Jesus e o halo divino
Neste momento, tenho três livros na
mesinha de cabeceira: Exercícios de
Humano, um livro de poesia, de Paulo José Miranda, Dr. Jivago, do russo Pasternak e Evangelhos Apócrifos, do professor Frederico Lourenço.
Vou
alternando leituras, porque são todas diferentes e permitem-me fazê-lo. Uma
poesia, um texto do Evangelhos e, quando é para ler mais tempo, a narrativa
russa. Creio que os Evangelhos Apócrifos
permanecerão por lá, a lembrar-me da Bíblia para crianças que também tinha na
mesinha de cabeceira e que li e reli variadas vezes. Incidia sobre o Novo
Testamento e a figura de Jesus e quando, agora, agarro neste livro, lembro-me
de mim, também reclinada na cama, a ler antes de dormir. A figura de Jesus
acompanha-me, por isso, desde sempre, creio. Em criança, quando ficava a dormir
na minha avó, o que acontecia sempre, atirando o avô António para outra cama,
antes de dormir, rezava ao Jesus, a repetir o que a avó Matilde me dizia.
Dizem-me
que dormia mal, por isso, dormia dia sim, dia não, nos avós, para que quer os
pais quer os avós descansassem à vez. Do que me lembro, isso deverá ter sido
quando era muito pequena, pois estas memórias são já de criança dos seus três
ou quatro anos e não me lembro de acordar durante a noite, excetuando aquela
vez em que uma vaca, durante a madrugada, aterrou no telhado da casa do Lino
das Toiras (assim era conhecido o senhor) e metade da aldeia terá sido posta em
reboliço. O meu avô, o vizinho mais próximo, lá se levantou e foi ajudar como
compete à boa vizinhança. O avô Tónio, como lhe chamávamos, morreu quando eu
tinha cinco anos. A partir dessa altura, a minha avó passou a dormir em minha casa.
Deixei de fazer o trajeto para casa dos avós e de ouvir, invariavelmente, o
Lino das Toiras a dizer: “Já vens, minha papagaia?” Consta que era uma criança
cheia de vida e que falava muito. Lembro-me, efetivamente, da minha mãe me
pedir para me calar um bocadinho. Era difícil… Acho que falei tudo de uma vez,
porque, agora, apesar de gostar de uma boa conversa, não me vejo propriamente
faladora. Há momentos de maior expansão, mas sinto que produzo cada vez mais
diálogos interiores, só por mim escutados. Aprendo com o Mia Couto, talvez, a
“afinar os silêncios”.
A
leitura é uma forma de aprimorar silêncios. Não será à toa que ela exige um
ambiente tranquilo e sem grandes ruídos à volta… Dizia eu que os apócrifos não
sairão tão cedo da mesinha de cabeceira… Efetivamente, apesar de não serem os
Evangelhos reconhecidos pela Igreja, há passagens semelhantes, isto é, que
constroem a mesma narrativa, mas também há surpresas. Deliciei-me com o
Evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus, por exemplo. Nele, não vemos apenas
um menino cândido e angelical. Vemos a criança humana que se aborrece e se
zanga, que tem os seus caprichos, mas como também é divina, toda a Sua palavra
se concretizava. Já falava por metáforas, com uma linguagem e um espírito
incomum, mas nem sempre era positivo. Então, por exemplo, quando em certo dia
ao atravessar a aldeia, uma criança embateu contra o seu ombro, Jesus,
irritado, ter-lhe-á dito: “Não continuarás o teu caminho”. A criança,
imediatamente, terá caído morta. Os pais da alma falecida recriminaram José,
sugerindo que a presença deles era nefasta e que se assim continuasse deveriam
abandonar a aldeia. Sugeriam ao pai adotivo que ensinasse o filho a abençoar em
vez de amaldiçoar. Era a mesma criança que salvou Tiago, filho de José, quando
foi mordido por uma víbora. No entanto, é-nos mostrada uma criança caprichosa,
que desafiou o professor que o quis ensinar e que o confrontou com a sua
ignorância. Após admitir que Jesus era prodigioso e que seria Deus ou um Anjo,
a criança celestial alterou-se. Perante estas palavras, terá dito: “Que as tuas
coisas deem fruto agora e que os cegos no coração vejam”. Por milagre, todos os
que anteriormente tinham caído sobre a sua maldição se curaram. Doravante,
ninguém ousaria “encolerizá-lo para que Ele o não amaldiçoasse e estropiasse.”
Não
pude deixar de rir ao imaginar um Jesus nada complacente e nada tolerante.
Antes uma criança algo excêntrica, facilmente irritável e que não admitia ser
contrariada! Basta pensarmos no que seria entregar todos os poderes a um petiz para
vermos os estragos! Ai não te calas com isso?! Toma lá, emudece!
Conta
Tomé que certa altura Jesus e outras crianças brincavam num telhado. Uma delas
caiu e morreu. Todos fugiram, exceto Jesus. Quando os pais da criança morta
chegaram, tê-lo-ão acusado de o ter empurrado. Jesus indignou-se e terá dito:
“Zenão! Levanta-te e diz-me: fui eu que te atirei?” O outro levantou-se e
afirmou que não tinha sido Ele a empurrá-lo, mas que tinha sido Ele a
levantá-lo.
Assim
começava a extraordinária vida de Jesus, de sinal em sinal ou de milagre em
milagre, a aprender a temperar-se.
Terminam
os Evangelhos de Tomé, com Jesus, criança de doze anos, que se perdeu da
comitiva que tinha ido a Jerusalém para celebrar a Páscoa, como era hábito. Os
pais (Maria e José) encontram-no no meio de professores, interrogando-os e
explicando as parábolas dos profetas. Ao ver os seus pais aflitos, terá dito:
“Porque me procurais? Não sabeis que é necessário que eu esteja ocupado com as
coisas de meu Pai?” Esta última passagem, sobejamente conhecida, já aparece nos
Evangelhos oficiais, ainda que com uma tradução diferente, pois Jesus teria dito
algo do género: Porque vos preocupais? Não sabíeis que estava na casa de meu Pai?”
Sejamos
ou não crentes, Jesus é uma figura extraordinária que nos impressiona. Para uns,
filho de Deus, para outros, apenas homem, mas independentemente da crença ou da
descrença, saibamos guardar a Sua mensagem de amor ao próximo, porque se ela frutificasse,
o mundo poderia ser efetivamente um paraíso terrestre. Pouco do que ele pregou vingou
e muitos dos que em Seu nome falam, agem como se não O conhecessem.
Uma
Santa Páscoa.
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