Postal da noite
Há
quem não entenda a importância da cultura, mas o homem desprovido dela não passa
de “cadáver adiado que procria”, para citar Pessoa. Este di-lo em relação ao
sonho que está na base de todas as grandes realizações humanas, que permitiu
aos portugueses desbravar mar e chegar à Índia e que permitiria, também, a este
mesmo povo predestinado a construção do Quinto Império, que seria o baluarte da
cultura e da civilização, primeiro europeia, depois, do mundo. Eu creio que se
pode aplicar à cultura, porque um povo desprovido dela apenas existe, mas não é
nem medra.
Servem os espetáculos culturais e
artísticos para nos encher a alma e foi de alma cheia que vim de “Ficheiros Secretos”,
espetáculo de Luís Osório, que já nos habituou ao seu “postal do dia”. O postal
da noite vai para ele, que foi capaz de encantar uma sala cheia, com o seu longo
monólogo de mais de duas horas, recheado de histórias de vida e de morte. Mais de
vida, porque a morte faz parte da vida. Hoje, em dia de perda de um amigo, o
espetáculo do Luís a mostrar como o caminho de alguns seres se transfigura com
a perda. Foi assim com Eduardo Lourenço, que só começou a escrever após a morte
dos pais, com Eugénio de Andrade que carregava a perda da mãe sobre os ombros e
se sentava numa pedra, em Serralves, a escutar o silêncio que lhe trazia a
infância perdida e a mãe de volta. Por isso, detestava que o interrompessem
para o felicitarem pelos seus livros. Abriu o espetáculo em Lanzarote, com José,
o Saramago, a quem a vida roubou o irmão bem cedo e que depois via sumir-se nos
olhos da mãe. Homens que carregam o peso da vida às costas e que sem ele não
teriam sido o que foram. Luís conduziu-nos com mestria, por uma conversa muito
bem alinhavada, por dentro da vida, dos pesos e da leveza de que é feita.
Perfilou figuras políticas de esquerda e de direita e contou histórias
deliciosas e secretas, mas não tão secretas que não se possam encontrar no seu
livro “Ficheiros Secretos” e que dá nome ao espetáculo.
Vimos, na mesma turma, Santana
Lopes e Louçã. Este último, o aluno irrepreensível, que obtinha vintes e estava
sempre de dedo no ar, com a resposta certa para o professor e não passava confiança
a ninguém, o que irritava todos. Santana, o “enfant terrible” conseguiu juntar
os colegas, fazer uma vaquinha para tentar corromper o Francisco. Davam-lhe o
dinheiro se ele dissesse um palavrão terrível na aula: MERDA! (Às vezes, ouvimos bem
pior no Norte, escapa-se-lhes sem que sequer se deem conta e, quando chamados à
razão, fazem um esgar de quem patinou e pedem umas desculpas mal-amanhadas,
mostrando toda a sinceridade do “foi sem querer” e sem necessidade de qualquer
corrupção). Talvez tivesse mais piada se Louçã tivesse cedido à tentação, mas
manteve-se estoicamente imperturbável. Quando lhe lembraram o episódio, terá
dito que já nessa altura lhes fugia a inclinação para a corrupção. Vimos, na
mesma mesa, Natália Correia, Francisco Sá-Carneiro e a princesa de gelo Snu
Abecassis (como a apelidava Natália), estivemos reunidos na Alemanha, com Mário
Soares e a sua esposa Maria Barroso para a decisão da formação do partido
socialista. Maria votou contra a proposta que vinha do marido. A história de Edmundo
Pedro é comovente: todos os Natais, ele abria a porta ao PIDE que lhe impediu a
fuga, que lhe levava um presente, acompanhado de votos de um bom Natal. Nem só
de figuras conhecidas se fazem as narrativas. Ouvimos também histórias de
anónimos, porque o Luís tem a generosidade e a alma grande de reconhecer heróis
entre gente comum. Foi lembrado o emplastro, o Fernando, e os pais do Rui
Pedro, a criança desaparecida de Lousada. Momento especialmente comovente,
porque o pai estava presente e voltou a falar de esperança. Afiançou que há
quem diga que se houvesse a certeza da morte do filho, ele e a esposa poderiam
fazer o luto e ter um pouco de descanso, ao que ele responde que se assim
fosse, já não haveria esperança e que ela continua presente. A esperança que
salva e que permite viver.
Ficam apenas alguns dos exemplos.
Mais de duas horas a ouvir a vida de que é feita a humanidade, porque todos
somos feitos de histórias, algumas tão pesadas, que nos obrigam a seguir em
frente com o peso do mundo sobre os ombros, mas que nos fazem ser quem somos.
Num registo que circulou entre o
comovente e também o cómico, entre a tragédia e a comédia, tal como a vida é: “just
a charming joke”, Luís Osório conseguiu congelar o tempo.
Obrigada.
Nina M.