender a respeitar o
trabalho intelectual? Obviamente, o trabalho físico não é menos meritório e nem
menos importante, mas é bom que se entenda que o que os artistas fazem também é
trabalho! Não são eles que ganham demasiado, mas antes o vulgar cidadão que
ganha pouquíssimo. A lógica deverá ser invertida: lutemos por melhores salários
de quem ganha poucochinho!
Para os que consideram que o Ricardo
tem uma profissão fácil e que ganha demasiado, sugiro que se sentem e tentem fazer
um programa com um alinhamento semelhante! Criem os textos, as personagens, imprimam-lhes
vida e uma personalidade, as suas idiossincrasias e criem um contexto com objetivo
satírico. Se forem bem-sucedidos, desde já os meus parabéns. Enviem-me o texto,
que o lerei com deleite e prometo não desdenhar. Se concluírem que afinal não será
assim tão simples, então, reconheçam a injustiça e sentem-se tranquilos. Encham
os vossos espíritos com o humor de Araújo Pereira e sobretudo reflitam bastante
sobre a sátira apresentada, sempre muito oportuna.
Deixem o Ricardo usar a sua criatividade
e aproveitem…
Não é que além de inteligente, culto, bom comunicador,
dono de um sentido de humor extraordinário, o rapaz ainda tem um “je ne sais quoi”?!
De facto, a riqueza anda mal distribuída!
Nina
M.
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