A Igreja e a sexualidade
Hoje, no facebook, deparei-me com um
comentário a uma publicação de um amigo virtual a propósito dos argumentos de
S. Tomás de Aquino para provar (dentro do possível) a existência de Deus.
Queria a pessoa saber se tinha sido S. Tomás de Aquino a dizer algo do género
(em paráfrase livre): Senhor, dai-me a castidade, mas não para já.
Pegou-me o riso e estive quase para
comentar e acrescentar: Senhor, dai-me a castidade, mas não para já, apenas
quando já não me fizer diferença, quando a velhice a trouxer naturalmente.
Contive-me.
Entretanto, mais alguém esclareceu
que o dito não seria de S. Tomás de Aquino, mas antes de Santo Agostinho.
Na verdade, a frase que lhe é
atribuída é: “Senhor, dá-me castidade e
continência, mas hoje não”. Santo Agostinho embrenhou-se num percurso de
descoberta pela verdade, julgo que poderíamos dizer numa busca de sentido para
a sua existência. De maniqueu que fazia a afirmação do prazer e a negação da
procriação, depois da conversão ao catolicismo, tornou-se defensor da
procriação e da negação do prazer. O trajeto do santo e a busca pela castidade
não lhe foi fácil. Levou uma vida dissoluta e de prazeres carnais aos quais
sucumbia facilmente, mesmo depois de ter encontrado o seu trajeto.
A
decisão da castidade surge com a separação da mulher que amava para se casar
com uma noiva mais condizente e em idade de casar, conforme a vontade da mãe,
porém, sucumbiu à necessidade da carne. Como o próprio diz: “Assim, como eu era
menos um amante do casamento do que um escravo da luxúria, encontrei para mim
outra mulher” (SANTO AGOSTINHO, 1973, VI, 15).
Como
legado da Antiguidade, principalmente, dos estoicos e dos neoplatónicos,
preservou-se a hostilidade ao prazer e ao corpo, empecilhos para a elevação do
espírito. A Igreja foi bastante recetiva à ideia de celibato oriunda do mundo
antigo e que impôs pela força ao clero. Pese embora os filósofos gregos, de um
modo geral, concordassem com a importância da busca do prazer, os estoicos e os
neoplatónicos manifestam a sua preferência pelo celibato, pela abstinência e
pelo ascetismo, ideia que influenciou a Igreja e o próprio Santo Agostinho,
como forma de manter a proximidade com Deus. A partir de então, ficou
instituído que seria melhor para o homem não ter mulher e a admissão do coito
apenas com a finalidade da procriação, uma vez que no paraíso, a procriação
teria sido originada sem prazer. Surge, desta forma, o casamento como uma
concessão aos homens, dada a fraqueza humana. A relação sexual deveria ser
ausente de prazer e o cônjuge que procurasse o outro cometeria um pecado
perdoável, mas o que realizasse coito por solicitação do outro – mas,
pessoalmente, não buscasse o prazer – não incorreria em culpa. No entanto, a
Igreja preferiu o pensamento mais conservador do Santo Agostinho, colocando o
pecado no âmbito da sexualidade, veiculando o celibato e a virgindade como
virtudes e a Virgem Maria como modelo. Na verdade, os seguidores de Jesus não o
seguiram no trato com as mulheres, pois Ele conversava, dialogava e deixava-Se
acarinhar por elas. As mulheres que rodeavam Jesus tinham um papel ativo e eram
tratadas com respeito, o que para a lei judaica era inaceitável. Depois da sua
morte, a mulher é desprezada, é a feiticeira de quem o homem deve afastar-se
para não cair em tentação.
No
século XII, a contrariar este pensamento que desprezava o corpo, o prazer e a
mulher, surge Pedro Abelardo que vive o amor trágico com Heloísa. Tendo sido
descoberto o romance entre ambos, a gravidez de Heloísa e o casamento secreto,
o mestre de Teologia da Catedral de Notre-Dame de Paris foi castrado por
vingança, a mando do tio de Heloísa, Fulbert. Humilhado, retira-se para a
Abadia de Saint-Denis, tornando-se monge e passa a dedicar-se aos estudos
filosóficos. Heloísa torna-se freira, mas trocaram cartas para o resto da vida,
como deixou testemunhado no livro “História de Minhas Calamidades”. Mesmo após
a tragédia, Pedro Abelardo tentou reabilitar o prazer sexual por entender que o
prazer natural de um corpo não pode ser declarado pecado nem culpar alguém por
se deliciar com o prazer que deve necessariamente sentir.
Olhando
para a trajetória da Igreja Católica, no século XXI, já seria tempo de
distinguir a luxúria, o exibicionismo e o vício que destrói o ser humano,
conduzindo-o à insalubridade e à conspurcação pela falta de respeito por si
mesmo e pelo outro, com a consciência de que o corpo é o templo do espírito, da
vivência plena e sadia da sexualidade, principalmente, quando ela é o corolário
do amor e da intimidade e o prolongamento da alma. A vivência da sexualidade é um
direito que assiste qualquer ser humano, independentemente da sua condição e que,
se vivida plenamente, fortifica vínculos e afetos, não destrói nem aprisiona.
Se Abelardo,
no século XII, o compreendeu tão claramente, o que falta à Igreja deste tempo entender?
Para bem da resolução de hipocrisias relativas a preceitos que ninguém (ou quase
ninguém) cumpre.
Nina
M.
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