Pessimismo e Esperança
Chego arrebatada e com o brilho no olhar, uma sensação de beleza inscrita
na alma, como só a arte ou amor conseguem imprimir. Venho do Teatro Nacional de
S. João e com o Ensaio Sobre a Cegueira,
de José Saramago incrustado na pele.
Um espetáculo que estará em cena até
ao final da próxima semana, num trabalho conjunto de atores portugueses e
catalães e que aconselho vivamente.
Quem
ainda não leu a obra ficará a conhecê-la bem e os que já o fizeram
revisitam-na, rememoram-na e saem rendidos aos atores, ao brilhante trabalho do
encenador e se dúvidas houvesse, da plena consciência do tesouro que o Saramago
representa para a cultura portuguesa.
Não me deterei nos pormenores da
obra, que foi reavivada nos tempos de pandemia, mas espetáculos desta dimensão
reduzem-nos à nossa insignificância. Mostram a nossa pequenez perante a beleza
e melhor percebemos que sem cultura o Homem não passa de “um bicho da terra tão
pequeno”, como cantou o nosso príncipe dos poetas.
Quando falo da beleza da arte,
obviamente não me refiro ao conteúdo da peça. Ensaio sobre a Cegueira confronta-nos com o que há de mais abjeto
no ser humano. Não é, de todo, uma exaltação da beleza nem uma manifestação
hedonista. É antes de mais a exposição crua e seca de uma humanidade falhada,
de um coletivo decadente, egoísta e que, quando confrontado com a possibilidade
da morte, esquece qualquer sentido, qualquer propósito de vida, qualquer ética
para garantir a sua sobrevivência, mesmo que não saiba para quê. Parece,
portanto, que há um certo determinismo biológico que empurra o Homem para a
vida e a escusa da morte, mesmo nas situações mais miseráveis. Saramago não é
um otimista. Concretamente, aqui, explora a maldade, a crueldade, o egoísmo e o
oportunismo, a luta pelo poder dentro do manicómio, a luta pela comida, as
sevícias impostas às mulheres…
A cegueira branca dos que “vendo não veem”
cria um mundo medonho onde “o mundo caridoso dos ceguinhos acabou, agora é o
reino duro, cruel, e implacável dos cegos”. No meio dessa lama, sobrevive o
grupo liderado pela mulher do médico, “a mulher que vê” e que agora repara e
observa, no seu pequeno mundo fechado no manicómio, o que faltou ver em
liberdade: a guerra, a fome, a frivolidade, a crueldade, a falta de
distribuição de riqueza… Tudo o que qualquer humano não afetado pela cegueira
branca consegue encontrar no mundo de hoje.
Escrever o Ensaio para Saramago foi conviver com a decadência e acolher o
sofrimento. É impossível parir um livro destes sem dor, diz o próprio Saramago
a propósito: “ […]
desesperava-me o próprio
horror do que ia narrando. Enfim, acabou, já não terei de sofrer mais.” No
entanto, no meio do caos, há “la dona s’hi veu”, “ a mulher que vê”. Primeiro,
seria impossível a quem cega repentinamente sobreviver sem ajuda, depois, esta
mulher fantástica, dotada de uma força moral à prova de tudo, com um sentido de
responsabilidade e de dever apuradíssimos é o farol do grupo. A cuidadora que
por amor acompanha o marido e acaba a tratar de todos. É a mulher-farol, a luz,
a guia, é na verdade, a esperança. É ela quem diz ao sair do manicómio que
“ainda há a cidade”, mesmo que sem luz, sem água, sem transportes, sem serviços,
com os santos nas igrejas de olhos vendados… Ainda há a cidade, ainda há a
esperança de retomar a vida, de sair do pesadelo, de voltar a ver para talvez,
agora, reparar. Há, por isso, na obra a constatação da falha coletiva da
humanidade, o reconhecimento da sua torpeza, da sua vilania e da cegueira, o
desencanto com o Homem, mas sobeja ainda a esperança.
Apesar
do mundo distópico retratado, do desencanto e até do pessimismo, a chama da
esperança mantém-se acesa por força do amor que cuida, na figura da mulher do
médico. Não há rendição ao cinismo, nem resignação. Há um grupo liderado pela esperança,
que se mantém unido e mantém a dignidade numa ação conjunta, no seu raio de ação.
Talvez, por isso, no final, sejam recompensados com a visão.
Todos
nós teremos, portanto, o nosso papel no mundo e compete a cada um escolher a marca
que quer deixar ao seu redor. Melhora-se a sociedade através da ação individual,
de ser para ser, até alcançar todo o conjunto.
Talvez
o sonho seja possível, no dia em que a cegueira branca deixar de atingir a humanidade.
Haja a esperança que nos salva os dias.
Nina
M.
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