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sábado, 18 de janeiro de 2020

Crónica de Maus Costumes 164


Os artistas e a lei do mercado

            No outro dia ouvia a artista Zélia Duncan a recitar a poesia “Vida em Branco”e considerei tão interessante e verdadeiro que partilhei, nesta mesma rede social.
            O poema é uma provocação a quem julga que o artista nada faz e ganha muito. Reproduzo-o na íntegra, por ser tão bom.

Então me devolve os momentos bons./ Os versos roubados de nós./As cores do seu caminho./ Arranca o rádio do seu carro, destrói a caixa de som./ Joga fora os instrumentos e todos aqueles quadros, deixa as paredes em branco, assim como a sua cabeça./Seu cérebro cimento, silêncio, cheio de ódio./ Armas para dormir, nenhuma canção de ninar, e suas crianças em guarda, esperando a hora incerta para mandar ou receber rajadas/ Você não precisa de artistas?/ Então fecha os olhos, mora no breu./ Esquece o que a arte te deu, finge que não te deu nada./ Nenhum som, nenhuma cor, nenhuma flor na sua blusa./ Nem Van Gogh, nem Tom Jobim, nem Gonzaga, nem Diadorim/ Você vai rimar com números./ Vai dormir com raiva, e acordar sem sonhos, sem nada./ E esse vazio no seu peito não tem refrão para dar jeito, não tem balé para bailar/ Você não precisa de artistas?/ Então nos perca de vista./ Nos deixe de fora desse seu mundo perverso, sem graça, sem alma./ Bom dia para quem tem alma.

            Infelizmente, há quem não compreenda a importância da arte e do artista para a alma humana, no entanto, todos andamos com versos roubados que não nos pertencem, mas que abrigamos em nós. Todos contemos melodias alheias que trauteamos como nossas e que deturpamos com acréscimos ou cortes de partes de que não recordamos. Todos nos rimos com as rábulas inventadas por outros e aqueles que têm mais jeito para a representação vão fazendo imitações caseiras do que viram para se poderem rir até às lágrimas. Todos já retivemos uma imagem que não foi desenhada nem pintada e nem esculpida por nós, mas que não largamos da retina. Todos já rimos ou chorámos com um filme ou um bom livro! Vivemos plenos das recriações alheias, mas há quem julgue poder viver sem elas! Como?! Se depois do amor, a arte é a única coisa que nos pode preencher e dar cor?!Fazer com que os nossos dias ganhem sentido! Duncan tem razão. Sem as mais variadas expressões artísticas, a vida do Homem seria em branco. Assim, o artista é um tratador de almas! Como lhes sou grata pelo seu trabalho!
            Há algumas semanas, houve muita gente incomodada pelo salário que o Ricardo Araújo Pereira vai ganhar para o novo canal que o contratou. O argumento usado era o de que num país pobre, haver um salário de cinquenta mil euros mensais seria uma ofensa! Ganhar tanto para dizer meia-dúzia de parvoíces, alegava-se. Naturalmente, não faltou gente a aplaudir. Ora, interrogo-me se o Ricardo será o único a auferir um salário milionário num canal privado, logo, à partida, não financiado pelos contribuintes? Há outros comunicadores que ganham bem mais com um trabalho menos meritório, na minha opinião. Fico perplexa com a inveja mesquinha dirigida ao Ricardo e interrogo-me o motivo que leva a não haver tal agastamento com os jogadores de futebol, por exemplo!
            Se o canal televisivo está disposto a investir no talento do humorista é porque sabe que vai ter retorno com as audiências! Significa que o artista desempenha bem o papel para o qual foi contratado! Estamos numa economia de mercado, logo, se lhe surge esta oportunidade, é legítimo que não a desperdice!
No mundo ideal, as diferenças entre o salário deste artista e o vulgar cidadão não seriam tão desagradavelmente acentuadas e todos viveriam melhor, no entanto, o mundo é feito de assimetrias injustas e, certamente, não será o Ricardo que deverá pagar a fatura!
            Sou, como já se deve ter percebido, apreciadora do trabalho do humorista. É um homem inteligente, bastante culto, capaz de produzir um humor assertivo, sagaz e absolutamente brilhante! O Ricardo tem piada sem cair na brejeirice. Apresenta um trabalho que o obriga a devorar livros, a estar sempre a aprender, a manter-se sempre atento à atualidade e ainda precisa de saber refletir, pensar bem e ser capaz de falar de coisas sérias com graça! O Ricardo é um artista completo e, certamente, as rábulas de cinco ou dez minutos apresentadas ter-lhe-ão custado imenso trabalho!
            Quando se vai aprender a respeitar o trabalho intelectual? Obviamente, o trabalho físico não é menos meritório e nem menos importante, mas é bom que se entenda que o que os artistas fazem também é trabalho! Não são eles que ganham demasiado, mas antes o vulgar cidadão que ganha pouquíssimo. A lógica deverá ser invertida: lutemos por melhores salários de quem ganha poucochinho!
            Para os que consideram que o Ricardo tem uma profissão fácil e que ganha demasiado, sugiro que se sentem e tentem fazer um programa com um alinhamento semelhante! Criem os textos, as personagens, imprimam-lhes vida e uma personalidade, as suas idiossincrasias e criem um contexto com objetivo satírico. Se forem bem-sucedidos, desde já os meus parabéns. Enviem-me o texto, que o lerei com deleite e prometo não desdenhar. Se concluírem que afinal não será assim tão simples, então, reconheçam a injustiça e sentem-se tranquilos. Encham os vossos espíritos com o humor de Araújo Pereira e sobretudo reflitam bastante sobre a sátira apresentada, sempre muito oportuna.
            Deixem o Ricardo usar a sua criatividade e aproveitem…
 Não é que além de inteligente, culto, bom comunicador, dono de um sentido de humor extraordinário, o rapaz ainda tem um “je ne sais quoi”?! De facto, a riqueza anda mal distribuída!
Nina M.

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