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sábado, 8 de abril de 2023

Crónica de Maus Costumes 320

 

Jesus e o halo divino

                Neste momento, tenho três livros na mesinha de cabeceira: Exercícios de Humano, um livro de poesia, de Paulo José Miranda, Dr. Jivago, do russo Pasternak e Evangelhos Apócrifos, do professor Frederico Lourenço.

Vou alternando leituras, porque são todas diferentes e permitem-me fazê-lo. Uma poesia, um texto do Evangelhos e, quando é para ler mais tempo, a narrativa russa. Creio que os Evangelhos Apócrifos permanecerão por lá, a lembrar-me da Bíblia para crianças que também tinha na mesinha de cabeceira e que li e reli variadas vezes. Incidia sobre o Novo Testamento e a figura de Jesus e quando, agora, agarro neste livro, lembro-me de mim, também reclinada na cama, a ler antes de dormir. A figura de Jesus acompanha-me, por isso, desde sempre, creio. Em criança, quando ficava a dormir na minha avó, o que acontecia sempre, atirando o avô António para outra cama, antes de dormir, rezava ao Jesus, a repetir o que a avó Matilde me dizia.

Dizem-me que dormia mal, por isso, dormia dia sim, dia não, nos avós, para que quer os pais quer os avós descansassem à vez. Do que me lembro, isso deverá ter sido quando era muito pequena, pois estas memórias são já de criança dos seus três ou quatro anos e não me lembro de acordar durante a noite, excetuando aquela vez em que uma vaca, durante a madrugada, aterrou no telhado da casa do Lino das Toiras (assim era conhecido o senhor) e metade da aldeia terá sido posta em reboliço. O meu avô, o vizinho mais próximo, lá se levantou e foi ajudar como compete à boa vizinhança. O avô Tónio, como lhe chamávamos, morreu quando eu tinha cinco anos. A partir dessa altura, a minha avó passou a dormir em minha casa. Deixei de fazer o trajeto para casa dos avós e de ouvir, invariavelmente, o Lino das Toiras a dizer: “Já vens, minha papagaia?” Consta que era uma criança cheia de vida e que falava muito. Lembro-me, efetivamente, da minha mãe me pedir para me calar um bocadinho. Era difícil… Acho que falei tudo de uma vez, porque, agora, apesar de gostar de uma boa conversa, não me vejo propriamente faladora. Há momentos de maior expansão, mas sinto que produzo cada vez mais diálogos interiores, só por mim escutados. Aprendo com o Mia Couto, talvez, a “afinar os silêncios”.

A leitura é uma forma de aprimorar silêncios. Não será à toa que ela exige um ambiente tranquilo e sem grandes ruídos à volta… Dizia eu que os apócrifos não sairão tão cedo da mesinha de cabeceira… Efetivamente, apesar de não serem os Evangelhos reconhecidos pela Igreja, há passagens semelhantes, isto é, que constroem a mesma narrativa, mas também há surpresas. Deliciei-me com o Evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus, por exemplo. Nele, não vemos apenas um menino cândido e angelical. Vemos a criança humana que se aborrece e se zanga, que tem os seus caprichos, mas como também é divina, toda a Sua palavra se concretizava. Já falava por metáforas, com uma linguagem e um espírito incomum, mas nem sempre era positivo. Então, por exemplo, quando em certo dia ao atravessar a aldeia, uma criança embateu contra o seu ombro, Jesus, irritado, ter-lhe-á dito: “Não continuarás o teu caminho”. A criança, imediatamente, terá caído morta. Os pais da alma falecida recriminaram José, sugerindo que a presença deles era nefasta e que se assim continuasse deveriam abandonar a aldeia. Sugeriam ao pai adotivo que ensinasse o filho a abençoar em vez de amaldiçoar. Era a mesma criança que salvou Tiago, filho de José, quando foi mordido por uma víbora. No entanto, é-nos mostrada uma criança caprichosa, que desafiou o professor que o quis ensinar e que o confrontou com a sua ignorância. Após admitir que Jesus era prodigioso e que seria Deus ou um Anjo, a criança celestial alterou-se. Perante estas palavras, terá dito: “Que as tuas coisas deem fruto agora e que os cegos no coração vejam”. Por milagre, todos os que anteriormente tinham caído sobre a sua maldição se curaram. Doravante, ninguém ousaria “encolerizá-lo para que Ele o não amaldiçoasse e estropiasse.”

Não pude deixar de rir ao imaginar um Jesus nada complacente e nada tolerante. Antes uma criança algo excêntrica, facilmente irritável e que não admitia ser contrariada! Basta pensarmos no que seria entregar todos os poderes a um petiz para vermos os estragos! Ai não te calas com isso?! Toma lá, emudece!

Conta Tomé que certa altura Jesus e outras crianças brincavam num telhado. Uma delas caiu e morreu. Todos fugiram, exceto Jesus. Quando os pais da criança morta chegaram, tê-lo-ão acusado de o ter empurrado. Jesus indignou-se e terá dito: “Zenão! Levanta-te e diz-me: fui eu que te atirei?” O outro levantou-se e afirmou que não tinha sido Ele a empurrá-lo, mas que tinha sido Ele a levantá-lo.

Assim começava a extraordinária vida de Jesus, de sinal em sinal ou de milagre em milagre, a aprender a temperar-se.

Terminam os Evangelhos de Tomé, com Jesus, criança de doze anos, que se perdeu da comitiva que tinha ido a Jerusalém para celebrar a Páscoa, como era hábito. Os pais (Maria e José) encontram-no no meio de professores, interrogando-os e explicando as parábolas dos profetas. Ao ver os seus pais aflitos, terá dito: “Porque me procurais? Não sabeis que é necessário que eu esteja ocupado com as coisas de meu Pai?” Esta última passagem, sobejamente conhecida, já aparece nos Evangelhos oficiais, ainda que com uma tradução diferente, pois Jesus teria dito algo do género: Porque vos preocupais? Não sabíeis que estava na casa de meu Pai?”

Sejamos ou não crentes, Jesus é uma figura extraordinária que nos impressiona. Para uns, filho de Deus, para outros, apenas homem, mas independentemente da crença ou da descrença, saibamos guardar a Sua mensagem de amor ao próximo, porque se ela frutificasse, o mundo poderia ser efetivamente um paraíso terrestre. Pouco do que ele pregou vingou e muitos dos que em Seu nome falam, agem como se não O conhecessem.

Uma Santa Páscoa.

 

 Nina M.

 

 

 

 

 

 

 

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