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sábado, 9 de setembro de 2023

Crónica de Maus Costumes 338

 

Vida e cultura portuguesa

               Enquanto arrumava a casa, tarefa matinal, consegui saber que o batateiro andava na rua. A estridente música e o megafone roufenho que emite uns sons estranhos e impercetíveis permite que os moradores o identifiquem sem erro.

               A música folclórica é inconfundível e bastante irritante, diga-se de passagem. Perdoem-me os adeptos e os fãs dos ranchos e da cultura popular, mas eu acho absolutamente horrível. São umas vozes esganiçadas que não cantam… Gritam! O som entra-me tímpanos dentro e agride-me terrivelmente. Dez minutos daquela gaiteirice e eu começo a ensandecer.  É isso e os bombos. Outra “arte” sem virtude nenhuma que deixa os tocadores a arfar e vermelhos de tanto esforço, pois batem com gosto, sem dó nem piedade na pele dos bombos como quem açoita violentamente um injuriador ou o pior dos criminosos! Eu interrogo-me sobre o propósito de tal espetáculo… Qual prazer produzir semelhante ruído! Ah e tal, mas os toques não são iguais… Quero lá saber, pá! Aquilo é sempre um, pum, pum, combinado de diferentes formas, mas que é barulho apenas! Para me deixarem felizes é virem um sábado de manhã, às oito em ponto, em tempo de trabalho, acordarem-me com essa música. É o delírio! Parece que adivinham… Ah e tal queria dormir até às nove ou dez no sábado… Ah! A vida faz-se de manhã! Senhor… Dai-me paciência porque se me desses força, ficavam com os bombos enfiados nos bicos dos colarinhos…

               Ainda me ri sozinha a imaginar o que seria um batateiro ou sardinheiro fazer anunciar-se ao som de Beethoven, Mozart ou Chopin… Talvez não fosse necessário tanto, mas um bocadinho de bom gosto musical, pedia-se… Sei lá… Um Rui Veloso ou Jorge Palma… Sempre têm alguma genica e seria mais agradável. Só por causa disso nem me dou ao trabalho de ir à rua saber como está o saco da batata… Vantagens de viver numa cidade bastante pequena e ainda rural… Passa o batateiro, o sardinheiro, o padeiro, que me deixa o pão todas as manhãs em cima do muro… Vem a montanha a Maomé, neste caso.

               Efetivamente, há tanta coisa boa que se faz neste país, que as estridências vocais e os bombos eram escusados. Bem sei que a moda dos DJ’s e a música techno é pouco melhor… Esse é o festival da noite, que consoante o vento, chega mais ou menos audível ao meu castelo altaneiro… E lá vão os filhos ouvir não sei quem e eu ouvir a batida… a lembrar os bombos e que não é melhor, até às quatro da manhã.

               Salvou-me a noite o senhor Ruy de Carvalho. O privilégio de ver e ouvir o grande senhor do teatro português ao vivo já ninguém me tira! Uns magníficos noventa e seis anos que lhe permitem ainda recitar o “Monólogo do Vaqueiro” de cor e sem engano. Grande senhor, muito bem-disposto e muito grato ao seu público. Foi recebido com um grande aplauso e despediu-se com um aplauso ainda maior de um público que o não quer ver a desaparecer de cena. A serenidade com que encara o tempo que lhe sobra sem o contar é admirável e as memórias e histórias de oitenta anos de palco são fascinantes.

               O espetáculo começa o Ruy de Carvalho sentado à secretária, a escrever as suas memórias, ouvindo-se a sua voz a narrar o que escreve, mas na verdade trata-se de um ensaio sobre a vida. Em cena, a situação deriva depois para uma conversa entre dois amigos que deambulam pelas memórias do senhor Ruy, que fez questão de prestar homenagem à saudosa Eunice Muñoz, sua colega de ofício e amiga.

               Retive do seu ensaio sobre a vida, neste caso a sua, que há apenas duas formas de atuar: ou bem ou mal. Citou Nietzsche para justificar a sua longa carreira de ator, escolha de vida: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal” e terminou com Sartre e com a sua apologia da liberdade de escolha, sugerindo que escolhamos construir um mundo melhor, uma boa relação com os outros.

               O Ruy de Carvalho tocou no ponto essencial, no seu ensaio. Quis dizer-nos que somos responsáveis pelo que fazemos com as nossas vidas tal como ele é pela dele. Essa consciência de que o homem está condenado a ser livre, para citar Sartre, gera uma angústia tremenda, porque nos responsabiliza pelo caminho trilhado, pelo sucesso e pelo fracasso. É como se andássemos constantemente no fio da navalha, pois vivemos de escolhas constantes. Mesmo quando não escolhemos, estamos a fazer uma escolha. Sartre é tão duro, mas tão certeiro, que nos puxa o tapete, obriga-nos a sair da nossa zona de conforto, já que as circunstâncias, ao que ele chama de facticidade, não justificam o que quer que seja. O facto de alguém ter nascido homem (circunstância que não pode alterar) não implica que não possa escolher ser sensível, apreciar literatura, o teatro e a música. É uma escolha pessoal. No entanto, assumir plenamente que sempre temos uma escolha e que a responsabilidade de tudo o que nos acontece é nossa, por vezes, é um fardo demasiado difícil de suportar. Há escolhas tão difíceis que se escolhe não escolher ou, para nos aliviarmos da angústia que pesa, resguardamo-nos na má-fé, na mentira que contamos a nós mesmos e na qual acreditamos para tornar a nossa vida mais suportável. É muito mais fácil viver a pensar que estamos presos a uma situação, porque não há outra alternativa, do que enfrentar o medo do que possa vir depois da decisão. Acontece a todos amiúde. É mais fácil para o estudante justificar um mau resultado com a sua inaptidão para certa matéria do que assumir que não se preparou convenientemente e que fracassou. É mais fácil desistir do que tentar esforçadamente.

               Todos usamos de má-fé como autoproteção, mas ao citar Sartre, do alto dos seus noventa e seis anos e de vida longa, o senhor Ruy convida-nos a fazer boas escolhas e a viver intensamente, de forma a podermos olhar para trás e não lamentar a vida, antes pelo contrário, celebrá-la como vida boa.

               Foi tão bonito ouvi-lo, seguro, dizer que não tinha arrependimentos, sentir-lhe a saudade da sua Rute, que pesava quarenta e três quilos quando casou e cento e oito quando faleceu, sentir-lhe a falta que a sua amada lhe faz e ver o amor que ainda vive dentro dele e que o leva a falar com as fotos, porque é com a sua Rute que fala, tornando-a viva!...

               Ruy de carvalho convidou-nos a fazer a escolha do amor, da liberdade e do respeito. Foi com o respeito e também com amor do público que se despediu sob uma ovação interminável e merecida.

Obrigada.

 

Nina M.

 

 

 

 

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