Vida e cultura portuguesa
Enquanto
arrumava a casa, tarefa matinal, consegui saber que o batateiro andava na rua.
A estridente música e o megafone roufenho que emite uns sons estranhos e
impercetíveis permite que os moradores o identifiquem sem erro.
A
música folclórica é inconfundível e bastante irritante, diga-se de passagem.
Perdoem-me os adeptos e os fãs dos ranchos e da cultura popular, mas eu acho absolutamente
horrível. São umas vozes esganiçadas que não cantam… Gritam! O som entra-me
tímpanos dentro e agride-me terrivelmente. Dez minutos daquela gaiteirice e eu
começo a ensandecer. É isso e os bombos.
Outra “arte” sem virtude nenhuma que deixa os tocadores a arfar e vermelhos de
tanto esforço, pois batem com gosto, sem dó nem piedade na pele dos bombos como
quem açoita violentamente um injuriador ou o pior dos criminosos! Eu
interrogo-me sobre o propósito de tal espetáculo… Qual prazer produzir semelhante
ruído! Ah e tal, mas os toques não são iguais… Quero lá saber, pá! Aquilo é
sempre um, pum, pum, combinado de diferentes formas, mas que é barulho apenas! Para
me deixarem felizes é virem um sábado de manhã, às oito em ponto, em tempo de
trabalho, acordarem-me com essa música. É o delírio! Parece que adivinham… Ah e
tal queria dormir até às nove ou dez no sábado… Ah! A vida faz-se de manhã!
Senhor… Dai-me paciência porque se me desses força, ficavam com os bombos
enfiados nos bicos dos colarinhos…
Ainda
me ri sozinha a imaginar o que seria um batateiro ou sardinheiro fazer
anunciar-se ao som de Beethoven, Mozart ou Chopin… Talvez não fosse necessário
tanto, mas um bocadinho de bom gosto musical, pedia-se… Sei lá… Um Rui Veloso
ou Jorge Palma… Sempre têm alguma genica e seria mais agradável. Só por causa
disso nem me dou ao trabalho de ir à rua saber como está o saco da batata…
Vantagens de viver numa cidade bastante pequena e ainda rural… Passa o batateiro,
o sardinheiro, o padeiro, que me deixa o pão todas as manhãs em cima do muro…
Vem a montanha a Maomé, neste caso.
Efetivamente,
há tanta coisa boa que se faz neste país, que as estridências vocais e os
bombos eram escusados. Bem sei que a moda dos DJ’s e a música techno é pouco
melhor… Esse é o festival da noite, que consoante o vento, chega mais ou menos
audível ao meu castelo altaneiro… E lá vão os filhos ouvir não sei quem e eu ouvir
a batida… a lembrar os bombos e que não é melhor, até às quatro da manhã.
Salvou-me
a noite o senhor Ruy de Carvalho. O privilégio de ver e ouvir o grande senhor
do teatro português ao vivo já ninguém me tira! Uns magníficos noventa e seis
anos que lhe permitem ainda recitar o “Monólogo do Vaqueiro” de cor e sem
engano. Grande senhor, muito bem-disposto e muito grato ao seu público. Foi
recebido com um grande aplauso e despediu-se com um aplauso ainda maior de um
público que o não quer ver a desaparecer de cena. A serenidade com que encara o
tempo que lhe sobra sem o contar é admirável e as memórias e histórias de oitenta
anos de palco são fascinantes.
O
espetáculo começa o Ruy de Carvalho sentado à secretária, a escrever as suas
memórias, ouvindo-se a sua voz a narrar o que escreve, mas na verdade trata-se
de um ensaio sobre a vida. Em cena, a situação deriva depois para uma conversa
entre dois amigos que deambulam pelas memórias do senhor Ruy, que fez questão
de prestar homenagem à saudosa Eunice Muñoz, sua colega de ofício e amiga.
Retive
do seu ensaio sobre a vida, neste caso a sua, que há apenas duas formas de
atuar: ou bem ou mal. Citou Nietzsche para justificar a sua longa carreira de
ator, escolha de vida: “Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do
mal” e terminou com Sartre e com a sua apologia da liberdade de escolha,
sugerindo que escolhamos construir um mundo melhor, uma boa relação com os
outros.
O
Ruy de Carvalho tocou no ponto essencial, no seu ensaio. Quis dizer-nos que
somos responsáveis pelo que fazemos com as nossas vidas tal como ele é pela
dele. Essa consciência de que o homem está condenado a ser livre, para citar Sartre,
gera uma angústia tremenda, porque nos responsabiliza pelo caminho trilhado,
pelo sucesso e pelo fracasso. É como se andássemos constantemente no fio da
navalha, pois vivemos de escolhas constantes. Mesmo quando não escolhemos,
estamos a fazer uma escolha. Sartre é tão duro, mas tão certeiro, que nos puxa
o tapete, obriga-nos a sair da nossa zona de conforto, já que as circunstâncias,
ao que ele chama de facticidade, não justificam o que quer que seja. O facto de
alguém ter nascido homem (circunstância que não pode alterar) não implica que
não possa escolher ser sensível, apreciar literatura, o teatro e a música. É
uma escolha pessoal. No entanto, assumir plenamente que sempre temos uma
escolha e que a responsabilidade de tudo o que nos acontece é nossa, por vezes,
é um fardo demasiado difícil de suportar. Há escolhas tão difíceis que se
escolhe não escolher ou, para nos aliviarmos da angústia que pesa,
resguardamo-nos na má-fé, na mentira que contamos a nós mesmos e na qual
acreditamos para tornar a nossa vida mais suportável. É muito mais fácil viver
a pensar que estamos presos a uma situação, porque não há outra alternativa, do
que enfrentar o medo do que possa vir depois da decisão. Acontece a todos amiúde.
É mais fácil para o estudante justificar um mau resultado com a sua inaptidão
para certa matéria do que assumir que não se preparou convenientemente e que
fracassou. É mais fácil desistir do que tentar esforçadamente.
Todos
usamos de má-fé como autoproteção, mas ao citar Sartre, do alto dos seus noventa
e seis anos e de vida longa, o senhor Ruy convida-nos a fazer boas escolhas e a
viver intensamente, de forma a podermos olhar para trás e não lamentar a vida,
antes pelo contrário, celebrá-la como vida boa.
Foi
tão bonito ouvi-lo, seguro, dizer que não tinha arrependimentos, sentir-lhe a
saudade da sua Rute, que pesava quarenta e três quilos quando casou e cento e
oito quando faleceu, sentir-lhe a falta que a sua amada lhe faz e ver o amor
que ainda vive dentro dele e que o leva a falar com as fotos, porque é com a
sua Rute que fala, tornando-a viva!...
Ruy
de carvalho convidou-nos a fazer a escolha do amor, da liberdade e do respeito.
Foi com o respeito e também com amor do público que se despediu sob uma ovação interminável
e merecida.
Obrigada.
Nina M.
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