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sábado, 11 de junho de 2022

Crónica de Maus Costumes 281

 

Pessimismo e Esperança

                Chego arrebatada e com o brilho no olhar, uma sensação de beleza inscrita na alma, como só a arte ou amor conseguem imprimir. Venho do Teatro Nacional de S. João e com o Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago incrustado na pele.

            Um espetáculo que estará em cena até ao final da próxima semana, num trabalho conjunto de atores portugueses e catalães e que aconselho vivamente.

Quem ainda não leu a obra ficará a conhecê-la bem e os que já o fizeram revisitam-na, rememoram-na e saem rendidos aos atores, ao brilhante trabalho do encenador e se dúvidas houvesse, da plena consciência do tesouro que o Saramago representa para a cultura portuguesa.

            Não me deterei nos pormenores da obra, que foi reavivada nos tempos de pandemia, mas espetáculos desta dimensão reduzem-nos à nossa insignificância. Mostram a nossa pequenez perante a beleza e melhor percebemos que sem cultura o Homem não passa de “um bicho da terra tão pequeno”, como cantou o nosso príncipe dos poetas.

            Quando falo da beleza da arte, obviamente não me refiro ao conteúdo da peça. Ensaio sobre a Cegueira confronta-nos com o que há de mais abjeto no ser humano. Não é, de todo, uma exaltação da beleza nem uma manifestação hedonista. É antes de mais a exposição crua e seca de uma humanidade falhada, de um coletivo decadente, egoísta e que, quando confrontado com a possibilidade da morte, esquece qualquer sentido, qualquer propósito de vida, qualquer ética para garantir a sua sobrevivência, mesmo que não saiba para quê. Parece, portanto, que há um certo determinismo biológico que empurra o Homem para a vida e a escusa da morte, mesmo nas situações mais miseráveis. Saramago não é um otimista. Concretamente, aqui, explora a maldade, a crueldade, o egoísmo e o oportunismo, a luta pelo poder dentro do manicómio, a luta pela comida, as sevícias impostas às mulheres…

 A cegueira branca dos que “vendo não veem” cria um mundo medonho onde “o mundo caridoso dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel, e implacável dos cegos”. No meio dessa lama, sobrevive o grupo liderado pela mulher do médico, “a mulher que vê” e que agora repara e observa, no seu pequeno mundo fechado no manicómio, o que faltou ver em liberdade: a guerra, a fome, a frivolidade, a crueldade, a falta de distribuição de riqueza… Tudo o que qualquer humano não afetado pela cegueira branca consegue encontrar no mundo de hoje.

            Escrever o Ensaio para Saramago foi conviver com a decadência e acolher o sofrimento. É impossível parir um livro destes sem dor, diz o próprio Saramago a propósito: “ [] desesperava-me o próprio horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.” No entanto, no meio do caos, há “la dona s’hi veu”, “ a mulher que vê”. Primeiro, seria impossível a quem cega repentinamente sobreviver sem ajuda, depois, esta mulher fantástica, dotada de uma força moral à prova de tudo, com um sentido de responsabilidade e de dever apuradíssimos é o farol do grupo. A cuidadora que por amor acompanha o marido e acaba a tratar de todos. É a mulher-farol, a luz, a guia, é na verdade, a esperança. É ela quem diz ao sair do manicómio que “ainda há a cidade”, mesmo que sem luz, sem água, sem transportes, sem serviços, com os santos nas igrejas de olhos vendados… Ainda há a cidade, ainda há a esperança de retomar a vida, de sair do pesadelo, de voltar a ver para talvez, agora, reparar. Há, por isso, na obra a constatação da falha coletiva da humanidade, o reconhecimento da sua torpeza, da sua vilania e da cegueira, o desencanto com o Homem, mas sobeja ainda a esperança.

Apesar do mundo distópico retratado, do desencanto e até do pessimismo, a chama da esperança mantém-se acesa por força do amor que cuida, na figura da mulher do médico. Não há rendição ao cinismo, nem resignação. Há um grupo liderado pela esperança, que se mantém unido e mantém a dignidade numa ação conjunta, no seu raio de ação. Talvez, por isso, no final, sejam recompensados com a visão.

Todos nós teremos, portanto, o nosso papel no mundo e compete a cada um escolher a marca que quer deixar ao seu redor. Melhora-se a sociedade através da ação individual, de ser para ser, até alcançar todo o conjunto.

Talvez o sonho seja possível, no dia em que a cegueira branca deixar de atingir a humanidade. Haja a esperança que nos salva os dias.

 

Nina M.

 

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