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sábado, 22 de março de 2025

Crónica de Maus Costumes 413

 

Boas memórias

               Arrombaram-me as veias. Deixaram-me duas medalhas negras nos braços. Ainda bem que é inverno e eles andam tapados ou poderia alguém pensar que eu, literalmente, andava a dar na veia… É o que faz ter veias que vestem um número 6 e o exame exigir um cateter 18!

               - Estou a magoar? – perguntava a menina enfermeira, enquanto mexericava na agulha, a tentar apanhar a veia…

- Não - Respondi. Senti-lhe o desalento ao deixar fugir a malandra e a dizer:

               - Não somos maldosas… isto tem de ser assim…

               - Não se preocupe. É normal (tentava tranquilizá-la) … Às vezes, para uma colheita de sangue têm de me picar mais de uma vez… tenho veias fininhas.

               - Não queria dizer-lhe nada para não a assustar, mas a agulha é grossa e tem de ser esta e eu sei que magoa… Vou ter de a picar novamente. Tentar outra vez… As agulhas não lhe metem impressão? – pergunta-me.

               - Não. Não tenho esse problema. Olhe… Já fui mãe duas vezes, portanto…

               - A menina sorri…Pois… Depois de se ter filhos parece tudo mais fácil, não é?

               - Acho que sim… As minha veias não prestam… tem de ter paciência… A conversa ficou por aqui, enquanto pensava comigo que nem boa veia poética tinha a certeza de ter quanto mais das outras… Coitaditas… Fininhas, fundas, mirraditas… Não se veem…

A desgraçada deve ter pensado que seria mais fácil, afinal, nem precisou de me baixar a tensão… Sempre baixas também, nem de me dar medicação para baixar o ritmo cardíaco… 57 pulsações por minuto… Sentadinha, descansada… Tinham de ser as veias a estragar a festa. Por fim, lá encontrou e lá fez o estrago que havia a fazer… Enquanto me punham debaixo do aparelho para o exame de rotina que entenderam que eu devia fazer, o pensamento viajava por vários caminhos… Entendi que era melhor aproveitar o tempo com boas recordações e fosse, talvez, o facto de estar à beira-mar, perto da praia da minha infância, veio-me ao pensamento o episódio que ainda durante a semana tinha narrado aos meus pequenos…

O Sininho (não sei a origem da alcunha), na verdade, o senhor é Meireles. Bem… O Sininho, que tinha uma mercearia e que era amigo dos meus pais, vendia uma broa maravilhosa, que sempre me oferecia, enquanto o meu pai esperava pela minha mãe, que era vogal na Junta de Freguesia. Ela não conduzia, apesar de encartada, e o meu pai fazia de seu motorista. Esperava que os trabalhos acabassem, mesmo ao lado da junta, na mercearia do Sininho. Eu acompanhava-o muitas vezes. Acompanhava muito o meu pai, em pequena. Também entrava com ele para o estádio do Mata Real, aos domingos à tarde… Bem… Certo verão, o Sininho convenceu o meu pai a levar a sua carrinha, de três lugares à frente e fechada atrás. Era uma carrinha para transporte de mercadoria… Pois bem, o Sininho convenceu o meu pai a levar os filhos dele e a esposa e também a nós e à minha mãe para a praia. Quinze dias de praia, no mês de julho, a fazer o trajeto entre Paços de Ferreira e Mindelo, fechados numa carrinha, bem agarrados às grades, porque as curvas da Agrela e de Guilhabreu não eram para meninos! Aquilo era uma galhofa, lá atrás… Um bando de canalha… O Sininho tinha cinco filhos e nós éramos três… Sentados em cadeiras agarrados aos ferros e uma risada quando um, mais desprevenido deslizava ao sabor de uma curva… Não sei como não havia enjoos…

Ao recordar o episódio, os meus filhos arregalavam os olhos… Eles são do tempo das cadeirinhas, bem apertados e sem bulir para não correrem o risco de serem cuspidos…

- E vocês iam assim? - perguntam espantados.

- Claro – afianço – e quando era no carro do avô, em vez de cinco cabíamos oito! Não havia obrigatoriedade de cintos atrás e a canalha ia no meio das pernas dos adultos e um miúdo, no banco da frente, com a avó Irene, normalmente, o mais pequeno.

Riem-se que nem perdidos e dizem que era uma “ciganada” e que éramos pobres. E eu só me lembro de Caco Antibes no “Sai de baixo”: Detesto pobre! Então, quando sabem que a avó levava comida de prato, mesa, cadeiras, talheres, copos de vidro, enfim… Casa montada para a praia, ficam incrédulos e questionam-se como pode alguém levar arroz e carne para comer na praia…

- Não era mais fácil ir a um restaurante? – Querem saber.

- Seria. Muito mais fácil! Seria também muito mais caro! Não havia dinheiro. Ou assim ou não havia praia e o médico aconselhava praia para as crianças, por isso, a avó, num sacrifício tremendo, às seis da manhã, tratava de acabar o almoço, que tinha deixado adiantado, no dia anterior, depois de lavar a loiça do almoço, e de fazer o jantar desse mesmo dia, no final de um dia de praia! A diversão era só para a pequenada. Para os adultos seria um tormento! Ah! E tormento também era acordar todos os dias às sete da manhã com o avô a cantar, na casa de banho, enquanto desfazia a barba e tratava da sua higiene pessoal, para nos ir acordando. Lembro-me sempre do quão penosos era… A motivação era a praia de que tanto gostava e lá me levantava a custo, porque isto de levantar cedo nunca me deixou feliz…

Atualmente, com outras condições, custa-lhes entender como se podia viver com alegria dessa maneira. Lá lhes vou dizendo que do mesmo modo que gostam tanto, quando se juntam em passeata com os primos, também para nós era igual e tanto fazia se íamos num banco nosso ou no meio das pernas dos adultos… O importante era ir!

E que boas memórias guardamos! Um tempo em que a felicidade era agarrada ao virar da esquina!

 

Nina M.

 

 

              

 

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