Ativismo necessário
Hoje, é Dia da
Mulher. Quando se precisa de um dia para comemorar seja o que for é sinal de que
as coisas ainda não são o que deveriam ser.
Casualmente,
ouvi uma entrevista feita a Maria Teresa Horta e foi uma feliz coincidência. A
poetisa, escritora, jornalista e ativista nasceu a 20 de maio de 1937 e morreu a
4 de fevereiro do corrente ano. É fundamentalmente conhecida pela sua poesia e
pelas Novas Cartas Portuguesas, escritas a três mãos, pelas três Marias,
juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa. As três autoras
foram processadas e julgadas, em 1972, por atentado ao pudor e aos bons costumes,
numa época sombria, cinzenta, da ditadura salazarista. Tiveram a brilhante
ideia de enviar exemplares do livro a Simone de Beauvoir e a Marguerite Duras,
o que lhes granjeou a simpatia internacional e uma sensibilização para a
situação. Novas cartas Portuguesas traçam a história da situação das
mulheres, em particular, e do país, em geral, naqueles anos… A censura não
gostou, obviamente. Porém, já anteriormente, o seu livro poético Minha
Senhora de Mim, tinha custado a Snu Abecassis a ameaça de lhe fechar a
editora caso esta senhora voltasse a publicar fosse o que quer que fosse e
tinha custado à poetisa ameaças de morte telefónicas, o que a levou a retirar o
seu número das listas. Era a poesia erótica de Horta que causava bulício, mas
como a própria afirmou, também Mourão-Ferreira enveredara por esse caminho
antes e não teve quaisquer problemas. O problema era ela ser mulher e
atrever-se a levantar a voz, reclamando um erotismo vivido no feminino. Foi
aplaudida internacionalmente pela coragem porque, nesse tempo, as mulheres eram
desprovidas de vontade. Num certo final de dia, dois homens fizeram-lhe uma
espera e, saídos de um carro, com o qual a tentaram atropelar, espancaram-na. Bateram-lhe
com a cabeça no passeio e foi salva por um cavalheiro que passava e julgou
tratar-se de um assalto. Gritou, afugentando os cobardolas e levou Horta para o
hospital. Dias difíceis, num Portugal tenebroso. A poesia corre-lhe no sangue,
não fosse ela descendente da Marquesa de Alorna. Filha de pai médico e de mãe
aristocrata, é criada numa família profundamente católica, mas as leituras
proibidas, feitas debaixo dos cobertores, principalmente, a leitura de O
Segundo Sexo, de Beauvoir, aos 15 anos e de O Maravilhoso Mundo Novo,
de Huxley, haveria de lhe traçar o caminho. Aos nove anos perdeu a mãe, que se
separou do pai (na época, acusada de abandonar os filhos, quando quis apenas
abandonar o marido) e a avó paterna, que morreria um mês depois, a sua
companheira. Tempos difíceis para a criança que se sentiu perdida. Aos 15 anos,
recusou-se ir à missa com o pai. Depois de conversas com o seu confessor, cujas
respostas não a satisfizeram, diz ao pai que não irá mais, por não acreditar.
Inicialmente, o pai tenta forçá-la e ela cede, mas avisando-o de que não estará
lá com convicção. O pai acaba por aceitar a sua posição e só a proíbe de comentar
com os irmãos. Teresa Horta tinha genes de coragem a correrem-lhe nas veias e
com eles fez a sua vida, mas quando lhe perguntam a razão para ela escrever,
responde: “por paixão”. Tudo o resto… a inquietação, a emoção, o propósito vem
por arrasto.
No
entanto, Maria Teresa Horta não corresponde aos estereótipos que se traçam das
feministas. Obviamente, estereótipos não passam de preconceitos. Desenganem-se,
portanto, se pensam encontrar em Horta uma mulher libertina ou uma lésbica ou
uma mulher que detesta os homens. Não. Horta apenas não tolerava qualquer
discriminação, injustiça ou atestado de incapacidade que se queira atribuir a
uma mulher. Uma mulher como tantas outras, que executa vários papéis: de mãe,
de esposa, de poetisa, de jornalista, de dona de casa, de cozinheira, de avó…
De ativista, defensora dos direitos das mulheres. Esteve casada quarenta anos
com o pai do filho, por quem afirmava a paixão, cozinhava, limpava, passava a
ferro, “faço tudo”, diz. E quando lhe perguntam se gosta, diz que não, que
ninguém gosta dessas tarefas aborrecidas, mas que têm de ser feitas. Gostava de
cozinhar, mas cozinhar todos os dias é um aborrecimento, mas fazia-o. Tem de
ser. Dar-lhe-ia um abraço, se pudesse. Apertado. Teresa reconhece as diferenças
entre homens e mulheres e pedia apenas que elas fossem respeitadas e que as
mulheres fossem vistas como seus iguais.
Não
é a feminista que não pode, não quer ou não aprende a cozinhar ou a tratar da
casa, mas é aquela que trava as lutas que merecem ser travadas. É admirável e
um exemplo de ativismo que vale a pena seguir.
Perguntada
sobre se sentia ainda a discriminação sobre o peso do seu nome, não hesitou em
responder afirmativamente, em falar de recensões que não são feitas aos seus
livros, dos prémios e reconhecimento que recebe e não são divulgados… Um
apagamento, não pelo ataque como outrora, mas pelo silêncio ultrajante para com
uma voz que afirma a liberdade da mulher. Quando questionada sobre o motivo,
responde como um crítico literário, a certa altura, lhe afirmou: “A escrita da Teresa
contesta a família”.
Como
pode a escrita de uma mulher casada durante cerca de quarenta anos, mãe e avó,
contestar a família? Talvez mostre que nem a família é um lugar de paraíso,
muitas vezes, porém, onde está a ofensa e a mentira?
Em
2024, recebeu alguns prémios e foi considerada pela BBC uma das 100 mulheres
mais influentes e inspiradoras do mundo. Não é pouca coisa. 87 anos de uma vida
cheia. É um orgulho.
Nina M.
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