Aos Dorian Gray do nosso tempo
Como já esclareci, muito de vez em
quando, fazem-me pedidos. Este surgiu na sequência de uma conversa a propósito
do livro “O Retrato de Dorian Gray”, cuja leitura recomendo vivamente.
Dorian Gray teve a característica
única de se manter sempre jovem, sem uma única ruga, durante o tempo que viveu.
Evidentemente, esse milagre não se operou com qualquer elixir da juventude,
ainda hoje por descobrir, mas porque o desejo de permanecer eternamente jovem e
passar todos os sinais de velhice ao seu retrato, pintado pelo seu amigo Basil,
foi atendido. “Não há almoços de graça”, diz David Lodge e terá a sua razão.
Obviamente, esta concessão teve um preço.
Dorian era um jovem de rara
beleza, oriundo de uma família aristocrática, culto, bem-educado e frequentador da melhor
sociedade inglesa do século XIX. A acompanhar esta beleza, havia a sua
ingenuidade e pureza. Desta forma, Dorian Gray representava para o seu amigo
pintor a máxima expressão de beleza, que o inspirava na sua criação. Basil
tornou-se melhor artista influenciado pela presença de Dorian. Este, para Basil Hallward representa “a harmonia entre a
alma e o corpo”. Está patente a interpretação platónica de beleza. O belo como
sinónimo de bom. Para ser belo tem de ser bom e puro. A beleza merecedora de
ser contemplada e como caminho de ascensão do espírito. Assim entendia o pintor
e Gray exercia um fascínio imenso sobre ele sem se aperceber. Ao ver o seu
retrato pintado e toda a sua alma nele exposto, o próprio Dorian se apaixonou
pela sua imagem. A partir desse momento, Mr. Gray, à medida que cresce, vai-se
tornando cada vez mais narcísico. Apaixonado pela sua própria beleza, formula o
desejo ou prece de se manter eternamente jovem, envelhecendo o retrato por si.
O envelhecimento acontece sempre que Gray não tem a postura mais adequada. De
cada vez que erra e prejudica outros, surgem rugas e trejeitos desagradáveis na
fisionomia do retrato, ou seja, o Dorian retratado envelhece à medida que o Dorian
humano vai perdendo a sua pureza de alma. Para piorar a situação, Lord Henry,
também amigo de Basil, mas homem cínico e desassombrado da vida, que ocupava o
tempo a estudar a psicologia humana, fascinado pela beleza de Gray, vai ser um
influência nefasta, na medida que o incentiva a explorar e usar a sua beleza
como arma de sedução. Por piores que fossem as atrocidades que Gray cometesse,
dificilmente acreditavam que ele fosse capaz de tal postura, já que o seu rosto
cândido excluía a maldade. No entanto, Dorian evolui com as teorias filosóficas
de Henry. A literatura por ele aconselhada e as suas frases lapidares
ocupam-lhe o espírito: “O objetivo da vida é o desenvolvimento próprio, a total
perceção da própria natureza, é para isso que cada um de nós vem ao mundo. (…)
O temor à sociedade, que é a base da moral, e o temor a Deus, que é o segredo
da religião, são as duas coisas que nos governam. A única maneira de nos
livrarmos de uma tentação é cedermos-lhe. Se lhe resistimos a nossa alma
adoece. É também no cérebro, e apenas neste, que ocorrem os grandes pecados do
mundo. (…) Viva a vida maravilhosa que há em si! Que nada em si se perca!
Procure sempre novas sensações. Não tenha medo de nada… um novo hedonismo, é
disso que o nosso século precisa.”
Desta forma, Dorian Gray caminha
ao longo da vida por trilhos sinuosos da vaidade e da arrogância de quem
acredita que tudo pode e que as suas vontades ou caprichos são para serem realizados,
independentemente das consequências. Afinal, ninguém detetaria o traço do
pecado e da má-conduta na sua juventude inalterável. A consciência de Gray
foi-se degenerando num apelo urgente das sensações, acabando por cometer um
crime hediondo. Porém, foi também a consciência das atrocidades visíveis no
retrato que a determinado momento o faz querer recuperar a alma perdida e
passar a ser bom. Demasiado tarde. O hedonismo prometido de Henry, afinal, não
chegara. A beleza física não fora, como julgara, suficiente. A extrema vaidade
conduziu-o à perda de si. Afinal, a perceção clara da sua natureza, a que tanto
o instigara o amigo só lhe trouxe o horror e o grotesco. Pretendendo salvar-se,
perdeu-se na escuridão do caminho.
Olhando para a mensagem veiculada
pelo excecional Oscar Wilde, é impossível não estabelecer correlações com os
comportamentos hodiernos. Esta semana, as redes sociais foram invadidas pela
notícia da hospitalização de Ângelo Rodrigues, o ator, por alegadamente ter
usado anabolizantes, em busca do corpo ideal, o que terá provocado um ataque
cardíaco. No momento, o jovem luta pela vida, após várias cirurgias. Espero que
o rapaz saia com vida e ileso da situação, mas gostaria que todos os Dorian
deste mundo parassem um pouco para refletir. O que tornava Gray fascinante era
a sua beleza, porque como entendia Basil, a alma e o corpo estavam em harmonia.
A chama foi-se extinguindo, à medida que se vendeu e se foi perdendo de si,
mantendo como único foco o vivenciar tudo de todas as maneiras, sem olhar a
meios ou prejuízos, conquanto permanecesse exteriormente belo. A sociedade
também assim o exigia de certa forma e o seu amigo até o incentivava. Não
faltam também os Lord Henry desta era, vencidos pelo cinismo, que insistem em
valorizar o que tem menos importância. Beleza sem alma extingue-se. Todos
viemos com prazo de validade, qual a necessidade de o encurtar em nome de um
ideal que não se justifica?! O corpo belo não será mais poupado à corrosão do
que o menos harmonioso! Provavelmente, morrendo de velhice, já nem será tão
belo assim! Somos nada. Apenas uma pequena luz intermitente que um dia se
apagará. Por que motivo haverá a necessidade extrema de contrariar a natureza e
não aceitar a maturação da alma e dos corpos? Obviamente, não significa que não
se possa ter alguma vaidade, gostar de estar e de se sentir bem com o corpo,
ter os cuidados que se merece… Bem diferente de comprometer a nossa saúde e a
nossa vida em nome de uma característica efémera e artificial. Seria tão bom
que se investisse tanto na alma e no intelecto quanto no corpo! Talvez dessa
forma se conseguisse alcançar a almejada civilização, onde todos os seres
coabitassem harmoniosamente, onde não houvesse miséria, mas equidade social!
Talvez por isto valesse a pena
arriscar e injetar algumas substâncias! O resto… Apenas ufania sem esmero e vã
glória feita nostalgia de um dia ter sido belo!
Nina M.
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