A Criação de Torga
Quem me conhece
sabe que gosto imenso do trabalho de Miguel Torga. Já tenho referido imensas
vezes que continua a ser um escritor menos apreciado e menos valorizado do que
o que deveria.
Sempre que falo
de Torga com alguém, eu refiro o livro que para mim é a sua obra-prima: “A
Criação do mundo”. Trata-se da sua autobiografia romanceada e que é uma
verdadeira delícia! Sinto-me feliz por ter convertido mais alguém que se rendeu
ao romance. Talvez os académicos prefiram os dezasseis volumes da diarística torguiana,
onde podemos encontrar no meio das reflexões diárias, poemas abandonados, como
se tivessem sido feitos à pressa, entre consultas, e não merecessem inclusão
nas suas coletâneas de poesia. No entanto, a narrativa onde se expõe menino,
jovem e adulto prende-nos desde o início até ao seu final. É uma autobiografia,
logo estará pejada de subjetividade, dirão. É verdade, mas não minimiza o valor
literário. A sua capacidade única de expor a sincera rudeza transmontana.
Aprendi a admirar o homem por detrás do escritor. Talvez seja um dos motivos do
meu apreço. Torga não tinha uma personalidade fácil. Não se vergava à
facilidade das conveniências. Era íntegro e pouco ou nada maleável. Imagino que
tais características lhe possam ter originado epítetos menos agradáveis. Havia
nele um profundo sentido do dever, a responsabilidade acrescida de quem foi
obrigado a maturar-se rapidamente. A pobreza em que viveu, a dureza do espírito
arreigado à terra que o viu nascer é notória. A planta que escolheu para
pseudónimo (torga) explica-o. As suas raízes fundas permitem que se agarre à
terra com a força da esperança na sobrevivência. Assim foi com o homem, agarrado
à determinação de vencer na vida. A vontade férrea de evoluir, não se vergando
à probabilidade do fracasso, não deixando que o espaço geográfico e a descrença
derrubassem o desejo de ser quem quis. Foi criado de servir no Porto, partiu
cedo para o Brasil. Demasiado cedo. Criança ainda. No Douro sulcado de vinha
não havia tempo para devaneios e ou havia dinheiro e os meninos podiam estudar
ou se trabalhava na lavoura, como todos os outros, sem grandes ambições ou
sonhos. Pareciam nascer já com a resignação sábia de quem aceita o seu destino,
com a crença de que não precisavam mais do que o seu quinhão de terra e a imensidão
das montanhas para poderem viver. Torga contrariou a ideia. Teimoso, não
aceitava placidamente a marca da miséria. Sabia-se e conhecia o seu potencial,
refutava a desigualdade. O filho do lavrador merecia a mesma oportunidade que o
filho do Senhor doutor. Acreditou desde sempre no mérito e no esforço pessoal.
Foi com ambos que venceu e se superou. Quem conhece a sua história, não
permanece indiferente e dificilmente olha para si sem vergonha. Um exemplo de
persistência, de resiliência e de superação. Depois de uma leitura destas
ficamos sem ar e sem desculpa. Percebemos o quão burgueses somos e se é verdade
que é benéfico ninguém precisar de passar pelo mesmo, também não é menos
verdadeiro que desconhecemos o significado real das dificuldades e da pobreza.
Percebemos que a miséria faz a resiliência. Miguel Torga precisou de duas
coisas para singrar: a vontade e a inteligência. A montanha curva-se diante do
seu nome e da sua vida enorme!
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